Monumentos, história, racismo e apagamento

Gabriela Di Bella e Keiny Andrade, colaboração para o UOL

Bustos, obeliscos e esculturas. Parte do mobiliário urbano, os monumentos que rememoram a história são onipresentes nas cidades. Até passamos por eles sem nos perguntarmos o que significam. Mas alguns setores da sociedade começaram a questionar: que memória essas imagens transmitem? Quem homenageiam? Por que foram instaladas ali? Depois de analisar os 367 monumentos da cidade de São Paulo, o Instituto Pólis identificou que apenas cinco deles não são de pessoas brancas e há somente quatro de indígenas. A maioria das esculturas é de homens (169, no total) e brancos (155). Nesta reportagem audiovisual, o UOL mostra a história real dessas obras.

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, é possível mudar a leitura parcial da história presente nas ruas, desde que haja uma completa ressignificação dos símbolos (placas explicativas e passeios guiados narrando o lado oculto da história, por exemplo) até a definitiva retirada de alguns desses monumentos das vias públicas e sua substituição por outros personagens históricos.

O UOL ouviu pesquisadores, profissionais e ativistas que tentam mudar esta narrativa no Brasil. São eles:

  • Carlos da Silva Junior, professor de História da Universidade Estadual de Feira de Santana;
  • Tainá de Paula, arquiteta e urbanista;
  • Coletivo de arquitetos Cartografia Negra;
  • Paulo César Garcez Marins, historiador e docente do Museu Paulista da USP, o Museu do Ipiranga;
  • Marina Feldhues pesquisadora em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE);
  • Erika Hilton, vereadora eleita em São Paulo.

(Agora, ligue o som)

(Voz de Carlos da Silva Junior)

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Instalados entre os séculos 19 e 20, os monumentos seguem os preceitos dos grupos politicamente dominantes de cada época. Para os estudiosos, essas escolhas deram visibilidade a uma parte da história, além de ter gerado homenagens a personagens com biografias hoje consideradas controversas.

Houve também reconfiguração de espaços urbanos icônicos sem respeitar sua importância histórica. Um exemplo é o Obelisco dos Piques. Localizado no Largo da Memória e próximo à entrada da estação do metrô Anhangabaú, no centro da cidade, ele fica onde, no século 19, funcionava o Mercado dos Negros, destinado à negociação de pessoas escravizadas. Não há, porém, menção a isso. Outro caso é o Largo 7 de Setembro, que só ganhou este nome em 1865, em homenagem à Independência do Brasil. Antes disso, funcionou ali durante dois séculos o Pelourinho da cidade, para onde eram levados indígenas, africanos e afrodescendentes que seriam castigados. Atualmente, uma pequena placa tenta garantir que esta parte da história não seja esquecida.

(Voz de Tainá de Paula)

Antes de ser chamada de Largo 7 de Setembro, a praça era conhecida como Largo dos Piques, devido ao aspecto íngreme e triangular da área. O local servia de paragem para tropeiros que traziam mercadorias vindas do interior.

(Voz de Tainá de Paula)

Aos sábados, comerciantes usavam o local para leiloar, comprar e vender pessoas escravizadas. Ali era conhecido também como Mercado dos Negros. Desenhado pelo engenheiro Daniel Pedro Müller, o Obelisco, de 1814, é o monumento mais antigo de São Paulo, mas apagou a relação do local com sua memória racista.

(Voz de Marina Feldhus)

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Quem define por lei as pessoas a serem lembradas em público são vereadores, prefeitos ou deputados estaduais. Para os especialistas ouvidos pela reportagem, é evidente a diferenciação no tratamento dependendo da origem da personalidade histórica.

Enquanto alguns são homenageados em áreas nobres da cidade e de modo inevitavelmente visível, pelo tamanho e local da instalação, outros são representados com aparência disforme, como a Estátua da Mãe Preta, ou posicionados em lugares de grande poluição visual, como o busto de Luiz Gama, ambas no centro de São Paulo.

(Voz de Tainá de Paula)

O monumento da Mãe Preta é uma estátua de bronze que nasceu da pressão por deixar clara a participação de homens e mulheres negros na formação da sociedade brasileira. A mobilização de militantes, entre eles jornalistas e intelectuais, começou a se articular em torno de 1920 com o objetivo de cobrar o governo pela homenagem.

(Voz de Tainá de Paula)

O resultado não saiu como o planejado. Presidida por Frederico Penteado Junior, o Clube 220, entidade que reunia as famílias negras de São Paulo, sugeriu à Câmara Municipal que o busto da Mãe Preta ficasse em uma das praças públicas da cidade. Isso aconteceu. A inauguração ocorreu em 1955, no Largo do Paissandu, durante a celebração do aniversário de São Paulo. Entretanto, a estátua, feita pelo escultor Júlio Guerra, foi contestada. Não era a imagem pleiteada pelos ativistas negros dos anos 1920, que queriam uma mulher bonita e bem vestida como eram as amas de leite, mas, sim, o monumento de uma mulher negra com traços distorcidos.

Homenageado com um busto no Largo do Arouche, Luiz Gama nasceu na Bahia, foi escravizado e, quando libertado, passou a atuar nos movimentos abolicionistas como jornalista. Também foi autodidata no estudo do direito e ajudou a libertar centenas de pessoas escravizadas pela via judicial. No entanto, só foi reconhecido como advogado 133 anos após sua morte.

(Voz de Paulo César Garcez Marins)

Foi o primeiro monumento da cidade a prestar homenagem a um líder negro. De autoria do artista Yolando Mallozzi, foi inaugurado em 1931 também sob pressão do movimento negro de São Paulo, que pedia reconhecimento público das personalidades negras.

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A forte influência do poder político e econômico também é determinante na escolha dos locais e do tamanho destes monumentos.

(Voz de Tainá de Paula)

Inaugurada em 1957, a estátua de Manuel da Borba Gato, que era de uma família de bandeirantes na região do litoral paulista, tem 13 metros de altura, contando seu pedestal. De autoria de Júlio Guerra, está localizada na Praça Augusto Tortorelo de Araújo, no distrito de Santo Amaro.

(Voz de Marina Feldhues)

Borba Gato foi casado com a filha de Fernão Dias, um dos bandeirantes mais ricos de São Paulo. Assim como o Monumento às Bandeiras, sua estátua eleva à categoria de herói um personagem ligado por historiadores ao extermínio e à escravização de indígenas no país.

(Voz da vereadora eleita Erika Hilton)

Como deputada estadual, Erika Hilton (PSOL) protocolou em março de 2019 um projeto de lei na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) para retirar das ruas as estátuas de figuras controversas e as substituírem por outros personagens com histórico abolicionista. Até hoje, o projeto nunca entrou em pauta no plenário da Alesp.

(Voz de Tainá de Paula)

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(Voz de Erika Hilton)

Inaugurada em 11 de agosto de 1924, nos jardins do Palácio dos Campos Elíseos, a estátua foi transferida 11 anos depois para frente do parque Trianon, na avenida Paulista. Ela representa o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva. Chamado entre os indígenas de Anhanguera, o "espírito do mal", ele ficou conhecido por buscar ouro nas terras das tribos.

(Voz de Erika Hilton)

Feito pelo escultor Victor Brecheret, o Monumento às Bandeirantes homenageia os homens que exploraram os sertões durante os séculos 17 e 18. Por outro lado, é alvo de reclamação por não mencionar que se refere a um período de mortes e invasões de terras indígenas.

(Voz de Marina Feldhues)

Popularmente apelidado de "Empurra-Empurra" ou "Deixa-Que-Eu-Empurro", o monumento tem 50 metros de comprimento e 16 metros de altura, e está localizado na Praça Armando de Salles Oliveira, na frente do Parque do Ibirapuera.

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(Voz de Paulo Cesar Garcez Marins)

A obra representa a hegemonia de um pensamento desenvolvimentista paulista. Foi inaugurada em 1954, durante as comemorações dos 400 anos da cidade de São Paulo.

(Voz de Tainá de Paula)

A cidade de São Paulo é um amontoado de memórias sobrepostas e preservadas de maneira desigual. A atual praça Antônio Prado é exemplo disso. Nomeado em homenagem a um cafeicultor, o local abriga a B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. O prédio em que ela funciona foi construído onde ficava a Igreja do Rosário dos Homens Pretos. O local é simbólico para a população negra, pois o templo era a casa de uma das primeiras irmandades católicas a aceitar negros em cultos religiosos e a permitir sepultamentos de pessoas escravizadas. Hoje há na praça a estátua de Zumbi dos Palmares.

De autoria do artista plástico José Maria Ferreira dos Santos, conhecido como Jofe dos Santos, o monumento do Quilombo dos Palmares —e de um movimento de resistência e luta contra a escravidão no século 17— foi inaugurado em 2016.

(Voz de Carlos da Silva Junior)

O dia 20 de novembro, quando Zumbi foi assassinado no ano de 1695, é respeitado hoje como o Dia da Consciência Negra.

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Publicado em 17 de março de 2021.

Edição: Helton Gomes Simões e Lucas Lima

Reportagem, fotos e captação de vídeo: Gabriela Di Bella e Keiny Andrade

Coordenação de Vídeo: Lígia Carriel

Edição de vídeo: Douglas Lambert