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Após contradição, Nise enviará à CPI conversa sobre decreto; entenda

Rayanne Albuquerque, Luciana Amaral, Lucas Valença e Hanrrikson de Andrade*

Do UOL, em São Paulo e em Brasília

01/06/2021 15h44Atualizada em 01/06/2021 18h16

A médica Nise Yamaguchi, aliada do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e defensora do tratamento precoce com remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19, disse em depoimento à CPI da Covid que irá disponibilizar mensagens no WhatsApp sobre conversas para eventual decreto para mudança na bula da cloroquina.

A ideia da mudança na bula para que o medicamento fosse previsto no tratamento contra a covid-19 foi discutida em reunião no Palácio do Planalto, segundo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, em seus depoimentos à CPI.

Inclusive, havia uma minuta de decreto presidencial para a medida no encontro no Planalto, relataram. Barra Torres disse que Nise estava na reunião e parecia estar "mobilizada" com a iniciativa.

Nise afirmou que estava presente, mas não haver "decreto de bula" nem ter defendido a medida no encontro.

"Não existiu ideia de mudança de bula por minuta e nem por decreto", disse.

O pedido de acesso às conversas do WhatsApp da médica foi feito pelo vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), após dúvida em relação a quando ela soube de uma minuta que, ao ver dos senadores, poderia ser convertida em decreto para a alteração.

Isso por causa de um documento registrado no 16º Tabelião de Notas de São Paulo entregue pela própria Nise à CPI em que registra uma troca de mensagens pelo WhatsApp com o anestesista e tenente da Marinha Luciano Dias Azevedo, também na reunião, de acordo com a médica.

O documento aponta que a médica chegou a receber o texto de minuta que tratava sobre a distribuição de cápsulas de 250mg de cloroquina, 400 mg de hidroxicloroquina e 500 mg de azitromicina pelo governo federal para o tratamento "experimental" da covid-19.

Em um parágrafo, a minuta advertia que a adesão ao tratamento "ora em estudo da covid-19" deveria ser acordado entre o médico e o paciente que aderisse "voluntariamente e de livre e espontânea vontade" ao tratamento precoce.

Ao observar problemas na elaboração do texto, Nise alertou o integrante da Marinha que o documento "exporia muito o presidente", mas não questionou as intenções do governo na distribuição dos medicamentos às unidades de saúde do país.

"Oi Luciano. Este decreto não pode ser feito assim, porque não é assim que regulamenta a pesquisa clínica. Tem normas próprias. Exporia muito o presidente", afirmou Nise.

Luciano tem sido apontado por senadores da CPI como o responsável pela autoria do decreto que visava modificar a bula da cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19 até o momento.

Nise nega saber a autoria da ideia e diz que havia somente "um rascunho de como poderia ser disponibilizada uma medicação que estava em falta e sendo, nesse momento, uma dispensação de medicamentos e a adesão a tratamento de acordo com um consentimento livre e esclarecido e com notificações no site da Anvisa".

Ambos os médicos seriam integrantes, segundo avalia o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), do chamado "gabinete paralelo", que assessorava informalmente o presidente Jair Bolsonaro.

Entenda por que senadores acusam Nise de se contradizer

Senadores independentes e de oposição querem se certificar sobre quando Nise recebeu o documento e o que mais foi discutido por meio das mensagens a serem entregues à comissão.

"Não, eu estava [na reunião]... Não, mas eu não tive acesso ao decreto, tanto é que eu registrei o horário em que eu recebi isso [a mensagem], que foi às 20h. Explicando claramente, em primeiro lugar, isso foi originado pela acusação que eu recebi de colocar decreto em bula", disse Nise.

Em determinado momento, Nise chegou a relatar que "falaram que existia um decreto em cima da mesa com relação à bula", mas não conseguiu desenvolver a frase por ter sido interrompida por Randolfe.

Nise explicou que a mensagem com o tenente aconteceu após a reunião justamente para que entendesse melhor o que estavam discutindo.

Segundo a médica, ao final da reunião, ao saber que estavam tratando "aquela questão de ser colocada em bula ou não", ela teria dito: "Isso não é a bula" e pediu a Luciano que a enviasse o documento. "E não era nada. Era uma questão simplesmente com relação à prescrição de medicamentos", defendeu.

Nise disse acreditar que a fala de Mandetta e de Barra Torres quanto a uma minuta para a mudança da bula na cloroquina não foi "mentira", mas "um equívoco de informação".

Os senadores independentes e de oposição, porém, não saíram convencidos com a explicação de Nise. Com base nos depoimentos de Mandetta e Barra Torres, eles acreditam que a reunião serviu para tratar do assunto e ficaram na dúvida se Nise recebeu a mensagem antes ou depois da reunião no Planalto e até que ponto ela articulou a eventual mudança.

"O documento que a senhora trouxe à CPI - e que está na ata notarial que a senhora junta - é um documento cujo objetivo era colher a assinatura do presidente da República. O que esse documento pretendia fazer era garantir a dispensação de medicamentos fora daquilo que era originalmente previsto no seu registro. Esse é o fato. A senhora trouxe um documento nesse sentido", disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

"Então, esse jogo de palavras para dizer que 'não, não era para alterar a bula', era para ter um documento oficial do presidente que passasse por cima da Anvisa, passasse por cima do Ministério [da Saúde], passasse por cima de todos e disponibilizasse um caminhão de cloroquina ou hidroxicloroquina para as pessoas, quando não existia, já naquele momento, nenhuma evidência que desce lastro a isso", completou.

Defesa do "tratamento precoce"

A imunologista e oncologista afirmou que mantinha contato com o presidente Jair Bolsonaro. Os dois defendem o uso de um "tratamento precoce" para os pacientes da covid-19. Entre as medicações que compõem o "kit covid", indicado para combater os primeiros sintomas da doença, inclui a cloroquina, azitromicina e a ivermectina. Nenhum desses medicamentos tem eficácia comprovada para combater o coronavírus.

O medicamento de uso controlado pode ter efeitos colaterais, como distúrbio de visão, cefaleia e fadiga, além de ser indicado para pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e discoide, artrite reumatoide e juvenil, doenças fotossensíveis e malária.

Pacientes que fizeram uso do kit incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro para tratar a covid-19 precisaram fazer transplante de fígado. Os remédios geram a hepatite medicamentosa, doença grave que afeta o fígado e pode levar a morte.

* Com a colaboração de Ana Carla Bermúdez

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.