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Problema não é religião, diz especialista sobre ministro evangélico no STF

O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante oração ao lado da mulher, Michelle Imagem: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

04/06/2019 04h00

Diante do reforço das posições cristãs do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que sugeriu a indicação de um ministro evangélico para o STF (Supremo Tribunal Federal), a pesquisadora Christina Vital, que estuda religião e política na UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que "a identificação de que o Brasil tem uma maioria cristã vira elemento central nas estratégias da política do quinhão", sendo que esta estratégia esbarraria no "'esquecimento' de que são todos servidores públicos".

"O presidente também está lá com um mandato público e não sectário", diz a professora, cuja pesquisa tem foco na atuação política de pentecostais.

"As pessoas não podem ter religião? Claro que podem. É claro que os ministros, todos eles, podem ter religião. A questão é que não se pode pensar em cargos públicos para atendimento de interesses sectários, de um grupo econômico, religioso ou qualquer outro", afirma a autora do livro "Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições de 2014".

Leia a seguir a entrevista completa:

UOL - A Constituição brasileira não cita explicitamente o termo "Estado laico", com estas palavras, mas assegura a laicidade do Estado. Como a senhora vê as palavras do presidente, quando ele diz que o Estado é laico, mas ele é cristão e questiona a religião dos ministros do STF?

Christina Vital - Desde a primeira Constituição republicana no Brasil temos garantido o Estado laico, ou seja, que não há relação de privilégio com nenhuma institucionalidade religiosa, que não há uma religião oficial de Estado. No entanto, entre 1891 e os dias de hoje, as religiões foram obtendo inúmeras garantias legais e fiscais. Veja, trata-se de um acesso legal de todas as religiões a estes benefícios, embora a Igreja Católica no Brasil tenha sido a principal beneficiária, inicialmente, de várias garantias legais como as de prestação de assistência religiosa em espaços de privação, garantia do ensino religioso nas escolas públicas, colaboração na assistência social.

A questão das garantias previdenciárias para líderes religiosos e a não tributação de templos foram também conquistas de segmentos religiosos e que podem ser questionadas no sentido de aferir os benefícios que tais garantias trazem para a população, sobretudo em tempos de contingenciamento. A separação legal entre Estado e Igreja foi uma conquista, e isso não retrocederá. Ao menos em termos legais.

A questão é que a religião foi se transformando, para muitos, em um filão eleitoral moralmente aceito por boa parte da população. Sendo assim, os discursos eleitorais têm mobilizado cada vez mais narrativas e gramáticas cristãs. O elemento novo é que, atualmente, estamos acompanhando um líder do Executivo que continua mantendo o tom da campanha, buscando apoio ou comunicação com suas bases pela via do enaltecimento da religião na política e, agora, no âmbito judiciário.

Digo que é um tiro no pé. Os evangélicos e católicos no Congresso Nacional bradavam os temas da moral. Suas estratégias em torno de concessões de rádio e TV, assim como na questão do Judiciário, estavam sendo costuradas sem alarde. A colocação direta desta intenção de alguns segmentos evangélicos pelo presidente pode ser mais negativa do que positiva como estratégia. Vamos acompanhar.

Em entrevistas anteriores, a senhora afirmou que evangélicos miravam o Executivo e o Judiciário, e que este movimento já estaria acontecendo. Como a fala de Bolsonaro se encaixaria neste cenário?

Desde os anos 2010, estamos acompanhando o trabalho de frentes religiosas no Congresso Nacional. Eleição após eleição, a gramática pentecostal e carismática vem assumindo força. Em 2014, tivemos a primeira candidatura confessional evangélica para a Presidência da República. Naquela ocasião fizemos entrevistas, inclusive com o então candidato Pastor Everaldo. Após uma questão nossa durante esta entrevista, baseada em observações que vínhamos realizando, ele verbalizou a importância desta aproximação dos evangélicos da Suprema Corte no Brasil.

Qual o problema disso? As pessoas não podem ter religião? Claro que podem. É claro que os ministros, todos eles, podem ter religião. A questão é que não se pode pensar em cargos públicos para atendimento de interesses sectários, de um grupo econômico, religioso ou qualquer outro. Em sentido amplo, são servidores públicos. Não é um empregado privado, que está lá para atender aos interesses de um segmento. Os deputados, por exemplo, podem representar suas bases políticas, mas, como servidores públicos, devem manter o interesse supremo da nação, o interesse público, e não de um segmento, em detrimento do bem público, do direito de todos. Este é o ponto que a confusão pública esquece de ressaltar.

O STF tem decidido em prol das ditas minorias. Bolsonaro se colocou nesta semana contra a criminalização da homofobia, por exemplo. A possível chegada de um evangélico no Supremo teria a força de desequilibrar essa tendência?

As coisas não são tão imediatas assim. É possível que haja evangélicos no STF, não? É possível que haja simpatizantes da cultura gospel naquela Corte.

Mais uma vez, ser religioso não é um problema. A questão é a relação entre seu sistema de crenças e o compromisso com o serviço público, com a valorização de direitos universais.

Embora estejamos em um contexto pós-estrutural no qual a própria noção de universalismo esteja sendo questionada, estamos diante de uma situação na qual a afirmação da universalidade de alguns direitos, de garantias legais, de uma humanidade comum tem que ser novamente afirmada, lembrada. Como se algo estivesse se esvaindo nesta oposição empobrecedora entre extremos e estejamos diante da necessidade de relembrar pressupostos básicos da vida social, para o bem-estar coletivo.

Candidatos essencialmente evangélicos, como Marina Silva, não tiveram grande êxito nas últimas eleições, mas os candidatos que se apoiaram nessa base evangélica tiveram sucesso, como Bolsonaro e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, exemplo de "Aliados dos Evangélicos", termo citado pela senhora em sua pesquisa. E ambos são muito associados com suas imagens profissionais, seja militar ou jurídica. Como funciona essa associação de imagem com evangélicos atualmente?

Verificamos um pequeno crescimento no número de candidaturas confessionais evangélicas para o Congresso Nacional em 2018. Entre 2010 e 2014 o crescimento foi de 40%. Entre 2014 e 2018 foi de pouco mais de 8%. Ou seja, o número de candidatos confessionais aumentou e o número de eleitos confessionais se manteve nestas legislaturas. O mais interessante que observamos foi essa estratégia que denominei de ADE - Aliados dos Evangélicos. Quer dizer, os candidatos não se apresentavam como evangélicos, mas tinham nesta base religiosa poderosos apoiadores. Então estavam a todo tempo modulando suas falas em relação a este público religioso evangélico e também carismático católico. Vale lembrar que em números absolutos quem mais voltou em Bolsonaro foram os católicos e, em termos proporcionais, os kardecistas.

Em sua pesquisa, a senhora cita o fato de que as lideranças religiosas evangélicas e católicas têm assumido centralidade midiática na defesa de bandeiras identificadas como conservadoras e de direita. Como a senhora analisaria este cenário dentro do atual governo Bolsonaro?

Qual o problema de ser conservador? Nenhum. Isso faz parte da democracia. Os dois maiores problemas nessa representação política atual são o extremismo e a política do meu quinhão. O problema de líderes religiosos e de políticos extremistas, como dissemos em nosso livro de 2017, é que eles agem de modo a conquistar seus interesses a qualquer custo, por meios violentos, sejam morais ou patrimoniais e físicos, pela obstacularização de pautas que não são de seu interesse e pela revisão de garantias jurídicas de grupos localizados como inimigos.

Em segundo lugar a política do meu quinhão esbarra, justamente, no "esquecimento" de que são todos servidores públicos. Ou seja, representação não é igual a trabalhar para atender aos interesses sectários, sejam eles quais forem, em detrimento do bem público. Então, o problema não é o conservadorismo em si, mas sim a perda da razoabilidade democrática.

Como a senhora vê o avanço de pautas conservadoras, tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo? As pautas conservadoras estariam sendo usadas para alavancar a popularidade, diante dos números econômicos?

Quando se perde a razoabilidade democrática, o jogo passa a ser "manter a base política aquecida". Neste sentido, a identificação de que o Brasil tem uma maioria cristã vira elemento central nas estratégias da política do quinhão.

Sua pesquisa fala ainda sobre o "liberal conservador", uma mistura de "conservadorismo moral e político" e "liberalismo econômico". Bolsonaro se enquadraria nesta descrição de alguma forma?

As declarações presentes e passadas do presidente não nos permitem falar em um perfil de valorização democrática como argumentei em relação ao presidenciável Pastor Everaldo, este sim, de perfil "liberal conservador religioso" como outros no contexto político nacional. O conservadorismo certamente está presente em seu discurso, mas sua apresentação é em uma modelagem populista. Então, poderíamos dizer que Bolsonaro encarna um populismo de extrema-direita que, igual a uma amoeba, vai se adaptando desesperadamente ao que acha que sua base (entre conservadora e extremista) deseja ouvir.

Considerando que esse aspecto religioso também foi inserido na política externa brasileira, como a senhora avalia este movimento político?

Novamente podemos observar como o sectarismo religioso não contribui em nada para o bem-estar social. Uma coisa importante a dizer é que a religião não é inimiga da nação. Que o fortalecimento do Estado laico não passa por refrear ou negar a presença religiosa no espaço público em qualquer de suas modalidades: assistencial, cultural, econômica, midiática etc.. A questão central é que o bem público deve estar sempre em primeiro lugar. O presidente também está lá com um mandato público e não sectário. Na questão específica da transferência da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, em Israel, deveria estar sendo privilegiada a análise sobre o interesse econômico e propriamente diplomático do Brasil, jamais uma promessa de campanha feita para líderes religiosos de qualquer envergadura.

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