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Tetraplégica, Mara lida com 'pista de skate' no Senado e assina com a boca

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, em Brasília

12/05/2019 04h00

A eleição de Mara Gabrilli (PSDB-SP), tetraplégica desde que sofreu um acidente em 1994, forçou o Senado Federal a promover, pela primeira vez, obras de acessibilidade no plenário. Mesmo com as adaptações realizadas no começo do ano, a rotina da parlamentar ainda é repleta de desafios.

Chegar à Mesa Diretora, por exemplo, exige que ela suba por um aclive estreito em sua cadeira motorizada e, por fim, ultrapasse uma estrutura íngreme improvisada sobre três degraus altos. Segundo ela, o local está mais para "pista de skate" do que rampa adequada a cadeirantes.

A tucana, que exerceu dois mandatos anteriores na Câmara e também forçou a Casa a promover ajustes de acessibilidade a partir de 2011, relatou em entrevista ao UOL que, há duas semanas, por pouco não sofreu uma queda no plenário.

"É uma pista de skate mesmo. Eu fui subindo pela rampa e, quando cheguei no topo, a cadeira empinou e foi ao chão. E o medo de descer? Aquele lugar [perto da tribuna do Senado] já é difícil para fazer o retorno [manobra com a cadeira]. Com essa rampa lá, é quase impossível", explicou.

Pouco antes de conversar com o UOL, Mara havia conduzido a reportagem ao plenário a fim de mostrar, na prática, a dificuldade de locomoção. A parlamentar explicou que, até semanas atrás, havia uma outra forma de acesso, por trás da Mesa Diretora. Não era a ideal, mas também não se mostrava tão perigosa como a estrutura atual.

"Você tem que ficar fazendo 500 balizas ali para conseguir sair e é perigoso porque a inclinação ali está super incorreta e fora da norma", confidenciou ela, que disse ainda já ter conversado a respeito com o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP). "Ele falou que [o trabalho de adaptação] vai ser feito no recesso de julho."

Em janeiro, o Senado informou que essa obra é naturalmente mais demorada porque envolve questões de tombamento histórico. Além da instalação de uma rampa adequada, o setor de Projetos e Reformas do Parlamento pretende realizar ajustes na bancada principal --onde sentam o presidente e os demais componentes da Mesa.

A ausência de equipamentos sanitários acessíveis nos corredores das comissões é outro problema enfrentado pela senadora em seu dia a dia, fato que o UOL presenciou na última quarta-feira (8) durante audiência conjunta da CAS (Comissão de Assuntos Sociais) e da CAE (Comissão de Assuntos Econômicos).

Em meio a votação importante, a parlamentar precisou ir ao banheiro e teve que percorrer um longo percurso de ida e volta até o seu gabinete.

"Percebi hoje esse problema de acessibilidade. Não tinha um banheiro adequado perto da sala da comissão. (...) Vivendo aqui, aos poucos a gente vai descobrindo essas questões."

Na tentativa de agilizar o retorno à sessão e discursar sobre um dos assuntos da pauta, Mara acelerou a cadeira de rodas, chamando atenção dos transeuntes pelos quais passava. "Ela engata a quinta marcha e vai embora", comentou um assessor. Às vezes, a tucana acaba "passando por cima" de um ou outro colega. "Na Câmara, o pessoal falava que eu era a deputada mais inofensiva. Hoje eu virei a mais perigosa", brincou.

Às vezes, tem pessoas que brincam: você pode atropelar esse senador? Já me mandaram até uma lista

Apesar dos problemas de acessibilidade que ainda existem no Senado, a congressista elogiou a preocupação e a predisposição da Casa em resolvê-los. Ela disse ter sido procurada antes mesmo de vencer a eleição e ficar com uma das vagas de São Paulo --a outra foi ocupada por Major Olímpio (PSL).

"Recebi o telefone uma semana depois que eu fui confirmada como candidata. Fiquei toda animada, achei que eles já estavam vislumbrando o futuro e deu uma certeza maior que existia a possibilidade de eu ser eleita."

Mara Gabrilli biometria facial - Divulgação - Divulgação
Sistema que permite voto da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) por biometria facial
Imagem: Divulgação
À parlamentar foi dada a prioridade na escolha do gabinete e, no plenário, houve a retirada da cadeira fixa para que ela possa se posicionar ao lado dos colegas da bancada paulista. Além disso, o Senado trouxe da Câmara dos Deputados a tecnologia que permite que Mara vote por meio de biometria facial.

Em nota, o Senado informou que "vem atuando desde 2008 numa série de demandas de projetos e execução de intervenções relacionadas à garantia de acessibilidade". Também confirmou que a obra referente à Mesa Diretora no próximo recesso parlamentar.

Quanto aos banheiros, a Casa informou que dois estão disponíveis no pavimento inferior ao corredor das comissões, "sendo um deles na ala Alexandre Costa e outro na ala Nilo Coelho". Está prevista a instalação de um novo banheiro com acessibilidade, cujo projeto deve ser executado até o fim de 2019.

Assinatura com a boca

O acidente de trânsito que deixou Mara tetraplégica ocorreu em 1994, numa das rodovias que levam ao litoral norte de São Paulo. À época publicitária, com 26 anos, ela passou três semanas na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), período em que precisava assinar documentos. Foi assim que ela começou a subscrever com a boca.

Desde então, ela foi aperfeiçoando a técnica, mas relata que sua assinatura já mudou várias vezes devido a oscilações naturais do movimento com a boca. No Senado, ela anda sempre com uma caneta protegida por um tubo a fim de manter a higiene do objeto.

A senadora contou que já teve reconhecimento de firma rejeitado em cartório. "O funcionário dizia que eu não podia assinar com a boca porque estava na lei. E isso não está na lei, que fala em incapacidade. Eu não sou incapaz, eu consigo assinar", explicou.

mara gabrilli assina - Luiz Alves/Câmara dos Deputados - Luiz Alves/Câmara dos Deputados
4.jan.2016 - Mara usa a boca para assinar a Lei Brasileira de Inclusão durante mandato como deputada federal
Imagem: Luiz Alves/Câmara dos Deputados

Depois de mais de 20 anos sendo carregada e totalmente imóvel do pescoço para baixo, a parlamentar conseguiu, em 2016, recuperar parte do movimento dos ombros com exercícios a base de eletrodos, procedimento que ela realiza todos os dias pela manhã. Com isso, ela é capaz de controlar sozinha a cadeira de rodas motorizada, mas ainda não tem coordenação nas mãos.

Mesmo sem autonomia, Mara foi secretária municipal da Pessoa com Deficiência em São Paulo (2005 a 2007) na gestão do também tucano José Serra (hoje colega de bancada no Senado), vereadora da capital paulista e deputada federal. Antes de ingressar na política, atuou como empreendedora social à frente da ONG Projeto Próximo Passo --em 2007, a entidade deu lugar ao IMG (Instituto Mara Gabrilli).

'Não dá para tratar todo mundo igual'

Questionada sobre o conceito de que "todos os brasileiros são iguais" e que não deve existir "divisão no país", ideologia comum a quadros do governo Jair Bolsonaro (PSL), Mara afirma reconhecer o "retrocesso", mas não individualiza críticas ao presidente ou membros do Executivo. "Não dá para tratar todo mundo igual. Isso é um retrocesso, sim."

"Mas eu não estou falando nem de Bolsonaro nem de ninguém. Estou falando do Executivo, independentemente de quem está lá", ressalta. Na visão dela, a União não tem sido displicente em relação ao tema, embora haja "alguns que fazem mais" e "outros que fazem menos". "A gente tem uma legislação, a Lei Brasileira de Inclusão, que é um marco regulatório da pessoa com deficiência no Brasil. E, por conta da lei, eu vejo que existe um compromisso de todos os ministérios."

Para a senadora, a sociedade "nunca pode esquecer que o Estado brasileiro tem uma dívida gigantesca com a pessoa com deficiência". "Foram tantos, tantos e tantos de exclusão. Essa é a razão de política afirmativa", comentou ela, que diz ser favorável à política de cotas e outras iniciativas que promovam a inclusão.

Crítica a Olavo

Amiga do general Eduardo Villas Bôas, que foi ridicularizado pelo guru bolsonarista Olavo de Carvalho no Facebook, Mara saiu em defesa do militar e disse que o ideólogo pivô de sucessivas crises no governo Bolsonaro vive em "cárcere mental".

Nas redes sociais, Olavo se referiu a Villas Bôas como "um doente preso a uma cadeira de rodas" em uma tentativa de atingir um de seus desafetos, o ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz.

Ex-comandante do Exército e atualmente assessor do Planalto, Villas Bôas tem um mal degenerativo do neurônio motor e precisa de auxílio constante. A doença não afeta as faculdades mentais.

Mara afirmou que "o mínimo que esse Olavo precisaria ter é respeito à dignidade do ser humano". "Uma pessoa que enxerga o outro tão diminuto por usar uma cadeira de rodas é uma pessoa aprisionada dentro de sua própria cabeça. Deve ser tão difícil ser feliz porque, se ele encontra essa prisão naquele homem [Villas Bôas], deve ser um reflexo de como ele [Olavo] se vê."

A parlamentar argumentou ainda que a cadeira de rodas não é sinônimo de prisão, e sim de liberdade. "O que eu faria se não existisse a tal da cadeira de rodas para eu conseguir chegar até aqui [ao Senado]? Não é sinal de prisão. Pelo contrário, é sinal de liberdade. É um equipamento que dá condição de ir e vir."