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Cobiçado pelo 'gabinete do ódio', sistema DarkMatter é usado por ditaduras

Jamil Chade e Lucas Valença

Do UOL, em Genebra e em Brasília

18/01/2022 04h00

A tecnologia de espionagem DarkMatter, que um integrante do "gabinete do ódio" negociou em Dubai, durante a viagem do presidente Jair Bolsonaro (PL) em novembro do ano passado, foi utilizada pelos regimes sauditas e dos Emirados Árabes para monitorar e silenciar opositores.

A empresa desenvolvedora da ferramenta, também chamada DarkMatter, surgiu nos Emirados Árabes Unidos como uma tentativa de prestar serviço ao governo local, que temia os efeitos da Primavera Árabe. Para isso, passou a monitorar jornalistas e defensores de direitos humanos, além de atores políticos.

Nos últimos anos, porém, proliferam as denúncias de como o hackeamento foi usado contra jornalistas e opositores de diferentes governos.

Processos judiciais

Um dos usuários do sistema teria sido o governo saudita. Em 2020, a jornalista libanesa da Al-Jazeera Ghada Oueiss entrou com um processo nos Estados Unidos contra os líderes Mohammed bin Salman (Arábia Saudita), Mohammed bin Zayed (Abu Dhabi), e a empresa DarkMatter por um ataque contra seu celular.

A ativista saudita de direitos humanos Loujain AlHathloul também entrou com um processo contra os fabricantes da tecnologia, depois que descobriu que seu celular havia sido hackeado por meio da DarkMatter.

Jornalista saudita foi monitorado

Nos EUA, o jornal The Washington Post revelou que, na base do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, colunista do periódico e grande crítico do governo de Riad, estava justamente uma operação que tinha como objetivo garantir o monitoramento da imprensa e de opositores, usando diversas tecnologias, inclusive a da DarkMatter.

Memorial Jamal Khashoggi - Ozan KOSE / AFP - Ozan KOSE / AFP
Amigos de Jamal Khashoggi seguram fotos do jornalista
Imagem: Ozan KOSE / AFP

A reportagem do jornal americano aponta como o Centro Saudita para Estudos e Assuntos de Mídia na Corte Real estaria na origem dessa polêmica. O órgão governamental era comandado à época por Saud al-Qahtani, funcionário próximo do príncipe saudita Mohammed bin Salman.

Qahtani construiu uma rede de monitoramento e manipulação de mídia social para promover a agenda do príncipe saudita e calar seus inimigos. Para tanto, lançou mão de softwares espiões, entre eles a DarkMatter e o Pegasus, desenvolvido pela NSO Group —e que também tentou ser adquirido pelo "gabinete do ódio" (grupo de assessores que trabalham no Palácio do Planalto com foco nas redes sociais e em ataques a adversários políticos do presidente), como revelou o UOL.

O príncipe saudita Mohammed bin Salman - AFP PHOTO / SAUDI ROYAL PALACE / BANDAR AL-JALOUD - AFP PHOTO / SAUDI ROYAL PALACE / BANDAR AL-JALOUD
O príncipe saudita Mohammed bin Salman
Imagem: AFP PHOTO / SAUDI ROYAL PALACE / BANDAR AL-JALOUD

Há dois anos, quando Bolsonaro foi até a Arábia Saudita, a viúva do jornalista assassinado, Hatice Cengiz, que conversou com exclusividade com o UOL, fez um apelo para que o brasileiro fizesse "pressão" nos líderes sauditas para que explicações fossem prestadas.

"Bolsonaro deve mencionar questões de direitos humanos e o assassinato de Khashoggi quando ele estiver com o príncipe herdeiro", afirmou à época. Mas ela foi ignorada.

Democratas pedem ação de Biden contra empresa

O senador americano Ron Wyden, presidente do Comitê de Inteligência, escreveu um documento ao governo de Joe Biden pedindo que a DarkMatter seja uma das empresas punidas pela Casa Branca por "permitir violações de direitos humanos por regimes autoritários". Para ele, outras três companhias atuam da mesma forma, entre elas a NSO.

Na carta, obtida pelo UOL, ele e outros senadores democratas pedem que Biden aplique sanções contra as empresas que permitirem crimes como "prisões, desaparecimentos, tortura e morte de ativistas".

Segundo a correspondência, a DarkMatter "invadiu os dispositivos de ativistas de direitos humanos e jornalistas, inclusive americanos, em nome dos Emirados Árabes Unidos".

"De acordo com os pesquisadores cibernéticos da Universidade de Toronto, vários dos ativistas visados pela DarkMatter foram posteriormente detidos, presos ou condenados à revelia pelo governo dos Emirados Árabes Unidos", diz o texto.

Indiciamento nos EUA

Em setembro do ano passado, três fundadores da empresa DarkMatter foram indiciados nos EUA por fraude e pela exportação ilegal de tecnologia sensível.

Marc Baier, Ryan Adams e Daniel Gericke - os criadores da empresa - fecharam um acordo e tiveram de pagar uma multa de US$ 1,6 milhão para encerrar o caso no Departamento de Justiça norte-americano.

"De acordo com documentos judiciais, os réus trabalharam como gerentes sênior em uma empresa dos Emirados Árabes Unidos que apoiou e realizou operações de exploração de redes de computadores (ou seja, "hacking") em benefício do governo dos Emirados Árabes entre 2016 e 2019", afirmou o Departamento de Justiça à época.

Segundo o órgão, os atuais representantes da empresa, durante as apurações, não tinham a licença necessária concedida pela Diretoria de Controles Comerciais de Defesa do Departamento de Estado dos EUA, já que o serviço oferecido era considerado sensível e de "Defesa".

"Estes serviços incluíam o fornecimento de apoio, direção e supervisão na criação de sofisticados sistemas de 'clique zero' de hacking e coleta de informações —ou seja, um que pudesse comprometer um dispositivo sem qualquer ação por parte do alvo", diz o documento ao qual o UOL teve acesso.

O sistema era usado, segundo os documentos oficiais norte-americanos, para "obter e usar ilegalmente credenciais de acesso para contas online emitidas por empresas dos EUA, e para obter acesso não autorizado a computadores, como telefones celulares, em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos".

A procura pela ferramenta

Desenvolvido, em sua maioria, por programadores israelenses egressos da Unidade 8200, força de hackers de elite vinculada ao exército de Israel, a DarkMatter foi abordada por um integrante do chamado 'gabinete do ódio', como revelado ontem pelo UOL, em uma feira aeroespacial conhecida como Dubai AirShow.

O encontro ocorreu no stand de Israel enquanto o presidente Jair Bolsonaro inaugurava o chamado "pavilhão Brasil" no mesmo evento, ao cumprir uma de suas agendas oficiais na visita que fez ao Emirados Árabes em novembro de 2021.

Com sede em Abu Dhabi, a companhia foi procurada por um emissário ligado ao vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente, com o interesse de municiar o grupo paralelo com uma poderosa ferramenta espiã, para ser usada em ano eleitoral.

Procurados pela reportagem, o vereador Carlos Bolsonaro, o GSI e o Palácio do Planalto não responderam aos questionamentos enviados. O UOL se coloca à disposição para manifestações futuras.