Os esquecidos

Favela do RJ com maior foco de tuberculose do país tem poucas defesas contra coronavírus

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL

A favela do Rio de Janeiro que registra o maior foco de tuberculose em uma comunidade no país preocupa especialistas em meio ao crescimento do novo coronavírus. No Jacarezinho, zona norte carioca, o índice de casos de tuberculose a cada 100 mil moradores é quatro vezes maior do que a média da cidade do Rio, no topo do ranking das capitais brasileiras com o maior número de infectados por tuberculose em 2019.

Para infectologistas ouvidos pelo UOL, a combinação entre a doença infecciosa mais letal do mundo e a covid-19 pode ser explosiva em um cenário de vulnerabilidade social. No Jacarezinho, área com cerca de 50 mil habitantes, as pessoas convivem com o abandono do poder público e dependem de ações de voluntários para combater a pandemia, que já chegou às favelas do Rio. Manguinhos, comunidade vizinha do Jacarezinho, tem cinco casos confirmados de covid-19.

Uma ocupação conhecida como "Carandiru", em um prédio de quatro andares na rua Miguel Angelo, tem 200 pessoas vivendo em cômodos divididos por pedaços de madeira ou até mesmo por lençóis. No local, em um dos acessos para a favela, reduto do CV (Comando Vermelho), falta água, saneamento básico e há esgoto a céu aberto.

A cabeleireira Sonia Regina Desiderio, de 59 anos, mora lá com quatro filhas e 13 netos. Na última sexta-feira (3), ela fazia tranças nos cabelos de uma moça de frente para a rua, na entrada do prédio. Por ali, a rotina não mudou. Um senhor bebia uma cerveja, sentado em uma cadeira de plástico. Crianças corriam de um lado para o outro.

Mas havia medidas de prevenção, ainda que precárias. Em vez do álcool em gel, os moradores deixavam no chão sete garrafas pet com água sanitária. Eles diziam colocar o produto nas mãos e na sola dos pés, para minimizar o risco de contágio.

Se eu parar, não tenho mais trabalho. Moço, aqui é tudo amontoado. Nós estamos abandonados e esquecidos.
Sonia Regina Desiderio, cabeleireira

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL
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Região tem cerca de 50 pacientes com tuberculose

Pelo menos 50 moradores com tuberculose estão em tratamento contínuo nas duas clínicas da família da região, segundo informações de profissionais da área de saúde. Para especialistas, a combinação entre a doença e o novo coronavírus pode ser explosiva.

"Quando o coronavírus entrar em áreas com grande prevalência de tuberculose, será trágico. Essas pessoas são portadoras de uma doença pulmonar, e a covid-19 compromete o pulmão. O prognóstico desse paciente é sombrio. Se acontecer [a combinação entre coronavírus e tuberculose], a mortalidade vai aumentar", projeta a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz.

Áreas em condições precárias, com baixo IDH e de maior aglomeração, aumentam a chance de disseminação de qualquer doença infecciosa. A tuberculose potencializa a gravidade do novo coronavírus. Vai morrer gente que não morreria se tivesse tido acesso a um tratamento médico.
Edimilson Migowski, infectologista

O infectologista diz que as chances de isolamento propostas pelas autoridades também são reduzidas nessas áreas. "Uma das formas de prevenção é o distanciamento físico. Não tem como fazer isso em uma comunidade, onde muitas pessoas moram dentro da mesma casa. Quando o vírus entrar nas favelas, também vai aumentar a velocidade de propagação da doença", prevê.

Ela acredita que a capital fluminense será uma das cidades mais afetadas pela combinação entre as duas doenças. "O Rio tem grande prevalência de tuberculose, o que coloca o município em uma situação delicada. É uma doença infecciosa que afeta muito os pulmões e deixa a pessoa com debilidade imunológica e nutricional."

O tratamento para tuberculose oferecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde), feito a base de antibióticos de primeira linha, dura pelo menos seis meses. Em casos mais graves, quando há resistência aos medicamentos, pode levar até dois anos.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Iniciativas populares levam material de limpeza

Na clínica da família Anthidio Dias da Silveira, no Jacaré, o atendimento aos casos suspeitos de coronavírus eram feitos a céu aberto na sexta-feira, quando o UOL visitou a comunidade.

Segundo a Prefeitura do Rio, esse tipo de ação vem sendo adotada em unidades de saúde para minimizar o risco de contágio ou para isolar pacientes com problemas respiratórios, evitando aglomerações na sala de vacina.

Um grupo de voluntários foi ao local para levar cerca de 200 kits com material de higiene e alimentos. A iniciativa reuniu pessoas de três ações voltadas aos moradores da favela. Eles criaram um grupo fechado no Facebook chamado de "Jacarezinho contra o coronavírus".

"Doar alimentos com os produtos de limpeza é uma forma de ajudar a conscientizar as pessoas no combate ao vírus", diz Julio da Silva Lima, da Jacaré Moda, que leva jovens da favela para as passarelas.

Também produzimos um material impresso para que as pessoas possam saber quais são os cuidados básicos.

Bianca Peçanha, professora e coordenadora de um núcleo de alfabetização e de pré-vestibular na favela

Thiago Alves, estudante de Direito e idealizador de um projeto social que leva basquete para a favela, diz que a iniciativa foi motivada pela ausência do poder público na região. "Então, decidimos tomar essa iniciativa de ajudar na conscientização dos moradores", explica.

O outro sentido do isolamento social

Na sede da associação de moradores, o vice-presidente Edgard Pimentel Teixeira se organiza para doar mantimentos a quem mais precisa. O mais difícil é estabelecer critérios para priorizar as famílias em situação de vulnerabilidade social mais grave.

"É preciso ver quem são as pessoas que estão passando mais necessidade. Os ambulantes e os camelôs perderam a fonte de renda. Hoje, não temos nenhum órgão do governo para nos ajudar", desabafa o líder comunitário.

Ele chegou a fechar o acesso a uma quadra esportiva com um cadeado por três dias, para incentivar as medidas de isolamento. Mas a iniciativa não surtiu efeito. As pessoas continuaram pelas ruas.

Existe uma diferença entre o isolamento em uma casa confortável de um morador de classe média e a situação por aqui. A realidade na favela é outra. As pessoas moram em espaços reduzidos e com muita gente em volta.

Edgard Pimentel Teixeira, vice-presidente da associação de moradores

Em frente à associação de moradores, catadores organizam sacos de lixo para reciclagem. "Medo, nós temos. Mas nós somos obrigados a trabalhar. Como vamos ter dinheiro para comprar um prato de comida?", questiona Denilson Felipe da Silva.

Em uma localidade conhecida como Pistão, o lixo se acumula na calçada e invade a rua. Perto dali, o morador na janela de uma casa acima de um esgoto a céu aberto observa um cenário de abandono e de esquecimento. Na favela do Jacarezinho, o isolamento social tem outro sentido.

O Jacarezinho é atendido por duas clínicas da família e uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), localizada em Manguinhos, bairro vizinho. O UOL questionou a Secretaria Municipal de Saúde sobre se medidas de combate ao coronavírus foram reforçadas na comunidade, mas até a publicação desta reportagem não obteve retorno.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL
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