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Personagem da semana: Carlos Wizard, de amigo dos refugiados a alvo da CPI

O empresário bilionário Carlos Wizard  - Zanone Fraissat - 2.dez.19/Folhapress/Arte UOL
O empresário bilionário Carlos Wizard Imagem: Zanone Fraissat - 2.dez.19/Folhapress/Arte UOL

Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

19/06/2021 04h00Atualizada em 19/06/2021 09h53

No dia 17 de março de 2020, início da pandemia de Covid no Brasil, o empresário Carlos Wizard Martins escreveu um duro artigo no site de negócios NeoFeed. No texto, previu que a crise do coronavírus seria pior do que todas as que ele já havia enfrentado em sua carreira de empresário e criticou os que ainda não levavam a doença a sério. Esse grupo, segundo ele, incluía o presidente Jair Bolsonaro.

"Acho que muitos em nosso país ainda não se deram conta da gravidade da situação, pois continuam indo a lugares com aglomerações, como festas, praia e até passeatas, como o caso do presidente da República, que desaconselhou o povo ir às ruas, mas foi ele próprio na manifestação, abraçou e cumprimentou dezenas de pessoas", criticou.

Mais de um ano depois, pouca coisa mudou no comportamento de Bolsonaro, que jamais deixou de promover eventos sem precauções contra o contágio. Wizard, no entanto, abandonou a postura crítica. Nos meses seguintes, abraçou com tanto entusiasmo as pautas bolsonaristas sobre a pandemia que tornou-se alvo da CPI da Covid, aberta no Senado para apurar as causas de o Brasil estar a caminho da marca de 500 mil mortos pelo vírus.

Wizard deveria ter sido ouvido pela comissão no último dia 17. Os parlamentares querem saber, entre outros pontos, qual foi o papel do empresário na organização do chamado "conselho científico independente", formado por médicos que defendem o uso de cloroquina no tratamento contra a Covid. Também querem saber se Wizard teve algum fundamento para afirmar, em junho do ano passado, que governadores e prefeitos estariam inflando os números de mortos pela doença para receberem mais recursos.

Wizard Utah - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
No início de maio, Wizard publicou vídeos no estado de Utah, onde acompanha tratamento médico do pai
Imagem: Reprodução/Facebook

A audiência, porém, não aconteceu. Três dias antes da data do depoimento, a defesa de Wizard informou que o empresário foi aos Estados Unidos para acompanhar o tratamento médico de um familiar e pediu para ser ouvido por videoconferência. O presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), negou o pedido, o que levou os advogados a recorrerem ao STF (Supremo Tribunal Federal).

O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, deu ao empresário o direito de permanecer em silêncio, mas não permitiu o depoimento virtual. E Wizard não apareceu. Inconformado com a ausência, Aziz prometeu pedir que o passaporte do empresário seja apreendido pela Polícia Federal assim que ele retornar ao Brasil.

Os senadores não querem apenas interrogá-lo. Em duas votações separadas, a comissão aprovou as quebras dos sigilos fiscal, bancário, telefônico e telemático do empresário. O objetivo do colegiado é não só verificar as comunicações dele com médicos e membros do governo, mas também descobrir se ele financiou iniciativas que podem ter contribuído para a piora da pandemia no país.

"Encontro reservado"

Quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente, em outubro de 2018, Carlos Wizard estava longe de Brasília. Três meses antes, havia se mudado para Boa Vista, capital de Roraima, para ajudar na acolhida dos refugiados da Venezuela, que vinham chegando ao país em peso desde 2016. O empresário permaneceu na cidade por 20 meses e só retornou a Campinas, onde mora, em março de 2020, devido ao fechamento da fronteira com o país vizinho.

Wizard escreveu um livro de 158 páginas sobre a experiência. Na obra, intitulada "Meu maior empreendimento", ele narra como conseguiu "livre trânsito em Brasília" graças ao trabalho em Roraima e se aproximou de várias figuras da República desde 2019. O empresário afirma, inclusive, ter participado de um "encontro reservado" com Bolsonaro e outras autoridades logo antes da viagem da comitiva presidencial para os Estados Unidos, em março de 2020, da qual mais de 20 pessoas voltariam infectadas.

Em suas memórias, o empresário afirma que teve medo de ter contraído o vírus ao saber que Fábio Wajngarten, ex-chefe da secretaria de comunicação da Presidência, estava com o vírus. "Minha mente apenas se tranquilizou quando, horas depois, foi noticiado que o secretário portador do vírus viajara para a Flórida em voo comercial, e não no avião presidencial", escreveu.

Também foi na fronteira com a Venezuela que ele criou laços com o futuro ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que à época coordenava pelo Exército a recepção dos venezuelanos. Ao falar à CPI da Covid, em 19 de maio, Pazuello afirmou que Wizard "virou um amigo" e os dois conversam pelo menos uma vez por mês.

Durante o trabalho de acolhida aos refugiados, Wizard viajou algumas vezes a Brasília para costurar, com membros dos três poderes, soluções que acelerassem a interiorização dos venezuelanos para outras regiões do país. Nessa condição ele reuniu-se, entre outros, com membros da bancada evangélica, com a primeira-dama Michelle Bolsonaro, com a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves e com o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Humberto Martins.

"Quando trabalhamos juntos nesse projeto, pude conhecê-lo como um homem de Deus, uma pessoa comprometida com os valores cristãos mais elevados, um homem que não se envergonha do evangelho de Jesus Cristo", anotou Wizard sobre Martins. Adventista, o magistrado é um dos postulantes à vaga no STF que se abrirá em julho. Bolsonaro tem reiterado que o próximo indicado será "terrivelmente evangélico".

A religião tem um papel fundamental na ida de Wizard a Roraima. De família mórmon, o empresário conta que viajou a pedido da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, em nome da qual havia trabalhado como missionário em Portugal, durante a juventude. Ele recebeu a proposta no primeiro semestre de 2018 e se mudou para Boa Vista em agosto ao lado da esposa e do filho caçula, que acabou transferido para Manaus a pedido da igreja.

Wizard condecorado - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Em novembro de 2020, Wizard foi condecorado por seu trabalho de acolhida dos venezuelanos
Imagem: Reprodução/Facebook

100% cloroquina

Ao assumir o ministério da Saúde, em maio de 2020, Pazuello acabou levando o empresário para o epicentro do combate à pandemia no Brasil. "Quando fui chamado para cá [para o comando da pasta], puxei o Wizard, liguei para ele e falei: você tem condição de tirar mais um tempo e vir nos ajudar aqui? Porque você pode ser um grande link entre o ministério e a compreensão da parte social, do público", explicou Pazuello à CPI da Covid.

Nas primeiras semanas em que esteve em Brasília, Wizard foi tratado como o futuro secretário de ciência e tecnologia do ministério. Mas a nomeação não saiu. Segundo o governo, ele não conseguiu desvencilhar-se do comando de suas várias empresas para assumir o cargo.

Aos 64 anos, Wizard só tornou-se um empresário de grande porte depois dos 30, com a rede de escolas de inglês que ele incorporou ao próprio sobrenome. Com a expansão acelerada dos negócios, ele migrou para outras áreas, especialmente redes de fast food como Pizza Hut, KFC e Taco Bell. Segundo a revista Forbes, Wizard transformou-se em bilionário em 2014, ao vender o Grupo Multi, que congrega suas escolas de idiomas, por cerca de R$ 2 bilhões.

Mesmo sem função oficial, Wizard passou cerca de um mês falando como se estivesse no comando da secretaria. Foi ele quem anunciou que o governo havia encomendado, da Índia, uma remessa de 10 toneladas de matéria-prima para fabricação de cloroquina, medicamento que os bolsonaristas já exaltavam em peso como solução para a pandemia. "Vamos apostar 100%, seguir e defender a cloroquina", declarou ele ao jornal O Globo.

Não há qualquer substância que tenha eficácia comprovada para prevenção ou tratamento precoce da covid. Em outubro do ano passado, a OMS publicou que há evidências conclusivas da ineficácia da hidroxicloroquina contra a doença, e desde dezembro a substância é contraindicada pela entidade para os pacientes. A maioria dos fabricantes brasileiros de cloroquina não recomenda o remédio para covid-19.

A atuação de Wizard no ministério foi encerrada de forma abrupta em 7 de junho de 2020. Na véspera, ele havia sugerido que prefeitos e governadores estariam inflando o número de mortos por Covid para receberem mais recursos da União. A repercussão foi tão ruim que ele se viu obrigado a anunciar o fim de seu trabalho como "conselheiro" da pasta. "Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da Covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas", declarou ele em nota.

Fora do ministério, Wizard passou a atuar em defesa do chamado tratamento precoce. Ao lado de médicos como Nise Yamaguchi, que já foi ouvida na CPI, o empresário capitaneou um "comitê científico independente" que agia, segundo apontam as investigações dos senadores, em paralelo ao Ministério da Saúde para induzir o governo a apostar em ideias como a cura pela cloroquina e a imunidade de rebanho. Durante meses, ele defendeu com veemência, em suas redes sociais, a tese de que "Covid tem tratamento sim".

Na virada para 2021, o empresário acompanhou a mudança de ventos do governo: parou de insistir no tratamento precoce e passou a militar pelas vacinas. Ao lado de empresários como Luciano Hang, dono da Havan, Wizard passou a lutar por uma mudança legislativa para autorizar a iniciativa privada a comprar vacinas por conta própria, para imunizar seus funcionários, desde que doassem parte para o governo. Um texto nesse sentido foi aprovado pela Câmara dos Deputados em abril, mas ainda espera análise do Senado.

O UOL tenta contato com Wizard desde o último dia 16, mas não teve resposta até o fechamento desta reportagem. O empresário, segundo sua defesa, está desde o final de março nos Estados Unidos acompanhando o tratamento médico do pai, de 87 anos, no estado de Utah, onde mora boa parte da família.

A reportagem procurou os advogados de Wizard e enviou questionamentos sobre o papel dele na pandemia. Ao UOL, a defesa afirmou que tentaria obter respostas do empresário, mas não retornou com os esclarecimentos até a publicação deste texto. O espaço está aberto para manifestação.

A trajetória de Wizard em Brasília

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.