General da OMS contra covid

Médico irlandês Mike Ryan já operou paciente com arma apontada à cabeça e hoje tenta derrotar o coronavírus

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça) Reprodução

Assim que se formou na escola de medicina, na Irlanda, o jovem Mike decidiu tomar um rumo em sua carreira: não iria abrir um consultório ou trabalhar num hospital local com um salário confortável. Optou por viajar para a África, fazendo cirurgias, em diversas ocasiões para salvar vidas. Anos depois, ao retornar para seu país de origem, encontrou a rotina de um hospital com recursos e padrões elevados.

Dias depois de seu desembarque, ele seria convocado para uma reunião com seus superiores. Na pauta, um tema delicado: seu desempenho. O problema não era um erro médico ou um comportamento inapropriado. Os cirurgiões-chefes queriam saber por qual motivo ele apenas usava algumas das ferramentas, apesar de todos os instrumentos à disposição do jovem cirurgião.

Respirando aliviado, ele explicou que estava acostumado a agir assim por conta da falta de recursos nos hospitais africanos. Mas só depois ele se daria conta que a dúvida dos chefes era se ele de fato sabia usar todos aqueles instrumentos, o que lhe causou gargalhadas internas.

Hoje, Michael Joseph Ryan é o chefe de operações de emergência da OMS (Organização Mundial de Saúde), uma espécie de comandante da resposta global contra a pandemia do coronavírus. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, não deixa dúvidas do papel desempenhado por Mike. "Ele é meu general", diz.

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Do bisturi à diplomacia

Aprendendo a atuar dentro dos limites diplomáticos, o irlandês passou a ser um dos rostos mais reconhecidos internacionalmente por fazer parte de três coletivas de imprensa por semana na OMS para dar resposta à pandemia.

Duramente criticada, a agência será alvo de uma revisão de sua resposta à crise e o trabalho da cúpula será examinado em cada detalhe.

A relação com a China, as acusações de politização de decisões e falhas no sistema serão avaliadas. Foi durante a atual gestão que os Estados Unidos anunciaram sua saída da entidade, um profundo golpe para o sistema multilateral e para a sobrevivência política da OMS.

Colegas costumam indicar que Ryan tem "um dos empregos mais difíceis do planeta".

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Estilo "durão"

A longo dos meses, vieram do "general" alguns dos alertas mais fortes diante das ameaças da pandemia. Num certo momento, ao criticar governos que não estavam agindo de forma suficiente, Ryan foi perguntado sobre quais seriam esses países. E apenas respondeu: "Eles sabem quem são".

Não foram poucos os recados de que o mundo estava vendo sua última janela de oportunidade se fechar, enquanto Ryan apelava para que governos acordassem diante do risco. Mais recentemente, foi dele uma frase que causou calafrios: "Não há como pensar que realisticamente podemos erradicar o vírus agora".

Por vezes, sua ação visa também a blindar Tedros. Sempre que questionado sobre temas políticos delicados, o diretor-geral não disfarça em passar a palavra ao colega, que recebe queixas recorrentes por parte de governos.

Ju Peng/ Xinhua

Dança com a China

Conhecido por ser enérgico, duro e por vezes intempestivo, Ryan não escondeu seu desespero diante da dificuldade em obter transparência do governo chinês nas primeiras semanas do surto.

Em gravações de reuniões da OMS em janeiro obtidas pela agência de notícias AP, Ryan diz à equipe que era hora de colocar pressão sobre Pequim. Ele temia a repetição da falta de transparência de 2002 no país, àquela época por conta da Sars.

"Este é exatamente o mesmo cenário, tentando incessantemente obter atualizações da China sobre o que estava acontecendo", disse ele. "A OMS mal saiu daquele [cenário anterior] com seu pescoço intacto, dadas as questões que surgiram em torno da transparência no sul da China", afirmou.

Na reunião, Ryan apontava que a melhor maneira de "proteger a China" de possíveis ações de outros países era a OMS fazer sua própria análise independente. Mas para isso precisaria de dados dos chineses.

O irlandês também criticou a China por não seguir o que outros governos tinham feito em casos similares. "Isto não aconteceu no Congo e em outros lugares", disse, numa referência ao surto de Ebola.

Oficialmente, porém, Ryan mantinha um tom elogioso com os chineses, o que levou governos ocidentais a elevar as críticas à agência. Seu objetivo, porém, seria o de não deixar Pequim ainda mais irritada e, eventualmente, fechar o país à agência de saúde da ONU.

Thaier Al-Sudani/Reuters

No Kuwait com Saddam

Na sua infância, o gosto de Ryan por viajar veio de ler revistas da National Geographic na casa de sua avó, no interior da Irlanda. Quando se formou na National University of Ireland, em Galway, e fez seu mestrado em saúde pública na University College Dublin, transferiu ao trabalho humanitário sua vontade de conhecer o mundo.

Ainda no início de sua carreira, o irlandês optou por se mudar para o Iraque com sua então namorada da faculdade. O objetivo era treinar médicos iraquianos. O ano: 1990. O que ele não poderia imaginar era que, poucos dias depois de seu desembarque, Saddam Hussein invadiria o Kuwait.

Ryan e sua namorada — que se tornaria sua mulher — foram mantidos pelo regime como uma espécie de escudo humanitário, obrigados a salvar a vida de parentes de membros do governo.

Ao relatar o incidente para a Statnews, numa entrevista em 2019, ele contou que ressuscitou "irmãos de ministros e filhos de chefes do Exército". Numa das operações que teve de fazer, o irmão da vítima lhe apontava uma arma à cabeça. "Ajuda muito em seu desempenho", disse Ryan, em seu estilo conhecido de ironias em momentos de tensão.

Quando finalmente foram autorizados a deixar o país, o carro que levava o casal foi alvo de um acidente com um comboio militar e o médico foi jogado para fora do veículo. Ryan teve múltiplas vértebras quebradas e temia que jamais poderia andar de novo.

Em 1996, chegou à OMS, onde assumiu ao longo dos anos diferentes funções, entre elas a de liderar uma campanha contra a poliomielite no Paquistão. Antes, foi o coordenador para lidar com doze dos 17 surtos de Ebola na África. Ryan ainda passou por Serra Leoa, Libéria e Guiné. Entre 2013 e 2014, seu foco era a crise na Síria e Iraque.

Aos 55 anos, o irlandês diz que não vê seus filhos desde fevereiro e que não sabe mais o que é um fim de semana. A tensão é tão elevada que as coletivas de imprensa, apesar do bombardeio de perguntas e acusações, são os trechos mais leves do dia.

Ele, porém, não deixa de ser realista e sustenta que o mundo não estava preparado para a pandemia, e que a crise não vai desaparecer de forma mágica. O trabalho segue. A atuação de Ryan, em parte, deve definir o próprio futuro da OMS — e ele sabe disso.

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