100 mil vidas perdidas

Em 5 meses, esse é o total de mortos pela covid; especialistas temem efeito 'bumerangue' que antecipe 200 mil

Lucas Borges Teixeira Do UOL, em São Paulo LIDIANNE ANDRADE/ESTADÃO CONTEÚDO/ARTE UOL
Talyta Vespa/UOL

O Brasil ultrapassa hoje as 100 mil mortes causadas pelo novo coronavírus e, em muitas cidades, vive a reabertura: praias cheias, bares abertos, jogos de futebol, tudo com máscaras e distanciamento social. Impactados pela crise, muitos voltam ao trabalho presencial — para alguns, o isolamento jamais foi uma opção.

De concreto no segundo país em número de mortes — segundo a Universidade Johns Hopkins —, persiste a incerteza sobre os reais números de infectados e mortos pela covid-19. Enquanto isso, prefeitos e governadores são pressionadas pela reabertura e notícias sobre remédios sem comprovação científica dividem espaço com a corrida pela vacina.

A convite do UOL, Miguel Nicolelis, neurocientista e coordenador voluntário do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste; Paulo Lotufo, epidemiologista da USP (Universidade de São Paulo); e Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP, falam sobre a falta de dados oficiais que permitam compreender como a pandemia se comportou até o momento e a eficácia das medidas de combate.

Explicam ainda o possível "efeito bumerangue" — um novo pico em regiões aparentemente estabilizadas — e oferecem análises que almejam oferecer um melhor entendimento da doença que tanto nos mata.

Chegamos a 100 mil mortos e ainda não caiu a ficha do tamanho dessa tragédia. Quando vimos as quedas das torres gêmeas [de Nova York, em 2001], ficamos muito chocados. O mesmo quando vemos a queda de aviões. Mas, curiosamente, a cada três dias caem duas torres, a cada dia caem três Boeings. Este número [de mortos] seria [equivalente ao de] uma guerra, e parece que ainda não caiu a ficha.

Miguel Nicolelis

Arquivo pessoal

Já ouvi: 'Você está revoltada porque perdeu o pai'. Ele morreu em 29 de abril. Tivemos muitas brigas para ele acreditar que o vírus era real. Todos pegamos. Minha mãe e minha filha, de 5 anos, chegaram a ficar um pouco mais doentes, eu fiquei assintomática. A escola da minha filha voltou às aulas, mas não aceitei mandá-la. O que mais se vê são pessoas no ponto de ônibus sem máscara. Falta empatia. É como se o vírus tivesse acabado. Eu fico com medo. Será que vou ter de novo?
Michele Araújo, 36, do Rio de Janeiro (RJ), perdeu o pai, Olavo Araújo, 64

Acumulado de mortes supera população de 94% dos municípios

Robson Rocha/Agência F8/Estadão Conteúdo

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), só 324 das 5.570 cidades no Brasil têm população maior do que 100 mil habitantes, cerca de 6% do total de municípios.

Ou seja, 94% das cidades teriam sido dizimadas caso todos os óbitos por covid-19 no país tivessem se concentrado apenas em seu território.

"É como se você olhasse da sua janela de um bairro populoso de uma grande cidade e não visse ninguém em todos aqueles prédios. [Se todos os mortos tivessem vivido próximo a você,] Você estaria sozinho em um raio de 6,5 km", explica Nicolelis.

Efeito bumerangue

Michael Dantas/AFP
FERNANDA LUZ/ESTADÃO CONTEÚDO

A fase atual, de interiorização da pandemia, levanta novas preocupações nos pesquisadores, especialmente devido às medidas de afrouxamento do isolamento social adotadas por muitos estados e municípios.

Depois de nacionalizado o vírus, ele pode voltar a se espalhar e impactar centros que aparentam estar com curvas estáveis ou em queda, como Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro.

Ou seja: ao se espalhar pelo interior dos estados, uma nova onda de covid-19 pode desaguar novamente na costa e nas capitais. "É o efeito bumerangue", define Nicolelis.

"Essas capitais que têm apresentado na mídia que têm tudo sob controle estão ampliando a flexibilização. Assim, vão reviver a mesma coisa [aumento de casos] nas próximas semanas", explica Alves.

Acervo pessoal

O medo inicial era com as pessoas idosas, só que a gente viu que não era bem assim. Lá em casa todo mundo contraiu o vírus e meu pai teve complicações, mesmo sem ser grupo de risco. Nunca neguei a doença, leio muito, sei dos perigos, mas mudei de visão sobre sua gravidade. Quando a gente olha de perto, percebe como ela é devastadora. Depois disso tudo, a gente fica tentando alertar as pessoas próximas cada vez mais porque temos medo do que pode vir e não queremos mais passar por isso.
Rafael Gama, 28, e sua família tiveram a doença e se recuperaram em Maceió (AL)

Como nos saímos no combate à covid-19

TELMO FERREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

Os bons exemplos

  • Nordeste

    Na região, em que todos os estados estão em queda ou estáveis, as três capitais com piores números de infectados e mortos pela covid-19 entre abril e maio -- Fortaleza, Recife e São Luiz -- promoveram o bloqueio total da região metropolitana. Outros estados optaram por isolamento social estendido e medidas de circulação mais rígidas do que na maior parte do país.

  • Piauí

    Um destaque nacional é o programa "Monitora covid-19", adotado no Piauí, que instituiu monitoramento da população com suspeita de contaminação por meio de aplicativo. "Um dos estados mais pobres fez tudo o que podia fazer. Foram de encontro ao vírus e você vê os resultados: menor número de óbito do Nordeste, seis vezes menos que o vizinho Ceará", avalia Nicolelis.

  • Lockdow

    Capitais que adotaram a medida que impõe rígida restrição de circulação por um período expressivo observaram achatamento de suas curvas e têm números de casos mais baixos.

  • Espírito Santo

    O estado seguiu caminho semelhante ao do Nordeste e implementou medidas restritivas mais duras na região da capital Vitória. Hoje, tem os melhores indicativos do Sudeste.

Os nem tão bons

  • Amazonas

    Lotufo critica especialmente a atuação do governo estadual. "Não fez nada, sabia da pandemia e desprezou. A prefeitura de Manaus até tentou, mas é um local com menos recursos e foi essa a catástrofe", avalia. Segundo Alves, isso se mostra por a estabilidade ter sido alcançada "depois de uma taxa de mortalidade superior à de muitos países".

  • Bahia

    O estado prova que, em uma pandemia, nada é "estático". Teve um começo "muito bom" na opinião dos especialistas, com medidas como o bloqueio a estradas. Mas recusou-se a implementar o lockdown na região de Salvador e aderiu à flexibilização econômica. Hoje, o número de óbitos é o mais ascendente da região, puxado pelo interior.

  • São Paulo

    O estado pecou, na avaliação dos pesquisadores, por não adotar o lockdown especialmente na região metropolitana. "O maior choque para mim, sinceramente, é São Paulo. Se você olhar para qualquer lugar do mundo que teve os números de São Paulo -- apesar de nenhum ter tido números tão altos --, todos fecharam. Não vejo sucesso algum no platô que o estado vive", afirma Nicolelis.

  • MG, Centro-Oeste e Sul

    Os estados, avaliam os especialistas, demoraram a tomar atitudes. Sem seguir os exemplos ao Norte, "desprezaram a gravidade da pandemia". "Foi um erro crasso dos governadores, que tiveram um raciocínio ruim: já que estamos assim, não precisamos fazer mais nada. Foi um mal negócio, eles sabiam o que estava acontecendo [no resto do país]", afirma Lotufo.

Como evitar (ou retardar) os 200 mil?

VANESSA ATALIBA/ESTADÃO CONTEÚDO

Ir de encontro ao vírus

Precisamos ir de encontro ao vírus como foi feito no Piauí. Você tem de ir à casa das pessoas, ninguém quebra uma pandemia nos hospitais. Você quebra a taxa de transmissão onde a transmissão ocorre: dentro das casas, no trabalho, nas comunidades. É preciso criar brigadas que façam esse acompanhamento e isolar os possíveis casos. Não à toa, a grande ausente do combate foi a Saúde da Família. Temos de mandar equipes a campo, atacar o vírus onde ele nos ataca.
Miguel Nicolelis

Governo federal tomar a frente

O governo federal tem de entrar na pandemia, disponibilizar os recursos necessários para enfrentá-la. Inclusive, os insumos necessários para liberar os quase 10 milhões de testes que estão represados. O governo tem de começar a dar apoio logístico para os estados conterem seus casos, dando um direcionamento, como faz a OMS [Organização Mundial da Saúde]. A partir de uma ação do governo central, deve-se mostrar à população a necessidade de isolamento e dar a ela meios para isso. Afinal, as pessoas não conseguem ficar isoladas sem trabalhar e sem receber auxílio.
Domingos Alves

Não ter pressa com a flexibilização nem com a vacina

Há dois debates hoje no mundo: volta às aulas e vacina. Não tenho uma posição firmada em relação à primeira, mas isso traz uma quantidade imensa de pessoas de volta à circulação. Tem de ser pensado e repensado porque pode ser extremamente crítico. Não são só as crianças, elas mudam o fluxo das cidades. E a vacina é altamente preocupante porque, se ela não for eficaz e segura, bem testada, e for feita uma aprovação apressada, será uma catástrofe imensa. Vamos ter pessoas infectadas circulando, passando e pegando a covid-19. Só fará aumentar os movimentos antivacinas.
Paulo Lotufo

Acervo Pessoal/ARTE UOL

A cada vez que o telefone tocava, meu coração disparava. Meu sogro estava isolado há um mês quando se sentiu mal. Minha sogra desmaiou ao saber que ele fora intubado, e os bombeiros a socorreram. No sábado, ela passou mal. No domingo cedo, foi para o túmulo. Na quarta, recebemos a notícia sobre ele. Foram colocados em sacos e caixões lacrados, mas enterrados juntos. Fariam 56 anos de casados.
Adriano Miranda, 42, perdeu os sogros Floriano, 83, e Balbina Maciel, 76, em Rio Negro (PR)

"Não caiu a ficha"

LIDIANNE ANDRADE/ESTADÃO CONTEÚDO
BRUNO KELLY/REUTERS

Se uma média superior a mil mortes por dia parece ruim, pior é normalizá-la. Em busca da possível reabertura econômica, governo federal, estados e municípios têm procurado atenuar a situação e usam índices e gráficos como o de média móvel como bem entendem, denunciam os especialistas.

Uma análise pouco criteriosa desse e outros dados, dizem, pode esconder o custo humano por trás do que as autoridades têm chamado de "platô".

Mais do que isso, há o atraso na notificação, que pode levar a população a interpretações equivocadas dos anúncios diários, pelo governo federal, do número de novas mortes registrados em 24 horas. Em vez de indicar quantas pessoas faleceram no período, ele informa, na realidade, o momento em que esses óbitos passaram a constar do balanço oficial.

Segundo informações do Ministério da Saúde confirmadas em levantamento feito pelo UOL, uma morte pode levar até dois meses para ser incluída nos índices federais.

O gráfico abaixo ilustra a disparidade entre o número real de pessoas mortas em uma data e o dado oficial divulgado naquele mesmo dia. A diferença chega a superar os 10 mil casos, mas diminui nos períodos mais recentes por conta dos atrasos na atualização pelo Ministério da Saúde, e não porque se extingue.

Não tem como saber [o número real de mortos]. Estima-se que, com a subnotificação, o número de casos seja entre 7 e 12 vezes maior [que o notificado]. Se usarmos 10 vezes como base, são 28 milhões de pessoas infectadas. Quando você tem uma perda de vidas da magnitude de 100 mil, você fala, na realidade, em 500 mil, 600 mil.

Miguel Nicolelis

Há uma preocupante falta de informações oficiais [sobre a pandemia]. A iniciativa do governo federal, em junho, amplamente reportada pela imprensa, está sendo repetida por estados e municípios. Tem muitos maquiando dados e nós não temos a dimensão real do problema, só sabemos que é pior do que é apresentado.

Domingos Alves

ARTE/UOL

"Quem realmente compreende a covid-19 são os que choram os mortos. Para cada óbito, há de 4 e 10 enlutados", afirmou ao UOL TAB Tom Almeida, fundador do movimento inFINITO e do Guia de Despedidas Virtuais. "Não culpo os que não entenderam a dimensão da pandemia", opina Paulo Sérgio Boggio, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "As informações que chegam, mesmo das autoridades, são discordantes."

Leia a reportagem especial "O sentido do fim"

Arquivo pessoal

Meu pai tinha um míni comércio onde vendia doces. A gente pedia para ele se cuidar, mas ele achava que não ia acontecer com ele. Continuou sem usar máscara. Quando se sentiu mal disse, pela primeira vez na vida, que não ia trabalhar. A gente se assustou. Internado, tentou fugir do hospital, estava muito nervoso. Descuidei um pouco e ele foi para a casa da irmã. Eu conseguir ver meu pai entrando na ambulância, foi a última vez que o vi. Não pôde ter velório. Tivemos que acompanhar tudo a 5 metros de distância.
Ana Alice Arakaki, 31, de Campo Grande (MS), perdeu o pai, Mauricio Arakaki, 65

Como não combater uma pandemia

Adriano Machado/Reuters

Se não há resposta fácil para como mitigar os efeitos de um vírus que se espalha tão rapidamente e de maneira tão fácil, os especialistas têm uma sugestão do que não fazer: ficar sem ministro da Saúde.

A falta de organização do governo federal, há quase três meses sem ministro da Saúde, e o foco do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em propor soluções sem comprovação científica ou em minimizar o custo humano da pandemia contribuíram diretamente para o aumento das mortes, afirmam.

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[As respostas dos presidentes do Brasil e dos EUA ao novo coronavírus] São muito semelhantes na falta de respostas por parte do governo, na negação da doença, na proposta de medidas sem relevância e na falta de uma coordenação federal profunda. Uma vez que não há diretrizes nacionais mais claras, cada região passou a agir a por conta própria.

Miguel Nicolelis

Sempre houve um negacionismo do governo, com um histórico de mudança de ministro suis generis no mundo, a verba dispensada para o controle da pandemia nunca passou de 30%, o número de testes nunca foi o suficiente e, por fim, há o desvio do que a ciência prega na indicação de soluções farmacológicas ineficientes.

Domingos Alves

A coordenação federal é fundamental porque o vírus desconhece fronteira. Ele não bate continência para general, não respeita cientista, ele vai que vai. Quando ficou estabelecido [pelo STF] que caberia a governadores e prefeitos [a determinação das medidas de combate à pandemia], ficou uma avacalhação total.

Paulo Lotufo

As políticas públicas adotadas pelos estados ainda apresentam falhas na integração das estratégias baseadas em programas de testagem em massa e na identificação dos infectados e seus contatos. Segundo orientações da OMS e do CDC (Centro de Controle de Doenças) dos EUA, o controle da pandemia depende diretamente da massificação de testes como o RT-PCR. Também houve uma queda gradual do nível de permanência da população em casa. A mobilidade em julho tem níveis semelhantes aos de meados de março.

Leia a reportagem especial de UOL Viva Bem

Arte UOL

As políticas públicas adotadas pelos estados ainda apresentam falhas na integração das estratégias baseadas em programas de testagem em massa e na identificação dos infectados e seus contatos. Segundo orientações da OMS e do CDC (Centro de Controle de Doenças) dos EUA, o controle da pandemia depende diretamente da massificação de testes como o RT-PCR. Também houve uma queda gradual do nível de permanência da população em casa. A mobilidade em julho tem níveis semelhantes aos de meados de março.

Leia a reportagem especial de UOL Viva Bem

Adriano Machado

A gente lamenta todas as mortes, vamos chegar a 100 mil, mas vamos tocar a vida e se safar desse problema.

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