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Fantasma e R$ 776 mil em salário: a relação da ex de Adriano e os Bolsonaro

O ex-PM Adriano Nóbrega era acusado de chefiar milícia e grupo de matadores no Rio - Reprodução
O ex-PM Adriano Nóbrega era acusado de chefiar milícia e grupo de matadores no Rio Imagem: Reprodução

Igor Mello

Do UOL, no Rio

09/04/2022 04h00

O áudio em que a viúva do ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, Júlia Lotufo, diz que Danielle Mendonça da Nóbrega —a primeira esposa dele— foi funcionária fantasma no gabinete de Flávio Bolsonaro (PL) é mais um elemento ligando a família de Jair Bolsonaro (PL) e o ex-PM assassinado.

Durante 11 anos, Danielle esteve nomeada como funcionária de Flávio na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Segundo o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), ela recebeu R$ 776 mil em salários durante esse período. Apontada como funcionária fantasma, Danielle foi denunciada no escândalo da rachadinha por organização criminosa e peculato.

No entanto, boa parte das provas usadas pelos promotores —como as quebras de sigilo fiscal e bancário— foram anuladas, e a denúncia não chegou a ser analisada pela Justiça do Rio.

No áudio obtido pela Folha de S.Paulo, Júlia Lotufo diz que a primeira mulher de Adriano recebia salário sem trabalhar. A interceptação foi feita durante as investigações que resultaram na Operação Gárgula, deflagrada pelo MP-RJ em março de 2021, mês seguinte à morte de Adriano por policiais na Bahia.

"Ela foi nomeada por 11 anos. Onze anos levando dinheiro, R$ 10 mil por mês para o bolso dela. E agora ela não quer que ninguém fale no nome dela? [...] Bateram na casa dela porque a funcionária fantasma era ela, não era eu", disse Júlia, no áudio.

Capitão Adriano, como era conhecido, foi acusado de ser chefe da principal milícia de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio, e do Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel.

Segundo o MP-RJ, parte da remuneração de Danielle na Alerj foi encaminhada a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, o que consiste na prática da rachadinha, de acordo com promotores.

Segundo as investigações, Danielle transferiu diretamente de sua conta para Queiroz R$ 34,6 mil, além de ter sacado outros R$ 15,6 mil em espécie. O MP-RJ diz também que contas controladas por Adriano passaram a Queiroz mais R$ 115,6 mil (leia mais abaixo).

Além de Danielle, Flávio Bolsonaro empregou em seu gabinete Raimunda Veras Magalhães, mãe do Capitão Adriano. Os promotores afirmam que ela também era funcionária fantasma.

Raimunda é amiga do ex-assessor Fabrício Queiroz. A mulher do ex-funcionário de Flávio Bolsonaro, Márcia Oliveira de Aguiar, viajou em sigilo ao interior de Minas Gerais, em dezembro de 2019, para encontrar Raimunda e levar um recado de Queiroz para o Capitão Adriano, que estava foragido.

Flávio nega que houvesse um esquema de rachadinha em seu gabinete e sustenta que, até onde sabia, todos os funcionários trabalhavam de acordo com as regras da Alerj.

Ao MP, Queiroz afirmou que recolhia parte do salário de assessores para contratar mais funcionários para a equipe. Ao longo das investigações, ele negou ter cometido crimes.

O UOL não localizou Danielle e Raimunda para se posicionarem sobre as investigações.

Flávio admitiu saber de parentesco com Adriano

Em depoimento ao MP, Flávio Bolsonaro admitiu que sabia do parentesco de Danielle e de Raimunda com o ex-PM. Segundo ele, sua relação com Capitão Adriano começou por intermédio de Queiroz, com aulas de tiro.

Em seguida, Flávio relatou que acompanhou o processo que Adriano e outros PMs do 16º BPM (Olaria) foram presos sob a acusação de homicídio. Eles integravam a chamada "guarnição do mal", acusada também de casos de tortura e extorsão em favelas da zona norte do Rio.

Assim como Jair Bolsonaro, Flávio alega que Adriano era inocente e o homem morto por seu grupo era traficante —os PMs foram condenados em primeira instância, mas acabaram absolvidos, mesmo com provas técnicas apresentadas pelo MP.

"Tanto a Danielle como a mãe do Adriano conheci nesse contexto. De sofrimento, elas acabaram formando um grupo de viúvas e esposas de militares que passavam por situação. Queiroz também pediu oportunidade pra elas, eu achei bom, eu coloquei no meu gabinete e faziam essa função de ouvir todo mundo que passou por situação ruim", relatou Flávio ao MP.

Família Bolsonaro temia que elo atrapalhasse campanha

Mensagens trocadas entre Danielle e Queiroz indicam que a família Bolsonaro temia que o vínculo dela —então empregada no gabinete de Flávio na Alerj— com o homem apontado como chefe de milícia prejudicasse suas campanhas eleitorais em 2018.

A conversa ocorreu em 5 de dezembro de 2017, dez meses antes de Jair Bolsonaro se eleger presidente e Flávio senador pelo Rio. Os dois já eram pré-candidatos a essa altura.

Queiroz procura Danielle e diz que precisava conversar com ela. A funcionária, nomeada desde 2007 no gabinete de Flávio, pergunta: "É conversa boa ou ruim". Sem citar nominalmente, Queiroz então demonstra que havia preocupação por parte do clã Bolsonaro de que o vínculo dela com Adriano se tornasse público.

"sobre seu nome... não querem correrem risco, tendo em vista que estão concorrendo e visibilidade que estão", afirma Queiroz. A grafia das mensagens foi preservada pelo UOL, mesmo em casos de erros ortográficos.

Danielle explica que os dois ainda eram formalmente casados, mas que estavam "separados de corpos". E pergunta se isso poderia gerar problemas: "Você acha que vai pegar alguma coisa?".

Queiroz então reforça estar se referindo aos políticos da família Bolsonaro: "estão fazendo um pente fino nos funcionários e família deles", explica.

As mensagens foram obtidas no celular de Danielle, apreendido durante a Operação Intocáveis, que prendeu em janeiro de 2019 lideranças da milícia de Rio das Pedras —que, segundo o MP-RJ, era então comandada por Adriano.

'Incomodada com a origem desse $', diz ex de Adriano

Em outra conversa, dessa vez com uma amiga, Danielle deixa claro que sua presença no gabinete era ilegal: "eu não sei se comentei com você, mas eu já vinha um tempo muito incomodada com a origem desse $ na minha vida", escreveu ela em 9 de janeiro de 2019.

A ponte entre a família Bolsonaro e um dos maiores criminosos do Rio de Janeiro na última década foi Queiroz. Policial reformado, o ex-assessor conheceu Adriano, então oficial da PM, quando os dois trabalharam juntos no 18º BPM (Jacarepaguá), há duas décadas.

Os dois inclusive se envolveram em ao menos um homicídio juntos nesse período.

MP: Queiroz usou contas de Adriano para lavar dinheiro

O MP-RJ também constatou que Queiroz utilizou contas bancárias de Adriano —sobretudo de empresas do ex-PM— para lavar parte dos recursos movimentados na suposta rachadinha do gabinete de Flávio Bolsonaro.

No pedido de medidas cautelares que resultou em uma operação do MP-RJ contra Flávio, Queiroz e outros alvos da investigação, em dezembro de 2019, os promotores detalham as movimentações.

"Parcela dos repasses correspondentes à remuneração de DANIELLE MENDONÇA DA COSTA seria repassada por intermédio de contas bancárias de titularidade de outras pessoas físicas e jurídicas controladas por ADRIANO MAGALHÃES DA NÓBREGA", diz o MP-RJ.

Parte dos recursos repassados a Queiroz vieram de empresas ligadas a Adriano.

Tratam-se de dois restaurantes localizados na rua Aristides Lobo, no Rio Comprido, zona norte do Rio: o Restaurante e Pizzaria Tayara Ltda repassou R$ 45.330,00 a Queiroz, enquanto o Restaurante e Pizarria Rio Cap Ltda transferiu R$ 26.920,00.

Embora não seja formalmente um dos donos da empresa, o MP suspeita que Adriano seja sócio oculto dos restaurantes. Ambos pertencem formalmente à sua mãe, Raimunda, e a uma outra sócia.

Os dois estabelecimentos ficam em frente à agência 5663 do Banco Itaú. Segundo o primeiro relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre Queiroz —que deu origem a toda investigação do MP—, nessa agência foram registrados 17 depósitos não identificados em dinheiro vivo na conta de Queiroz.

Eles somam R$ 91.796,00 entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017 —42% de todo o valor depositado em espécie ao ex-assessor de Flávio nas transações discriminadas pelo Coaf.