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Miranda: Bolsonaro 'olhou no olho' e disse ser 'grave' suspeita da Covaxin

Anaís Motta, Hanrrikson de Andrade e Luciana Amaral

Do UOL, em São Paulo e em Brasília

25/06/2021 04h00Atualizada em 26/06/2021 00h30

O deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) relatou hoje, em depoimento à CPI da Covid, as supostas reações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) após tomar conhecimento das suspeitas de que existiria pressão dentro do Ministério da Saúde para acelerar a importação da vacina indiana Covaxin, contra a covid-19.

Na versão do parlamentar, Bolsonaro reconheceu a gravidade dos fatos e comunicou que repassaria o assunto à Polícia Federal. "Ele [Bolsonaro] falou: Vou acionar o DG [diretor-geral] da PF, porque, de fato, isso é muito grave o que está ocorrendo".

O contato teria ocorrido em 20 de março deste ano, quase um mês depois da assinatura do contrato de aquisição de 20 milhões de doses do imunizante, ao custo final de R$ 1,6 bilhão.

Os fatos em questão foram revelados pelo servidor Luis Ricardo Miranda, irmão do deputado Luis Miranda, que atua na área técnica do Ministério da Saúde responsável por autorizar ou não pedidos de importação.

Supostamente pressionado a dar celeridade ao aval para chegada da Covaxin ao país, o funcionário teria se recusado a agir dessa forma e disse que sua equipe havia identificado falhas de documentação e inconsistências no acordo firmado com o laboratório indiano Bharat Biotech e a sua intermediária no Brasil, a Precisa Medicamentos.

De acordo com Luis Ricardo, teriam pressionado a liberar a importação da Covaxin:

  • Alex Lial Marinho, então coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde do Ministério da Saúde;
  • Roberto Ferreira Dias, diretor do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde;
  • Marcelo Bento Pires, então diretor de Programa do Ministério da Saúde.

Luis Ricardo nega que tenha havido a mesma pressão perante a importação de outras vacinas, como a da Pfizer e Janssen.

Os irmãos Miranda prestaram depoimento nesta sexta-feira (25) à CPI na condição de convidados. A oitiva gera grande expectativa entre os membros da oposição e da base governista, pois o conteúdo das declarações tem potencial para dar luz a um possível esquema de corrupção dentro do Ministério da Saúde. O governo federal nega ter cometido ou compactuado com quaisquer irregularidades.

Segundo Luis Miranda, Bolsonaro recebeu os irmãos pessoalmente em março e, "olhando nos olhos" do deputado do DEM, sinalizou ter reconhecido a gravidade dos fatos.

O parlamentar comentou ainda que o chefe do Executivo federal insinuou que as ações descritas na denúncia poderiam ter algum tipo de vínculo com interesses de um congressista.

Por mais de 12 vezes, Luis Miranda alegou não se lembrar do nome citado por Bolsonaro, o que irritou parte dos senadores presentes. O deputado também não explicou do que se tratava exatamente a suspeita levantada pelo presidente na ocasião.

"Ele [Bolsonaro] nos recebeu num sábado, por conta de que eu aleguei que a urgência era urgente, urgentíssima, devido à gravidade das informações trazidas pelo meu irmão para a minha pessoa. O presidente entendeu a gravidade. Olhando os meus olhos, ele falou: 'Isso é grave!' Não me recordo do nome do parlamentar, mas ele até citou um nome pra mim, dizendo: 'Isso é coisa de fulano'. Não me recordo. E falou: 'Vou acionar o DG da Polícia Federal, porque, de fato, Luis, isso é muito grave, isso que está ocorrendo'."

Só depois de ser pressionado por senadores, Miranda afirmou que Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, era o nome do deputados citado por Bolsonaro.

Questionado pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), se havia procurado algum outro órgão ou autoridade para dar andamento às denúncias, o deputado declarou ter ido "direto no presidente da República".

"(...) O presidente sabe. Ele teria me poupado de passar por todo esse constrangimento. Ele sabe de quem é essa confusão."

O contrato entre o Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos foi assinado em 25 de fevereiro deste ano. Mesmo que a área técnica do ministério tivesse acelerado o aval à importação, o governo ainda dependeria de autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a aplicação da Covaxin no Brasil.

Com ressalvas e quantidade predeterminada, a liberação do órgão regulatório só saiu em 4 de junho.

Luis Ricardo cita relato de pedido de propina

No depoimento, Luis Ricardo afirmou ter sido informado por um colega sobre a cobrança de propina por vacina na pasta.

Ao ser questionado pelo presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Omar Aziz (PSD-AM), sobre os envolvidos no relato do pedido de propina, Luis Ricardo respondeu:

"O ministério estava sem vacina e um colega de trabalho, Rodrigo, servidor, me disse que tinha um rapaz que vendia vacina e que esse rapaz disse que os seus, alguns gestores, estavam pedindo propina."

Indagado pelos senadores sobre quem seria esse "rapaz", Luis Ricardo disse que "ele [Rodrigo] não citou o nome". Ele também não deixou claro de onde seria esse "rapaz".

Inicialmente, Luis Ricardo não informou o sobrenome do colega nem sua função no ministério. Mais tarde, em questionamento de um senador, afirmou se tratar de "Rodrigo de Lima", que seria funcionário terceirizado da pasta. Senadores da oposição defenderam que Rodrigo seja chamado para prestar explicações à CPI.

Em mensagem de texto no celular enviada ao irmão e com print entregue à CPI, Luis Ricardo escreveu: "Aquele rapaz que me procurou dizendo que tem vacina. Disse que não assinaram porque os caras cobraram dele propinas para assinar o contrato. Vou perguntar se ele tem provas".

A conversa é apontada como sendo de 20 de março deste ano.

Em seguida, Luis Ricardo fala para o irmão que voltou a receber uma ligação de seu coordenador perguntando sobre a situação do pedido de importação da Covaxin e solicitando que acelerasse o processo, inclusive "dizendo que a empresa foi agora ao ministério levar documentos".

O deputado então recomenda que avise a Polícia Federal.

Pazuello previa exoneração por não ceder a extorsão, diz deputado

O deputado Luis Miranda disse ter alertado o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello sobre indícios de irregularidades em relação a contrato para aquisição da vacina indiana Covaxin.

Segundo Miranda, Pazuello afirmou que já sabia que deixaria o cargo de ministro da pasta por não ceder a supostas extorsões e chantagens de parlamentares.

Ao sair do ministério, em março, Pazuello fez acusações de que havia interesse nos recursos da pasta em discurso de despedida de sua equipe.

O general disse que "todos queriam o 'pixulé' do final do ano", numa referência à distribuição dos recursos da pasta. O termo 'pixulé' é uma gíria e refere-se a uma pequena gorjeta.

Tentativa de obstrução de governistas

Senadores da base governista adotaram uma estratégia de obstrução durante o início dos depoimentos de hoje. Um dos membros da CPI mais exaltados durante a reunião era o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).

O parlamentar interrompeu a fala dos depoentes por diversas vezes —em especial quando Luis Ricardo, autor das denúncias incorporadas ao escopo de investigação da CPI, tentou explicar a cronologia dos eventos que ocorreram durante a análise do pedido de importação da Covaxin.

Diferentemente do que vinha ocorrendo nas audiências das últimas semanas, a "tropa de choque" bolsonarista optou por atuar em bloco na reunião de hoje. Por mais de uma vez, obstruções iniciadas por Bezerra foram acompanhadas por colegas governistas, como Ciro Nogueira (PP-PI) e Marcos Rogério (DEM-RO).

Para Marcos Rogério, Luis Miranda teria uma "motivação" para fazer as denúncias, sem citar quais seriam, a seu ver.

Depois de um debate mais acalorado, Luis Miranda chegou a ameaçar ir embora da CPI e se disse indignado pelas insinuações de que ele o irmão estariam, sob juramento, mentindo à comissão.

A estratégia de obstrução gerou reclamações dos colegas da oposição e da ala que se diz independente, mas é crítica ao governo Bolsonaro. Ante às manifestações de Bezerra, o presidente da CPI comentou: "Hoje o senhor está demais".

"Nunca vi o senhor desse jeito", emendou o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Em resposta, governo mandar PF investigar deputado

O ministro Onyx Lorenzoni, da Secretaria-Geral da Presidência, disse na quarta (23) que Bolsonaro determinou à Polícia Federal que investigue a declaração do deputado. Segundo o ministro, as declarações de Luis Miranda são "mentirosas" e foram construídas para "atingir a imagem do presidente Jair Bolsonaro".

No depoimento hoje, o deputado federal ainda afirmou que o irmão lhe entregou, duas vezes, dossiês sobre eventuais irregularidades no Ministério da Saúde nos últimos anos que, por sua vez, teriam sido repassados a Onyx Lorenzoni quando ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro.

Luis Miranda é um dos principais aliados do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), eleito ao cargo com a ajuda do Palácio do Planalto em fevereiro.

Renan Calheiros afirmou que a fala de Onyx "interfere nas investigações" e "coage testemunhas", e defendeu sua convocação à comissão. Omar Aziz também já se pronunciou no mesmo sentido.

O acordo do governo federal para a compra da Covaxin com a Precisa Medicamentos é investigado pelo MPF, que identificou indícios de crime no contrato e suspeita de superfaturamento, corrupção, entre outras possíveis irregularidades.

Brasil ainda não recebeu doses da Covaxin

Apesar do aval da Anvisa, com restrições, para a importação de 4 milhões de doses da Covaxin, o Brasil ainda não recebeu nenhum lote com doses da vacina indiana.

A previsão do Ministério da Saúde era que as primeiras doses chegassem ao país em março. O atraso no cronograma de entregas também é um fato que será abordado pela CPI da Covid dentro da investigação acerca de possíveis irregularidades no acordo.

A Precisa Medicamentos, empresa que se apresentou como representante do laboratório indiano no país e conduziu todo o processo de negociação, deverá prestar esclarecimentos à CPI e ao MPF. O dirigente da companhia, Francisco Emerson Maximiniano, foi convocado para depor na CPI —ele seria ouvido no Senado nesta semana, mas o depoimento foi adiado porque ele cumpre quarentena após regressar de viagem à Índia.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.