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Irmã de desaparecido diz ter "medo do Bolsonaro" e vê caso para impeachment

Presidente Jair Bolsonaro corta o cabelo enquanto faz live com declaração polêmica - Reproduçao / Facebook
Presidente Jair Bolsonaro corta o cabelo enquanto faz live com declaração polêmica Imagem: Reproduçao / Facebook

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

31/07/2019 04h00Atualizada em 31/07/2019 16h22

A professora Rosalina Santa Cruz, 73, lembra como se fosse ontem do jantar que ela e seus irmãos prepararam para contar à mãe, Elzita Santa Cruz, então com 98 anos, como seu filho Fernando Santa Cruz morreu pelas mãos do regime militar. Era o fim de uma longa espera. Desde o desaparecimento de Fernando, em 1974, dona Elzita viu o marido morrer de tristeza enquanto ela própria se transformava em uma "mãe coragem".

Dona Elzita morreu há um mês, aos 105 anos, depois de 45 anos buscando a verdade sobre o filho. "Que bom que ela se foi sem ter de ouvir essa maldade", desabafou Rosalina ao UOL em referência às declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o caso. Na segunda-feira (29), ele ironizou o desaparecimento de Fernando em uma provocação ao filho da vítima, o atual presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse que poderia "contar a verdade" sobre o desaparecimento: "Ele não vai querer ouvir".

Assim como Fernando, Rosalina também fez oposição ao regime militar, que a prendeu e torturou. Em entrevista ao UOL, ela conta como ficou sabendo da declaração do presidente e relembra o sofrimento do pai e a luta da mãe para conhecer a verdade. Sobre Bolsonaro, Rosalina diz que tem "medo".

"Não é para ficar? Ele tem uma postura de ódio. É amedrontador. Parece um psicopata", disse a professora, que teme a volta da ditadura e defende o impeachment.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

UOL - Como a senhora recebeu a informação de que Bolsonaro fez referência ao desaparecimento de seu irmão?

Professora Rosalina Santa Cruz, da PUC-SP - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Professora Rosalina Santa Cruz, da PUC-SP
Imagem: Arquivo Pessoal
Rosalina Santa Cruz - Recebi a notícia por um irmão. Conversamos um pouco por telefone e aí fui ver na internet, porque todos já tinham visto no jornal da tarde. Em seguida conversei com o Felipe, que na época do desaparecimento tinha dois anos de idade.

Como a senhora reagiu ao assistir às declarações?

Eu fiquei chocada. Não é só uma questão política, é uma questão de caráter, maldade mesmo. Fiquei imaginando como uma pessoa pode ter coragem de usar a mentira para atingir a dor dos outros. É mais grave por se tratar de um presidente. Ele teria de ter mais responsabilidade. Fernando foi preso e morto em uma casa de extermínio da ditadura brasileira. Essa informação é relatada na Comissão da Verdade. É reconhecida pelo Estado, do qual Bolsonaro se diz representante. É uma falta de responsabilidade, é maldade. É inacreditável que o ser humano possa chegar a esse nível.

A sua mãe morreu no último 25 de junho como símbolo na luta contra a ditadura. Como ela teria reagido a uma declaração dessa?

A minha mãe morreu aos 105 anos. Lutou a vida inteira para enterrar o corpo do Fernando. Eu acho que ela viveu mais do que a maioria das pessoas justamente por causa dessa busca. Que bom que ela morreu sem ter de ouvir essa maldade.

Como dona Elzita começou a procura?

Meu pai teve um derrame depois da prisão do Fernando. Ele sempre foi emotivo e caiu de cama, não entendia como o país não tinha informações sobre seu filho. Morreu cinco anos depois, após muitos derrames, oito meses em coma. Já mamãe eu acho que chorava escondido. Eu a via na luta. Enquanto ele ia definhando, ela fazia o caminho inverso. Ela foi para a Argentina encontrar as Mães da Praça de Maio, enviou carta ao presidente dos Estados Unidos, foi ao Rio e a Brasília diversas vezes. Ela se transformou em uma defensora dos direitos humanos, uma mãe coragem.

Dona Elzita não sofreu apenas com o filho. A senhora também foi presa pela ditadura.

Meu outro irmão, o Marcelo Santa Cruz, foi expulso da Universidade Federal de Pernambuco, onde estudava direito e presidia o centro acadêmico. Ele estava para se formar, mas foi proibido de cursar qualquer faculdade no Brasil por três anos. Meu pai ficou arrasado. Eu era da VAR-Palmares, que fez luta armada. É a mesma organização da [ex-presidente] Dilma Rousseff. Eu fui presa no Rio de Janeiro no dia 3 de dezembro de 1971, saí no final de 1973, depois de ser muito torturada. Voltei a ser presa em abril de 1974, após o sumiço do Fernando. Quando fui presa, minha mãe foi para o Rio e acompanhou toda a minha prisão. Somos uma família que lutou inteira contra o autoritarismo.

Sua família estava preparada para a prisão de Fernando?

A gente sabia que ele tinha ação política e esperava que ele fosse preso, mas não que desaparecesse. Ele não era clandestino, e a Ação Popular não tinha em seu projeto a luta armada. Ele era estudante de direito, matriculado na Universidade Federal Fluminense. Ele se transferiu para a Metodista, em São Paulo, para poder trabalhar. Trabalhou até a véspera de sua prisão, no Rio. Assinou o ponto e tudo.

O presidente disse que Fernando também era da luta armada.

O meu irmão era da Ação Popular, uma organização marxista-leninista com origem na juventude católica, que não se armou. Bolsonaro é presidente e não sabe disso? Por que não procura os arquivos do DOI-Codi [órgão de repressão militar]? Não estou pedindo que ele ouça a família, as organizações de esquerda. Ouça os órgãos oficiais. Ele não tem condições para ser presidente.

Quando foi que sua mãe desistiu de encontrar o filho vivo?

Foi depois da Lei da Anistia (1979). Aos poucos, muitos desparecidos voltaram, mas o Fernando não voltou. Minha mãe passou a aceitar que ele talvez estivesse morto e passou a juntar outras famílias para saber como eles foram mortos e onde.

Qual é a versão mais provável?

A notícia final que a gente tem é do então delegado da polícia política no Espírito Santo, Cláudio Guerra. Depois da ditadura, aos 70 anos, ele foi preso porque teria se metido com o tráfico. Na época, ele pediu à comissão dos direitos humanos para fazer uma declaração: ele contou que existia uma casa da morte em Petrópolis, no Rio, onde os presos eram levados, interrogados e assassinados. Alguns corpos eram levados para incineração em uma usina de cana em Campos. O dono da usina era o então vice-governador do Rio nomeado pela ditadura. Esse dono aceitava receber corpos em troca de financiamento, o que ficou provado pela Comissão da Verdade. O delegado informou o número de pessoas e disse que o Fernando foi um dos que ele levou para a usina. Até aquele momento, a gente procurava muito nos cemitérios. A gente achava que ele estava em valas clandestinas do cemitério de Perus [em São Paulo].

E como sua mãe ficou sabendo?

Por volta de 2012, ela já estava velhinha. A gente fez uma reunião familiar para decidir se contava a ela. Decidimos contar porque a informação era oficial e aquela resposta tinha sido a busca de toda sua vida. Então organizamos um jantar em Olinda (PE). Preparamos uma ambulância e uma médica e fomos contar. Quando contamos, ela olhou de volta e perguntou: "Isso é reconhecido pelo governo? Vocês têm certeza? Porque eu não quero mais sofrer com essa história de que achou, mas não achou. Se for confirmado, eu só quero poder acreditar". Respondemos que "tudo indicava que foi assim", mas que não dava para provar porque nem as cinzas sobraram. Elas eram despejadas em um rio, junto com o bagaço da cana. Mamãe parou e respondeu: "Então vamos jantar".

A senhora vê algum perigo à democracia?

Estamos correndo muito perigo. Não sei se repete a mesma ditadura, mas estamos em risco de viver em regime de exceção. Ele já elogiou o torturador [Carlos Alberto Brilhante] Ustra [1932-2015], insinuou a prisão do jornalista Glenn Greenwald e trata dessa forma um desaparecido político. Ele usa a expressão do medo e do ódio. É amedrontador.

Essas declarações não buscam satisfazer a parcela mais conservadora do eleitorado bolsonarista?

Essa estratégia está se virando contra ele. Sua popularidade está bem abaixo do período pós-eleitoral. É impressionante como ele perdeu apoiadores. No caso do Fernando, toda a imprensa está contra o presidente. Fiquei até emocionada ao ver até a Globo News, o Jornal Nacional ao lado dele. Bolsonaro está perdendo base, não está ganhando.

A repercussão desse episódio pode frear o flerte autoritário do governo?

Espero que sim. A posição do Bolsonaro não é clara porque ele é um mito criado contra alguém. A maioria que votou no Bolsonaro votou contra o PT, e isso pode se acabar muito rápido. A maioria dos votos no Bolsonaro são pelo engano de que ele representaria alguma mudança. Como professora, eu sinto isso nos meus alunos. Quando o aluno gosta do Bolsonaro, ele gosta mais porque ele representa o oposto ao PT.

Após a declaração, a oposição chegou a falar em impeachment. A senhora concorda?

Eu acho que essa é uma razão para isso. Não é só pelo que ele falou, mas pela forma como ele disse. Uma pessoa que trata do assunto com deboche e mentira não pode ser presidente. Eu gostaria muito que houvesse um impedimento. O Brasil merece um ser humano melhor como presidente. Eu tenho medo dele. Não é para ficar? Ele tem uma postura de ódio. É amedrontador. Parece um psicopata.

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