Dor em dobro

Enterros sem resultado de teste alongam a agonia de quem não sabe se familiar morto foi vítima do coronavírus

Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo PAULO GUERETA/ESTADÃO CONTEÚDO

Telefone tocando no meio da madrugada é preocupante. Com mãe internada, é mau agouro.

O operador de máquinas José Moura Silva, 41, entendeu o motivo da ligação logo que chegou ao hospital do Grajaú, em São Paulo. Recebeu uma roupa parecida com a de um astronauta e a permissão para entrar na UTI. Ele sabia que estavam concedendo a chance de dizer adeus a Adenivalda Ferreira da Silva, 70.

No cemitério São Luís, zona sul de São Paulo, não teve despedida. A declaração de óbito tinha o carimbo D3. Traduzindo do idioma funerário: a morte de Adenivalda era tratada como suspeita de covid-19.

Mas ela morreu sem saber se foi infectada pelo novo coronavírus. O material para exame foi coletado em 23 de março, e até agora o resultado não veio.

"O óbito está obscuro. Sei que minha mãe morreu de pneumonia, mas não sei se foi causada por covid", lamenta José.

O caso de Adenivalda é exemplo da sombra das estatísticas oficiais da covid-19 no país.

JORGE HELY/ESTADÃO CONTEÚDO

Números por desenterrar

Divulgação/CDC

16 mil testes no estado de São Paulo

É a fila de exames de covid-19 ainda não avaliados

Marlene Bergamo/Folhapress

201 mortes a esclarecer em SP

Dos testes na fila, duas centenas são de pessoas que morreram

WANA NEWS AGENCY

164 mortes confirmadas em SP

A contagem oficial pode mais que duplicar com os exames na fila

Reprodução

A burocracia da morte

A emergência de saúde pública que o Brasil enfrenta, cuja dimensão pode estar subnotificada, exige regras duras que alteraram velórios e enterros.

José Moura e os familiares esperaram no estacionamento, enquanto o motorista da funerária resolvia a burocracia com a administração do cemitério. Tudo por causa de um papel com a sigla D3.

Essa é a indicação de morte por covid-19 ou sob suspeita. Ela atende a um decreto de 26 de março do governo do Estado, que também determina colocar a expressão "insuficiência respiratória a esclarecer" na declaração de óbito e alerta quem maneja o caixão sobre o risco de contaminação.

Mas a sigla conta mais coisa. O número, não revelado, de casos positivos de pessoas enterradas com esse carimbo é o tamanho da sombra existente nas estatísticas.

Getty Images

A Secretaria estadual de Saúde de São Paulo montou uma força-tarefa e espera zerar a fila de mortes suspeitas em 24 horas.

Nada foi dito sobre a fila de diagnósticos suspeitos de coronavírus em pessoas vivas, que tem 16 mil casos. Para dar dimensão da defasagem na capacidade de testes, no sábado eram 12 mil exames na fila — ou seja, aumentou 4 mil em quatro dias.

O governo prometeu aumentar o número de testes para 1.000 por dia, o que não esgota a fila.

Neste momento em que a capacidade de operação dos laboratórios perde para a velocidade das infecções pulmonares, a reação possível foi ampliar a capacidade de enterrar pessoas. A cidade de São Paulo contratou 20 carros funerários extras e mandou abrir 1.000 covas.

Cemitérios põem em xeque a estatística oficial

PAULO GUERETA/ESTADÃO CONTEÚDO
Arquivo pessoal

Em um desses túmulos recentemente abertos está a mãe de José Moura.

Com camisa preta em sinal de luto, o operador de máquinas era a cara da resignação: expressão séria de quem não pode fazer mais nada e olhar tranquilo de quem fez tudo que podia pela mãe em vida. Ambos moravam na mesma casa — ele no segundo andar, e Adenivalda embaixo.

José diz que a mãe chegou ao hospital no dia 23 de março e foi direto para UTI. Aplicaram hidroxicloriquina, mas terça-feira o telefone tocou no meio da madrugada.

O decreto do governador João Doria estabelece que o corpo siga direto do hospital para o cemitério. A família do operador de máquinas não pôde bancar um caixão luxuoso. Não havia nem vidro que permitisse ver a mãe.

Dá uma tristeza. Não quero ser dramático, mas você não sabe nem se é mesmo sua mãe ali dentro."

A fala baixa de José combina com o cemitério, lugar de silêncio por natureza. Um funcionário usa o mesmo tom, mas porque revela algo quase confidencial, o impacto do coronavírus no Cemitério São Luís: "Foram 10 covid".

Um colega se encarrega de completar que os enterros começaram pouco antes da quarentena [iniciada em 24 de março no estado]. Finaliza contando o número de vezes em que a morte chegou antes do resultado do exame: "Tivemos cinco enterros de suspeitos [de covid-19]. Está dois confirmados para cada um suspeito".

As contas improvisadas pelos coveiros não são confirmadas nem rejeitadas pela Secretaria Estadual de Saúde, que se atém aos dados oficialmente divulgados, mas não os esmiúça.

No Cemitério Campo Grande, na zona sul da capital, também não há detalhes disponíveis. Ninguém dá informação dentro dos muros do cemitério, mas na calçada uma pessoa diz que houve um enterro de paciente confirmado com coronavírus. O funcionário revela até a data, 20 de março. Desde então, mais 14 sepultamentos. Todos de pessoas cujo exame não ficou pronto.

Os casos da zona sul se repetem na zona leste. O cemitério São Pedro tem funcionários ressabiados que comentam ocorrer, a cada dia, pelo menos um enterro de vítima com "insuficiência respiratória a esclarecer". De novo, começando pouco antes da quarentena.

Vizinho ao cemitério, o crematório teve, somente na segunda-feira (30), oito famílias saindo do local carregando uma urna. Todos os dias há pessoas com causa de morte suspeita de covid-19 dando entrada nos livros de registro, afirma uma funcionária.

Ela diz que não dá para confiar nos dados oficiais e reclama que a demora nos resultados dos exames priva as famílias de uma despedida digna.

A falta de dados não muda o resultado final, a morte está dada. Mas José Moura quer saber o que levou sua mãe.

Cecilia Fabiano/LaPresse

Falta de dados atrapalha luto e combate à pandemia

Sergio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, diz que a falta de exames pode mascarar a letalidade da covid-19.

"Atrapalha, porque não tem um dado fidedigno da letalidade. Será que a letalidade é 3,5% ou menor? Provavelmente é menor, porque terei mais diagnósticos e não tantas mortes", calcula.

Cimerman acrescenta que a falta de testes pode esconder dados de pessoas que se consideram menos propensas a quadros graves, como os jovens. "Outra questão que pode atrapalhar no enfrentamento [à covid-19] é a faixa etária. A gente sabe que idoso morre mais, mas temos visto no Brasil muitos jovens internados, alguns indo para UTI."

Ou seja, como na medicina conhecer o tamanho do problema é essencial para a sociedade saber a dose do remédio, que no momento é ficar em casa.

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