Tiros, processos e ocupações

Conflito por terra no norte de MG revela ação de grupos armados e expõe vácuo na política agrária do país

Daniel Camargos Da Repórter Brasil Fernando Martinho / Repórter Brasil

No norte de Minas Gerais, comunidades tradicionais de pescadores, vazanteiros, quilombolas e grupos que lutam pela reforma agrária sofrem com a violência em meio aos conflitos por posse de terra que assolam a região. Os moradores das margens do rio São Francisco reclamam direito dado pela União para cultivarem os terrenos, enquanto fazendeiros da região se organizam em um grupo acusado de atuar como uma milícia rural, com episódios de ataques a tiro.

Enquanto o trabalhador rural sem-terra Sebastião Aparecido de Paula, 70 anos, desmonta sua casa e coloca telhas e móveis em um caminhão, a empresária Virgínia Tofani Maia conversa amigavelmente com os policiais que acompanham a ação de reintegração de posse da Fazenda Norte América, no município de Capitão Enéas.

É ela quem confirma à Repórter Brasil que um grupo chamado Segurança no Campo, composto por cerca de 300 produtores rurais da região, conta com a participação do atual secretário de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general da reserva Mário Lúcio Alves Araújo. "Ele é o interlocutor", afirma Virgínia. "Ele é bem jeitoso para ir lá e conversar."

Procurado, Araújo disse que não comentaria "declarações de terceiros". Em nota enviada pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública, ele não respondeu às perguntas feitas sobre sua participação no Segurança no Campo. Informou apenas que tem "como função zelar pela manutenção da lei e da ordem e trabalhar contra qualquer manifestação de violência, no campo ou espaço urbano, independente de segmento ou classe social".

Oito meses antes de assumir o comando da secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general Mário Araújo participou de uma ação organizada por fazendeiros, em abril de 2018, que impediu integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) de ocuparem a fazenda Bom Jesus, na área rural de Montes Claros (MG).

Na ação, os fazendeiros expulsaram os integrantes do MST, queimaram a bandeira do movimento, bloquearam os acessos e impediram a entrada de água e alimentos, além de ameaçarem as famílias sem-terra. Após o ato, o grupo Segurança no Campo foi denunciado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais como sendo uma milícia rural.

Sem-terra relatam emboscadas a tiros

"A milícia rural não teria legitimidade para promover uma reintegração de posse, muito menos sem ordem judicial", afirma denúncia assinada por 30 entidades, incluindo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG (Ordem dos Advogados do Brasil), o MST e organizações sindicais. Consta, na denúncia, uma fotografia do general Mário Araújo conversando com policiais durante a ação.

Além do episódio com a presença do general, o Segurança no Campo participou de outras ações semelhantes, chegando a fazer duas emboscadas armadas contra trabalhadores rurais sem-terra em 2017 e 2018, segundo relatos obtidos pela reportagem. Ambas na fazenda Norte América - onde Sebastião de Paula, citado no começo da reportagem, e outras dezenas de famílias foram despejadas em dezembro do ano passado.

Em abril de 2017, os sem-terra foram chamados para uma reunião na sede da fazenda. Foram recebidos com tiros disparados de uma picape. Três integrantes do MST foram baleados.

Um novo ataque ocorreu, dessa vez no estilo "Cavalo de Troia", em março de 2018, quando a coordenação do acampamento deixou de ser do MST e passou para a Frente Nacional de Lutas no Campo e na Cidade (FNL).

Um caminhão com carroceria do tipo baú entrou no acampamento, com o argumento de que iria buscar móveis e ração. Quando a porta da carroceria foi aberta, saíram 20 homens armados, que atiraram contra os acampados. Um sem-terra foi baleado e outros cinco ficaram feridos.

A Polícia Civil investigou o caso e apontou Leonardo Andrade, ex-secretário da prefeitura de Montes Claros, como o mandante da ação. Ele chegou a ser considerado foragido. Outras 12 pessoas foram presas, entre eles o advogado e a gerente da fazenda.

Andrade havia sido preso em 2016, no escopo da operação Catagênese, acusado de irregularidades com recursos públicos e ficou 35 dias na prisão, saindo após determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).

Questionado sobre o seu pedido de prisão pós ataque, Andrade diz que foi uma injustiça cometida por policiais civis. Ele entende que havia uma ligação dos policiais civis com deputados petistas da região e que foi perseguido politicamente. "A Polícia Civil era servil em relação ao PT", afirma.

Fernando Martinho / Repórter Brasil Fernando Martinho / Repórter Brasil

Fazendeiro aponta prejuízo de R$ 7 milhões com ocupações

Na mesma fazenda palco das emboscadas, onde em dezembro do ano passado aconteceu a ação de despejo das famílias sem-terra, Virginia Maia representava os interesses de Leonardo Andrade.

Questionada pela Repórter Brasil se o Segurança no Campo é uma milícia, ela respondeu: "Nunca. Não tem uma arma. Muito antes pelo contrário." Segundo Virgínia, o grupo "nunca usou um porrete".

Ela explica que os fazendeiros vão para as ações carregando a bandeira do Brasil, vestindo uma camisa com o nome do grupo e fazem a proteção somente com o corpo. "Tentamos apaziguar", afirma.

A respeito dos atos violentos que já ocorreram na fazenda Norte América, ela afirma que não teve participação e que somente acompanhou os desdobramentos pela cobertura da imprensa. "O proprietário aqui teve um prejuízo irrecuperável", afirma. "O que aconteceu [ataques aos sem-terra] foi uma reação contrária da outra parte", justifica.

Leonardo Andrade disse à Repórter Brasil que estima prejuízo de R$ 7 milhões com as ocupações. A maior parte, segundo ele, foi causada após a segunda ação, comandada pela FNL. "Quando eles chegaram, parecia um assalto a banco de tanto armamento que tinham", afirma. Andrade diz que pulou a janela e fugiu, pois estava debilitado por causa de um tratamento de câncer.

Segundo ele, 12 bois foram mortos e outros 300 roubados; 70 vacas leiteiras tiveram a ordenha interrompida por uma semana e morreram. Outras 65 vacas perderam valor, pois pararam de dar leite. Ele afirma que os sem-terra foram cruéis com animais, atiraram na cabeça de uma égua premiada e cortaram os pés de um burro.

Sobre os dois ataques aos sem-terra que ocorreram na fazenda, Andrade diz que não estava no local. O primeiro ataque ele atribui a uma "reação normal" dos funcionários que atiraram ao ver os sem-terra caminhando em direção à sede da fazenda. Sobre o segundo ataque, executado no estilo "Cavalo de Tróia", Andrade nega que tenha ocorrido.

O coordenador da FNL no norte de Minas, Geraldo Pires de Oliveira, nega que os acampados tenham usado armas, atacado e ferido os animais da fazenda.

Oliveira entende que há um alinhamento de toda polícia com os fazendeiros. "Não temos dúvida do que representa o latifundiário arcaico, que pensa em resolver tudo na bala, como é o problema do norte de Minas", completa.

Divulgação

Quem é o general Mário Araújo

Tanto a empresária Virgínia Maia quanto o general Mário Araújo foram candidatos na última eleição, ambos derrotados. Ela concorreu para deputada estadual e ele para federal. Os dois concorreram pelo PSL.

Araújo, hoje secretário do governo de Romeu Zema (Novo), estudou na mesma turma do presidente Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais, em Resende (RJ).

Convidado pelo governador mineiro para assumir a secretaria de Justiça e Segurança Pública, tomou posse em janeiro de 2019.

Antes de ser secretário e de participar do movimento Segurança no Campo, ele comandou o Estado Maior da 4ª Região Militar, em Belo Horizonte. O general também foi um dos responsáveis pela operação de busca de ossadas dos guerrilheiros do Araguaia empreendida pelo Exército em 2009.

Uma foto do general circulou pelas redes sociais e grupos de WhatsApp: é ele o primeiro dos quatro militares em cartaz produzido por movimentos de extrema direita para convocar a manifestação de 15 de março: "Vamos à rua em massa. Os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia [Rodrigo Maia, presidente da Câmara] e Alcolumbre [Davi Alcolumbre, presidente do Senado]", afirma a imagem.

Fernando Martinho / Repórter Brasil Fernando Martinho / Repórter Brasil

Procurador vê tendência em grupos armados no campo

"A formação de grupos armados e de uma defesa ilícita de propriedade do campo é uma tendência", afirma o coordenador das promotorias de conflitos agrários de Minas Gerais do Ministério Público, procurador Afonso Henrique de Miranda Teixeira.

Para ele, o país está retomando situações que já tinham ficado no passado. Teixeira analisa que a inviabilização da reforma agrária como política praticada pelo governo federal impede a busca por direitos constitucionais, e que a maior violência é "a retirada da esperança de conquistar um espaço para sobreviver".

Fernando Martinho / Repórter Brasil Fernando Martinho / Repórter Brasil

Homens armados e drones

Dois mega empresários - o maior produtor de bananas do país e um sócio de três dos principais supermercados de Minas Gerais - são apontados por moradores de quatro comunidades tradicionais como mandantes de ameaças na disputa pelas terras localizadas em Itacarambi e Januária, no norte de Minas.

Entre as estratégias de intimidações estão funcionários armados, abordagens agressivas e o voo constante de drones vigiando os passos dos quilombolas e vazanteiros.

O empresário que disputa as terras com as comunidades quilombolas de Croatá, em Januária e Cabaceiras, em Itacarambi, é Walter Santana Arantes, que além de ser um dos maiores latifundiários da região, é sócio de três das maiores redes de supermercados mineiras: EPA, BH e Mineirão.

Nas comunidades de Barrinha e Maria Preta, em Itacarambi, o alvo de acusações é a Brasnica Frutas Tropicais, empresa fundada por Yuji Yamada na década de 1960. Yamada nasceu no Japão e foi o primeiro japonês a ser prefeito de uma cidade brasileira, em Janaúba.

Com cerca de 2 mil hectares plantados na região, a empresa comercializa 3 mil toneladas de frutas por semana. A Brasnica Frutas Tropicais não reconhece os moradores da Barrinha como uma comunidade tradicional. "Não há negociação possível com a comunidade Barrinha por se tratar de ocupação ilegal e ilegítima, em área de proteção ambiental que tem sido degradada pelos invasores", afirma o gerente administrativo da empresa, Jônatas Percídio.

A empresa já teve duas decisões judiciais favoráveis para reintegração de posse, mas, segundo o gerente, há uma "novela processual" com indefinição sobre o juízo competente, se é a Justiça estadual ou federal.

Histórico da disputa

As margens dos rios são, segundo lei de 1946, áreas que pertencem à União. Um decreto de 2007 e uma portaria de 2010 do governo federal permitiram que as comunidades tradicionais da região vivam nas margens, também chamadas de 'áreas de vazante'.

Em 2013, moradores de Caraíbas chegaram a obter do governo um Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus), que garante o uso da terra para moradia, pesca e agricultura com a manutenção do bioma natural. Foi quando o conflito com grandes fazendeiros da região se acirrou.

A comunidade, para conseguir a posse definitiva da terra, depende que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) faça a demarcação das áreas e determine o "tamanho" das margens do Velho Chico, levando em conta a média das últimas cheias.

O processo estava em andamento, mas parou em 2018, no governo de Michel Temer. Audiências públicas foram canceladas em cima da hora e os processos de reconhecimento de comunidades tradicionais foram interrompidos.

Servidores de carreira da SPU também passaram a responder os ruralistas. Eles chegaram a denunciar, em documentos inéditos obtidos pela Repórter Brasil, a pressão feita pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) — a bancada ruralista —, para que paralisassem a demarcação no norte de Minas.

Um dos fazendeiros que disputa a área com os moradores de Caraíbas e com os acampados da LCP é Rodolpho Velloso Rebello, produtor de bananas e diretor da Sociedade Rural de Montes Claros. "Esses grupos travestidos de comunidades tradicionais entram, invadem e põe fogo. Nós estamos contestando judicialmente essas questões", afirma Rebello em entrevista à Repórter Brasil.

Questionado sobre sua participação no Segurança no Campo, movimento apontado como milícia rural, ele afirma que não faz parte.

Para Rebello, contudo, o grupo não é uma milícia. "É um movimento como qualquer outro. Se existe um movimento como o MST é legítimo que exista algo contrário", argumenta.

Fernando Martinho / Repórter Brasil Fernando Martinho / Repórter Brasil
Topo