Diploma contra o crime

Cabeleireira estuda direito para defender irmão morto por PM dentro de casa em São Paulo

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Em 10 de julho de 2017, a cabeleireira Bruna Maria dos Santos, 31, recebeu uma ligação que informava que seu irmão mais velho, o pedreiro José Filho dos Santos, 33, havia sido baleado e morto por um policial militar enquanto preparava o jantar em casa para comer com a mulher e as duas filhas --uma de 6 anos, outra recém-nascida.

Bruna fechou o salão em que trabalha, em Guarulhos (SP), e seguiu para a casa do irmão, na cidade de Mairiporã, distante 20 km. Lá, ouviu dos moradores que um policial militar, vizinho de José, se ajoelhou em frente à porta do pedreiro e disparou duas vezes porque ele se recusou a reduzir o volume do aparelho de som. Eram cerca de 17h30.

A viúva de José estava tomando banho. A filha de 6 anos, ao perceber a discussão entre o pai e o policial, foi para debaixo da cama. Contou à tia cabeleireira que viu o pai sendo morto logo após ter sido chamado pelo policial para que ele fosse até a porta.

Na delegacia, o policial alegou legítima defesa. Disse que atirou porque o pedreiro tentou perfurá-lo com um facão. Afirmou que foi até o local porque a vítima estava agredindo a criança --o laudo pericial não apontou lesões na filha.

Por falta de elementos probatórios, o inquérito foi arquivado. A SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou que a investigação apurou todos os fatos relacionados à ocorrência.

Desacreditada da investigação, polícia e Estado, a cabeleireira Bruna decidiu se tornar advogada. "Como o crime tem 20 anos para prescrever, eu posso fazer algo", diz a estudante de direito.

Mágoa e desconforto

Irmã de vítima acusa polícia de ser condescendente com PM suspeito

O policial Marcelo Marques trabalha no 2º Batalhão do Choque da PM paulista. Uma tropa considerada especial, que atuava na prevenção de distúrbios, como protestos, mas que também age na prevenção durante jogos de futebol.

Acostumado a beber durante a folga, dentro de casa, ouvindo música em volume alto, José dos Santos tinha discussões frequentes com o policial. "Ele [PM] dizia que não aceitava algazarra nem barulheira. Meu irmão retrucava e falava não ter medo porque não era bandido. Meu irmão foi ameaçado por ele algumas vezes", afirma Bruna dos Santos, agora com 33 anos.

Quando aconteceu o fato, a polícia atestou como caso encerrado logo de início.

Como a viúva foi coagida pelo policial no primeiro depoimento à polícia, ela deu a mesma versão do PM. Depois, num segundo depoimento, ela falou a verdade", diz a estudante de direito.

Segundo a irmã do pedreiro, na delegacia, o policial andava livremente, não sendo considerado em nenhum momento como suspeito. Enquanto isso, a viúva de José estava escoltada por policiais, porque, segundo a versão do policial militar apresentada na delegacia, ela, que estava no banho, também estava agredindo, com socos, a filha de 6 anos.

O UOL pediu entrevista com Marques por meio da SSP (Secretaria da Segurança Pública), mas a pasta não retornou o pedido. A SSP enviou apenas uma nota com a versão que apontou o arquivamento do processo.

"Como ele é policial, já estava com tudo pensado. No que ele disparou, minha cunhada saiu do banho pelada, gritando. Ele afastava ela com a mão e falava: 'Com você, nada; com ele, tudo'. E mandou ela voltar para o banheiro, sentar no vaso e abaixar a cabeça. Mas a menina de 6 anos viu tudo desde o início. Ela estava debaixo da cama. Na sequência, o policial fechou a casa, não deixou ninguém entrar e chamou a ambulância. Foi até o banheiro e disse: 'Quando o resgate e a polícia chegarem, se você não falar o que eu estou mandando, eu vou te matar igual matei seu marido'", diz Bruna.

Por meio de nota, a SSP afirmou que "o caso citado foi arquivado a pedido do Ministério Público em janeiro deste ano. Durante as investigações, a delegacia de Mairiporã ouviu todos os envolvidos, solicitou reconstituição e apurava todos os fatos relacionados à ocorrência, inclusive o relato da ameaça. O boletim foi juntado aos autos e encaminhado à Polícia Militar, que analisou o ocorrido e entregou o inquérito em novembro de 2017".

Questões sem resposta

PM alegou lesão corporal em filhos de pedreiro, porém laudo pericial deu negativo

"A investigação está levando em conta as provas testemunhais: pessoas que têm medo do policial", diz Bruna. "Pessoas que moram na mesma rua. E as provas técnicas? E a reconstituição do crime, que dispensou as testemunhas que afirmaram terem visto a execução? E o depoimento da menina que viu tudo? E o BO de ameaça feito pelo policial não anexado ao processo? E o corpo de delito que deu negativo no corpo das filhas [do pedreiro José], sendo que ele alega que entrou na casa porque meu irmão estava as agredindo?"

Segundo a cabeleireira, ela foi pessoalmente ao MP (Ministério Público), onde foi atendida por cursar direito. O promotor disse a ela que a colocaria como testemunha protegida. Não colocou.

"O assassino é policial do choque. Ele não tinha nada a perder. Nunca me chamaram e não chamaram nenhuma testemunha para depor.

Quando arquivou o inquérito, eu perguntei para o promotor se eles podiam ouvir a filha, de 6 anos, que viu toda a cena. Ele me disse que podiam. Eu perguntei por que não ouviram. Ele não soube responder."

Ainda segundo Bruna, o promotor pediu que ela encontrasse novos elementos probatórios e levasse até ele, para que o caso fosse desarquivado.

Segundo a desembargadora Ivana David, é função do MP investigar, requisitar o Boletim de Ocorrência, e, eventualmente, questionar o processo. Não é função de um familiar da vítima. Procurado, o MP não se manifestou sobre o assunto até esta publicação.

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"Tive que fazer alguma coisa"

Desacreditada de investigação, cabeleireira decidiu cursar direito

"Eu comecei a fazer direito depois da morte do meu irmão. Quando eu vi como foi a morte e toda a situação decorrente à morte, me incentivou. Eu era leiga, eu não sabia por onde começar. Tive que fazer alguma coisa. Eu sei que, pela impunidade do Brasil, a gente que não tem dinheiro conseguir provar algo, é difícil. Mas eu me sacrifiquei. Fui fazer direito para entender, pelo menos um pouco, para ver se eu consigo fazer justiça.

Ele morreu no dia 10 de julho de 2017. Eu comecei a estudar direito em 10 de fevereiro de 2018.

Estou no terceiro semestre, indo para o quarto semestre. Eu acordo de manhã, vou para a faculdade, chego em casa, vou trabalhar como cabeleireira, fico até umas 20h30, cuido dos meus filhos, fico com meu marido e pesquiso. Pesquiso muito sobre direito penal. E fico atrás de testemunhas da morte do meu irmão.

Com o curso, eu consegui entender um pouco sobre o processo. Quando eu fui atrás, no começo, eu juntei provas, liguei para testemunhas, convenci a viúva de falar a verdade, e não o que o policial queria, na delegacia. Na faculdade, eu comecei a tirar dúvidas com os professores. Perguntava sobre o meu caso, mas não falando sobre o caso de maneira explícita. Quando eles me explicavam, eu ia na delegacia e conseguia algo novo."

A versão policial

O que disse o PM na delegacia

A reportagem pediu à SSP, por email, uma entrevista com o policial militar Marcelo Marques. O pedido não foi atendido. Em depoimento registrado na delegacia de Mairiporã, o PM disse que estava de férias, em casa com a mulher, quando ouviu uma criança gritando e chorando.

Ele afirmou que foi até a casa do pedreiro e, lá, viu José Filho e a mulher agredindo violentamente a filha de 6 anos e que acionou a PM por isso através do telefone 190. Disse que o choro da criança não cessava e que foi até a casa, que estava com a porta aberta, e perguntou o que estava acontecendo.

José Filho teria dito que era problema dele, não do PM. O policial afirmou que disse a ele que tinha chamado um carro da polícia e que, nesse momento, o pedreiro ficou nervoso e começou a xingá-lo.

Na sequência, o pedreiro teria pegado um facão. O policial disse que pediu que ele largasse a arma e não foi atendido. Por isso, atirou contra o pedreiro.

Afirmou que, depois disso, foi até José Filho, afastou o facão de perto dele e acionou novamente a PM. O resgate foi pedido através da própria corporação. No pronto-socorro, o pedreiro morreu.

Em busca do desarquivamento

"Na polícia eu não confio mais. Mas confio na Justiça. Por isso estou indo atrás dela"

"Meu irmão era artista. Era tecladista. Gostava de tocar. De uns anos para cá, ele passou a ter problema com alcoolismo. O sonho dele era viver da música. Ele gravou CDs. Aqui em Mairiporã, todo mundo gostava dele. O velório foi lotado. Ninguém acreditou que tinha sido ele.

Meu principal objetivo é desarquivar, achar provas --porque vou achar-- e botar o policial na cadeia, que é o que ele merece. Ele não merece estar trabalhando. Ele não pensou no que fez. Ele deixou seis crianças órfãs. Tudo carente, necessitando de ajuda. Eu e minha mãe que ajudamos essas crianças. O mais triste foi ele dizer que meu irmão estava agredindo a filha.

No velório, um dos filhos falou: 'Pai, você não foi o melhor pai do mundo, mas você nunca levantou a mão pra gente'. Todo mundo fala para eu deixar isso para lá, que o assassino é um policial.

Eu digo: 'eu posso morrer. Se eu morrer, vou morrer lutando'. Porque meu irmão é inocente.

Na polícia eu não confio mais. Mas confio na justiça. Por isso estou indo atrás dela."

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