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Lula 'passou pano' em escândalo para facilitar aliança com Temer, diz livro

Petista amenizou farra das passagens para não criar problemas à chapa Dilma-Temer, mostram jornalistas - Ricardo Stuckert/PR
Petista amenizou farra das passagens para não criar problemas à chapa Dilma-Temer, mostram jornalistas Imagem: Ricardo Stuckert/PR

Do UOL, em Brasília

18/08/2021 04h00

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) atuou para amenizar o escândalo da farra das passagens em 2009. A meta do petista era "passar pano" para facilitar a aliança com o PMDB, de Michel Temer. As informações estão no livro "Nas asas da mamata: a história secreta da farra das passagens aéreas no Congresso Nacional", dos jornalistas Eduardo Militão, repórter do UOL, Eumano Silva, Lúcio Lambranho e Edson Sardinha, lançado na terça-feira (17) pela editora Matrix.

Com exclusividade, o UOL publica um capítulo da obra abaixo deste texto.

O objetivo era proteger aliados atingidos pelas denúncias de uso generalizado de verbas do Congresso Nacional em viagens de avião mundo afora e ainda ceder bilhetes para amigos, parentes, terceiros e fazer trocas com agências de turismo.

Assim, a chapa da então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff (PT) com o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB), que atuou para preservar seus colegas na "farra das passagens", teria um problema a menos para se preocupar durante a corrida eleitoral de 2010. O próprio Temer havia passeado para uma praia com sua mulher, Marcela, usando dinheiro público.

O PMDB mantinha uma aliança com Lula, que era formada ainda pelo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Dilma e Temer foram eleitos em 2010 e reeleitos em 2014. Mas o partido do vice rompeu com os petistas em 2016, assumiu o poder após o impeachment de Dilma e mudou de nome, para MDB.

Veja, com exclusividade, a íntegra de um dos capítulos de "Nas asas da mamata".

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Capa do livro "Nas Asas da Mamata", publicado pela Editora Matrix
Imagem: Reprodução/Matrix

Capítulo 29 - Quando fala, Lula passa pano

Em abril de 2009, penúltimo ano do segundo governo, o presidente Lula desfrutava de altos índices de popularidade no Brasil e de prestígio crescente no exterior. Em 2005, o escândalo do Mensalão causou uma crise séria ao petista. Ele quase perdeu o mandato. No entanto, reverteu a situação. Conseguiu reeleger-se em 2006 mantendo sua aliança com o empresariado, representado pelo vice, o dono de indústrias têxteis José Alencar (PR). Naquele momento, Lula demonstrava fôlego para enfrentar a crise econômica internacional iniciada em 2008.

Apesar da queda do crescimento no início do ano, a aposta no mercado interno dava sinais positivos contra as turbulências externas. O colapso no sistema de créditos provocara uma quebradeira de bancos nos Estados Unidos, com repercussões em todo o mundo financeiro.

A perspectiva de sucesso na superação da crise sustentava uma onda de otimismo em relação ao Brasil. Em Londres, durante uma reunião de líderes mundiais, no dia 2 de abril de 2009, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, exaltou o carisma do petista.

"Esse é o cara! Eu adoro esse cara! É o mais popular político do mundo!", exclamou o norte-americano, em uma conversa informal entre participantes do encontro.

As boas relações internacionais facilitavam as pretensões do Brasil de sediar as Olimpíadas de 2016. A disputa foi em Copenhague, na Dinamarca, ainda em 2009.

Nesse ambiente de euforia, Lula permaneceu longe das discussões sobre as passagens nas duas primeiras semanas de revelações extraídas do arquivo da Câmara. O presidente só se manifestou publicamente em relação ao tema nos dias 30 de abril e 1° de maio, depois da publicação da reportagem sobre Fábio Faria e as celebridades.

Cercado por jornalistas, Lula se encontrava na Barra da Tijuca, no Rio, para participar da inauguração de um centro internacional de reabilitação da Rede Sarah de hospitais.

O site da Folha de S. Paulo registrou as opiniões do petista.

"Eu não sei por que vocês vendem como novidade o que acontece na Câmara. Qual a novidade que vocês descobriram? Que um deputado utiliza passagem? Isso é utilizado desde que o Congresso é o Congresso.
[...] Qual é o país que não tem um problema? Por que nós vamos achar que uma denúncia que haja contra um deputado ou qualquer pessoa que fez malversação com o dinheiro público atrapalha o projeto de nação de construir uma Olimpíada?
[...] Não acho crime deputado dar passagem para dirigente sindical ir a Brasília. Eu quando era deputado (na década de 1980), muitas vezes convoquei dirigentes da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e de outras centrais para se reunirem com passagens no meu gabinete.
[...] Graças a Deus não levei filho meu para a Europa. Mas acho que o deputado usar a cota para levar a mulher para Brasília, qual é o crime?
Existe uma hipocrisia muito grande nessa história da Câmara. Sempre foi assim. Não vejo onde está o tamanho do crime em levar a mulher ou o sindicalista para Brasília.
[...] Não acho correto, mas não acho crime dar passagem para outra pessoa.
O problema do Brasil não é esse. Isso pode ser corrigido por decisão da Mesa. Isso já está na imprensa há mais ou menos um mês. Temos coisas mais importantes para discutir e aprovar no Congresso Nacional."

Como visto, sem criticar os abusos cometidos pelos parlamentares, Lula procurou justificar as viagens menos afrontosas à moralidade pública. Alegou se tratar de uma prática antiga no Congresso - o que não era verdade. Lula defendeu o uso da cota por sindicalistas e pelas esposas de deputados e senadores.

Sobre as viagens de parentes para o exterior, apenas tangenciou, sem explicitar reparos ao comportamento dos congressistas. O presidente se mostrou mais incomodado com o noticiário sobre as cotas. Indiretamente, chamou de "hipocrisia" o trabalho da imprensa na publicação dos bilhetes dos parlamentares.

Os dirigentes sindicais mencionados pelo petista, na verdade, nada tinham a ver com a farra das passagens. O padrão de desvio do dinheiro do mandato para terceiros compunha outro perfil de beneficiados.

Por exemplo, líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) distribuiu 258 bilhetes entre junho de 2007 e 14 de fevereiro de 2009, de acordo com os registros da Gol e da Varig. O próprio parlamentar embarcou 13 vezes no mesmo período.

Familiares de Renan fizeram check-in em pelo menos 29 oportunidades. Um primo, Tito Uchôa, e a esposa, Verônica Calheiros, deslocaram-se durante recesso parlamentar, por conta do Senado, entre São Paulo e Brasília.

Renan Filho, prefeito de Murici (AL), cidade dominada pelo clã, também desfrutou do transporte bancado pelo mandato do pai. Levou como convidada a mulher, Renata, e os descendentes Rodolfo e Rodrigo. De modo geral, percorreram o circuito Maceió-Brasília-Salvador-Maceió.

* * *

O quadro político de 2009 ajuda a entender o tom amistoso da entrevista de Lula na Barra da Tijuca. Desde 2007, PT e PMDB mantinham acordo de rodízio nas eleições para o comando da Câmara.
Assim, o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) ocupou a presidência de 2007 a 2009, sucedido por Temer. O acordo ainda elegeu Marco Maia (PT-SP) e Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) nos biênios seguintes.

A aliança entre os dois partidos facilitou a proteção mútua estabelecida entre o Planalto e a cúpula da Câmara no episódio das passagens. Mais à frente, a dobradinha se repetiria para defender o peemedebista Sarney na crise dos atos secretos do Senado.

Enquanto isso, Lula ganhava popularidade e preparava terreno para lançar a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, para sua sucessora no ano seguinte, tendo Temer como vice na chapa.

Porém, ao defender genericamente as viagens de terceiros, o presidente da República beneficiava não somente aliados. Entre os congressistas que distribuíram créditos das cotas estavam também velhos adversários, como o ex-senador Jorge Bornhausen (PFL-SC).

Político de longa trajetória, integrante de uma tradicional família de Santa Catarina, Bornhausen terminara o segundo mandato de senador em fevereiro de 2007. Ex-governador do estado pelo PDS durante a ditadura, indicado por eleição indireta, acompanhou a dissidência que apoiou Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

Depois, ocupou o Ministério da Educação no governo Sarney. Bornhausen ainda participou, como ministro da Secretaria de Governo, de uma tentativa frustrada de salvar Fernando Collor de Mello do impeachment, em 1992.

Fora do Senado em 2007, Bornhausen circulou entre Florianópolis, Chapecó, São Paulo e Brasília. A mulher, Dulce, embarcou três vezes, uma delas até Recife. Ex-ponta-esquerda do Grêmio de Porto Alegre e genro do ex-senador, Renato Sá também aproveitou os créditos do Senado. Foi de Florianópolis até Chapecó (SC). Funcionário do casal Bornhausen, Wagner Brasil teve dois bilhetes emitidos em seu nome. Voou entre Florianópolis, Rio de Janeiro e São Paulo.

As informações sobre o gabinete do ex-senador de Santa Catarina foram publicadas pelo Congresso em Foco no dia 7 de maio. Alguns dias antes, o site postara informações sobre a cota do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), filho do ex-ministro. Dois filhos do parlamentar, Bruno e Rodrigo, transitaram entre Nova York e São Paulo por conta da Câmara.

O deputado esteve em Paris com dinheiro do mandato. A assessoria do parlamentar informou ter se tratado de missão oficial a Londres, sobre a Amazônia, em evento com o príncipe Charles - com escala na França.

Um dia depois, o site mostrou que pelo menos outros dez ex-senadores, além de Bornhausen, usufruíram dos créditos juntados durante os mandatos. No total, desse grupo de parlamentares saíram 291 voos para eles próprios, familiares, amigos e colaboradores, entre fevereiro de 2007 e novembro de 2008. As partidas dos passageiros foram registradas pelas empresas aéreas.

Vice-governador do Maranhão, João Alberto (PMDB), ligado a Sarney, liderou o ranking dos mais gastadores entre os ex-senadores. O peemedebista - ele próprio com 22 viagens - e seus convidados embarcaram 98 vezes com verbas da cota. Segundo colocado entre os gastadores, o ex-ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho (DEM-BA), com 79 voos, seguido de Roberto Saturnino (PT-RJ), responsável por 54 viagens.

Mesmo na cadeira de governador de Alagoas, Teotônio Vilela Filho (PSDB) resgatou sobras da cota para viajar. Um funcionário do gabinete do suplente que assumiu sua vaga esteve quatro vezes em Maceió, patrocinado por sua antiga cota parlamentar. Filha de Teotônio, Maria Vilela também gastou parte da cota, em um deslocamento até São Paulo.

José Jorge, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) - justo do TCU, o órgão fiscalizador -, o ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PMDB), e a então presidente do PSOL, Heloísa Helena, também pagaram transporte aéreo particular com dinheiro público.

Outro que acumulou créditos em mandato no Senado foi o deputado Alberto Silva (PMDB-PI). Político de extensa carreira, governou o Piauí duas vezes. Morreu em setembro de 2009, aos 90 anos.

Heloísa Helena cedeu a cota para três viagens de um filho, sempre entre Brasília e Maceió, e outras vezes para pessoas não identificadas pela reportagem.

Dois senadores tiveram a cota consumida depois de mortos. Créditos do mandato de Ramez Tebet (PMDB-MS), falecido em novembro de 2006, resultaram em sete passagens emitidas entre agosto de 2007 e janeiro de 2008.

As beneficiadas pelo dinheiro do mandato do parlamentar do Mato Grosso do Sul foram duas funcionárias de seu antigo gabinete e a irmã de uma delas - que fez o trecho Assunção (Paraguai)-Curitiba. Pai da futura senadora Simone Tebet, Ramez presidiu o Senado de 2001 a 2003. Como dito no capítulo 18, outra cota usada depois da morte foi a do senador Jefferson Peres (PDT-AM), que faleceu em maio de 2008.

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Eleito deputado em 2006, o fundador da igreja Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, Robson Rodovalho (DEM-DF), licenciou-se do cargo em maio de 2008 para assumir a Secretaria do Trabalho do Distrito Federal. Enquanto esteve na Câmara, patrocinou com dinheiro público o transporte de pastores e artistas gospel convidados para eventos religiosos.

Oito integrantes da banda de rock cristão Oficina G3 e o rapper DJ Alpiste viajaram de São Paulo para a capital federal às custas dos contribuintes, para participar, em agosto de 2007, do "Desperta Brasília", show evangélico apoiado pela igreja de Rodovalho. A organização do espetáculo cobrou R$ 10,00 ou um quilo de alimento pelo ingresso individual. O dinheiro e os produtos arrecadados, segundo informou um integrante da Sara Nossa Terra, seriam distribuídos para famílias carentes.

Pastora, cantora e compositora evangélica, Alda Célia Cavagnaro voou do Rio de Janeiro para Brasília em julho de 2007, também financiada pela cota da Câmara. O voo JJ 3822 da TAM partiu às 10h22 de 17 de julho de 2007. Nome conhecido da música cristã, a artista ganhou disco de ouro por vender em 2002 mais de 100 mil cópias do álbum Voar como a águia.

Um culto dirigido pelo próprio bispo Rodovalho em setembro de 2007, em Brasília, contou com a participação da cantora Heloísa Rosa. A convidada viajou acompanhada do marido, Marcus Grubert, de São Paulo para a capital da República.

Os repórteres identificaram outras três cantoras e cinco pessoas ligadas à igreja. Os que foram localizados informaram desconhecer o fato de que as viagens tivessem sido pagas pela Câmara. (fim do capítulo 29).