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Intermediária da Covaxin tinha plano para venda casada de vacina com seguro

Adnan Abidi/Reuters
Imagem: Adnan Abidi/Reuters

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, em Brasília

15/07/2021 04h00

O grupo do empresário Francisco Emerson Maximiano, responsável por negociar a Covaxin com o Ministério da Saúde, planejava vender ao mercado privado apólices de seguro, segundo o UOL apurou, com direito a duas doses de vacina, ao custo de R$ 1.900 cada uma.

Sem aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o produto chegou a ser lançado em 11 de novembro do ano passado — período em que o governo federal dava celeridade às tratativas para adquirir a Covaxin da Precisa Medicamentos, intermediária na compra de 20 milhões de doses produzidas pelo laboratório indiano Bharat Biotech.

O contrato entre União, Precisa e Bharat Biotech foi celebrado em 25 de fevereiro deste ano, ao custo empenhado (reservado para pagamento, porém não executado) de R$ 1,6 bilhão. A transação é objeto de investigação na CPI da Covid e no MPF (Ministério Público Federal). Há suspeitas de várias irregularidades, como superfaturamento, corrupção e tráfico de influência.

A Precisa pertence a Maximiano, mesmo dono da BSF Saúde, importadora que concebeu as apólices junto à seguradora italiana Generali. Depois de um curto período em atividade, o produto foi interrompido ainda no fim de 2020. O motivo: uma notificação do Procon de São Paulo.

Os fiscais do Procon consideraram, na ocasião, que se tratava de uma venda casada de um produto que ainda não existia e, mesmo que estivesse à disposição, não tinha aval da Anvisa. De acordo com a Generali, nenhuma apólice foi vendida (confira na íntegra a nota da empresa ao fim deste texto).

Segundo apurou o UOL, o projeto foi engavetado até segunda ordem, mas havia perspectiva de reformulá-lo e adequá-lo às normas em vigor. Por esse motivo, a venda da Covaxin ao governo federal foi vista como uma oportunidade promissora e lucrativa.

Lucro bilionário

A estratégia comercial por trás da Covaxin não se limitava ao acordo com o Ministério da Saúde —devido a cláusulas de confidencialidade, a Precisa não é obrigada a informar qual seria o bônus a ser recebido pela intermediação. A principal perspectiva de lucro, que poderia chegar a cerca de R$ 1 bilhão, era a comercialização do imunizante no setor privado, passo posterior ao processo de importação e obtenção de registro.

Para tal, havia duas alternativas em curso. Além da possibilidade de uma venda casada (seguro com vacina) a clientes da italiana Generali, os executivos do grupo de Maximiano planejavam a venda direta de lotes fracionados a clínicas associadas à ABCVAC (Associação Brasileira de Clínicas de Vacina). A legislação em vigor proíbe esse tipo de operação, mas há um projeto em tramitação no Congresso para flexibilizar as regras relacionadas ao setor privado.

Para suprir a demanda inicial, a Precisa Medicamentos já havia acertado com a Bharat Biotech a reserva de 5 milhões de unidades —lote que seria destinado exclusivamente a empresas.

O UOL apurou com representantes do setor que a escolha pela Covaxin — cujas pesquisas estavam mais atrasadas do que a dos imunizantes concorrentes — teve um motivo simples: a Bharat Biotech foi o único fabricante que topou vender vacinas com destino final à iniciativa privada. Laboratórios como Pfizer e Janssen só dialogam com instituições governamentais.

Além disso, a Precisa já tinha relacionamento prévio com a indústria farmacêutica da Índia. O preservativo feminino que é fornecido pela empresa de Maximiano ao governo federal é comprado da fornecedora indiana Cupid Limited. Na terça-feira (13), reportagem do UOL mostrou que atrasos na entrega deste produto ameaçam a execução do contrato.

A porta de entrada

Para que os planos saíssem do papel, a Covaxin precisava de autorização e de registro na Anvisa — tanto de importação como da aprovação dos estudos clínicos que existiam até então (a pesquisa não tinha avançado sequer até a fase 3, última etapa do processo regulatório).

A Precisava confiava que a oferta de 20 milhões de doses ao Ministério da Saúde era uma porta de entrada ideal para que o órgão regulatório agilizasse todo o processo.

No período entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano, o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sofria duras críticas em decorrência do atraso na aquisição de vacinas. A demora do acerto com a Pfizer, por exemplo, foi o estopim da queda do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em março de 2021.

Indiretamente e sem menção aos detalhes, a estratégia foi confirmada pela diretora técnica da Precisa, Emanuela Medrades, durante o seu depoimento à CPI da Covid, ontem. "É importante ressaltar que nenhuma comercialização [com o mercado privado] seria possível sem a autorização da Anvisa, sem o produto ter sido registrado. Então, tudo que tinha sido feito e foi feito foi para que o produto tivesse o registro final e que pudesse ter a sua comercialização."

A pressa para zerar pendências na Anvisa e viabilizar a importação do produto tinha uma justificativa essencial. Em 19 de janeiro, um mês antes de fechar com o governo, a Precisa já havia negociado a Covaxin com empresas filiadas à ABCVAC. Alguns acordos, inclusive, garantiram pagamento antecipado a representante da Bharat Biotech e entregas previstas para até 30 de abril.

Como até hoje a parceira do laboratório indiano não conseguiu importar e distribuir a vacina, o que configura quebra de contrato com as filiadas à ABCVAC, a empresa responde a pelo menos um processo judicial (em tramitação no Tribunal de Justiça de São Paulo).

O plano da Precisa era obter os imunizantes a US$ 15 a dose, valor estabelecido no contrato firmado com o Ministério da Saúde, e revender o contingente reservado à iniciativa privada por preços que poderiam chegar a US$ 40 a dose. As informações constam em documentos enviados à CPI da Covid pela Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (entidade que reúne 200 associados e concentra mais da metade do setor).

Último obstáculo

A partir da conclusão dos procedimentos para registrar e efetivar a importação da Covaxin, o último obstáculo em relação às negociações com o mercado privado seria a limitação imposta pela legislação nacional. Emissários do setor no Congresso Nacional relatam que já havia, à época, otimismo em relação ao avanço de um projeto de lei que flexibilizaria as regras para negociação de vacinas com o setor privado.

De fato, isso ocorreu com a aprovação e sanção da Lei 14.125, de 10 de março de 2021. O dispositivo tem caráter regulatório e diz que pessoas jurídicas podem comprar imunizantes com autorização temporária para uso emergencial "desde que sejam integralmente doadas ao SUS (Sistema Único de Saúde), a fim de serem utilizadas no âmbito do PNI (Programa Nacional de Imunizações)".

Segundo a lei, após a imunização de grupos prioritários as empresas poderiam "adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita".

Outro lado

A reportagem não localizou os representantes da importadora BSF. A empresa pertence ao mesmo dono da Precisa, Francisco Maximiano. Por email, foram enviados à assessoria de comunicação questionamentos endereçados ao empresário. Não houve resposta até a publicação deste texto.

Já a seguradora Generali se posicionou por meio de nota enviada ao UOL. Leia a íntegra da manifestação:

"A Generali Brasil esclarece que fechou em novembro de 2020 um acordo para desenvolvimento de um seguro de vida em grupo com o benefício de vacinação contra covid-19. Este seguro foi idealizado em um momento em que se falava em lançamento de vacinas no mercado privado. Uma vez que as autoridades se manifestaram de forma contrária à venda particular de imunizantes, o desenvolvimento do produto foi interrompido, sem registro perante o órgão regulador, e nenhuma apólice foi vendida."