Hematomas do cárcere

Número de funcionários demitidos na Fundação Casa de SP por maus-tratos sobe 80% em um ano

Leonardo Martins, Luís Adorno e Flávio Costa Do UOL, em São Paulo André Toma/UOL

Socos, chutes e cadeiradas. Xingamentos constantes. Sessões de espancamento por respostas atravessadas a agentes socioeducativos. Surras como rito de iniciação. Nos últimos nove anos, a Fundação Casa de São Paulo, que recebe menores apreendidos no estado, foi notificada e abriu sindicâncias para apurar esses tipos de maus-tratos contra adolescentes. Após investigações internas, quando comprovadas as agressões, o estado teve de demitir os funcionários pela má conduta.

No último ano, as demissões por maus-tratos bateram recorde.

Dados da própria Fundação Casa, obtidos com exclusividade pelo UOL por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), apontam que 27 funcionários --em sua maioria agentes socioeducativos-- foram demitidos da instituição por agressão a internos em 2018. O número é 80% maior quando comparado a 2017.

Em comparação com nove anos atrás, o aumento é quase seis vezes maior. Em 2009, foram cinco funcionários demitidos por maltratar internos. Além dos agentes socioeducativos, há entre os demitidos pessoas que exerciam os cargos de coordenador de equipe e de analista técnico.

O presidente da Fundação Casa, Paulo Dimas Mascaretti, afirmou em entrevista à reportagem que todas as denúncias são apuradas e que maus-tratos não correspondem à postura determinada pelo estado para agentes socioeducativos da instituição.

André Toma/UOL

Funcionários da Fundação Casa de SP demitidos por maus-tratos

Histórico violento

Em 2000, Febem já flagrava funcionários armados

Setembro de 2000. O relator da ONU (Organização das Nações Unidas) para a tortura, Nigel Rodley, inspecionou a unidade da antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), localizada na rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Em um armário dos funcionários, ele encontrou porretes de madeira e de ferro usados para espancar internos. Ao pedir explicações ao diretor da unidade à época, recebeu o silêncio como resposta.

Fevereiro de 2005. Pressionado por uma série de denúncias de tortura de internos e de rebeliões nas unidades, o então presidente da Febem, Alexandre de Moraes, decidiu demitir de uma só vez 1.761 monitores sob alegação de afastar a "banda podre" da instituição. Havia cerca de 9.000 funcionários na fundação à época.

A medida tomada por Moraes, hoje ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), gerou uma ação trabalhista coletiva que já obrigou o governo de São Paulo a pagar pelo menos R$ 38 milhões. Moraes chegou a ser investigado pelo Ministério Público paulista, mas o caso foi arquivado.

Dezembro de 2006. Em uma tentativa de mudança de imagem por meio de troca de nome, a Febem virou Fundação Casa. As denúncias de internos a respeito do comportamento dos agentes continuam a surgir.

"Nem todas [as denúncias] conseguem ser investigadas. Muitas vezes, os internos não vão adiante nas denúncias com medo de represálias", afirma o defensor público Daniel Secco, coordenador auxiliar do Núcleo Especializado em Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo.

Sem apresentar números, Secco declara que novos pedidos de investigação sobre suspeitas de maus-tratos da Fundação Casa são enviados semanalmente à corregedoria da instituição e ao Ministério Público.

Para o advogado Marcos Fuchs, diretor jurídico da ONG Conectas Direitos Humanos, as ocorrências na Fundação Casa são reflexo da cultura de "violência institucional" existente no país.

"As próprias unidades da fundação espelham a lógica carcerária. A arquitetura é semelhante aos presídios e isso já favorece para criar um ambiente em que o adolescente é visto como um criminoso e não alguém que precisa passar por um processo socioeducativo", diz Fuchs.

"Porém, o aumento de demissões tem um aspecto positivo. Isso indica que as corregedorias e seus mecanismos de controle estão funcionando melhor do que em anos anteriores."

"Menos na cara para não quebrar"

Ex-internos relatam o dia a dia na Fundação Casa de SP

Efeitos do tráfico

Em dez anos, subiu 307% o número de reincidentes ligados à droga

O número de adolescentes reincidentes pela prática de tráfico de drogas saltou 307% na Fundação Casa entre janeiro de 2008 e dezembro de 2018.

Em 2008, eram 2.773 adolescentes reincidentes pela prática do crime. Em 2018, foram 11.686 jovens. Os dados também foram obtidos por meio da LAI.

De acordo com o levantamento, tráfico de drogas, roubo (simples e qualificado), furto (simples e qualificado) e o descumprimento de medida judicial são os crimes que mais levam os adolescentes de volta à instituição. Até 2012, no entanto, o roubo era líder em reincidentes, seguido pelo tráfico. O cenário inverteu e se manteve assim desde 2013.

Levantamento do Instituto Sou da Paz, com base em informações da Polícia Civil, aponta que o número de adolescentes apreendidos por homicídio ou roubo seguido de morte no ano passado, reincidentes ou não, não representou nem sequer de 1% do total. Os crimes mais praticados por adolescentes no ano passado foram o tráfico de drogas (51%) e o roubo (21%).

"A gente precisa ser duro"

A rotina de supervisão

Sob anonimato, a reportagem entrevistou um agente da Fundação Casa. Ele afirmou, em um depoimento escrito em primeira pessoa, que já teve escoriações por agressões. Leia aqui o relato completo do agente.

Não sei quais as condições das expulsões desses agentes, mas tenho certeza que nem todos são monstros. A maioria sai de casa para seu serviço e voltar para o seu lar em paz. Mas, muitas vezes, a gente precisa responder na mesma altura. Não digo que é certo ou errado, mas digo que essa é a verdade.
Agente da Fundação Casa, que pediu anonimato

Em entrevista ao UOL, o secretário da Justiça e presidente da Fundação Casa, Paulo Dimas Mascaretti, justificou o aumento no número de demissões por agressão pelo aumento no número de servidores. "Em 2008, tínhamos 10.339 funcionários. Hoje em dia, temos cerca de 12.500. Isso gera um maior número de investigações", disse. Mascaretti também justificou a crescente ao afirmar que há casos de agressão em que mais de um agente pode estar envolvido. "Em um episódio em determinada unidade, foram investigados 15 servidores. Outros casos são um ou dois agentes isoladamente", exemplificou.

Mascaretti afirmou ainda que existe uma preocupação "muito grande" da fundação na apuração e punição por casos de maus-tratos a internos. "Não só de maus-tratos, mas qualquer coisa que fuja dos padrões de atendimento", disse.

O presidente da Fundação Casa afirmou que não há indícios da presença da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) em unidades da instituição. E que cada unidade recebe visitas mensais de promotores para ter informações de conduta dos agentes socioeducativos e do atendimento a internos.

Dentro da fundação, com acompanhamento de promotores, não tem nenhuma indicação de que facções estejam presentes. Os menores estão das 6h às 18h envolvidos com atividades frequentemente fiscalizadas por agentes socioeducativos.
Paulo Dimas Mascaretti, presidente da Fundação Casa

Socos de boas-vindas

Adolescentes infratores sofrem violência já quando chegam às unidades

A "recepção" é um ritual iniciatório que se mantém desde os tempos da Febem, revelam documentos judiciais sobre casos de tortura cometidos por funcionários da Fundação Casa e relatórios do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, órgão atualmente no Ministério dos Direitos Humanos.

Agentes socioeducativos xingam e agridem com socos, tapas e pontapés os adolescentes infratores recém-chegados às unidades. Há relatos de agressões ocorridas, sistematicamente, nos três primeiros dias de internação.

"Eles só não batem no rosto para não quebrar. Mas dão socos nas costelas, nas costas", afirma o consultor comercial Willian Oliveira, 23, ex-interno por um ano.

"A tortura se tornou um instrumento de controle disciplinar no sistema prisional brasileiro. E essa lógica é repetida nas unidades socioeducativas", afirma a psicóloga Ana Claudia Camuri, pesquisadora do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da Universidade de Brasília (UNB).

Autora do livro "Governabilidade e Tortura" (Apcris, 2019), Camuri estima que o percentual de processos administrativos disciplinares que resultam em demissões é ínfimo em comparação ao total de sindicâncias abertas para investigar esses casos.

"Vale lembrar o perfil desses jovens que estão nessas unidades: negros, pobres e de baixa escolaridade."

Questionada pela reportagem, a Fundação Casa não respondeu quantos processos administrativos disciplinares foram abertos desde 2009 para investigar maus-tratos, tratamento desumano ou degradante e tortura na instituição.

Adolescentes apreendidos mais de uma vez em SP por tráfico de drogas

PCC "terceiriza" menores

Crianças e adolescentes são usados como olheiros

O PCC controla o tráfico de drogas em todo o estado de São Paulo, sem disputar espaço territorial com outras facções, como costuma ocorrer na maior parte do país. A facção tem como inimigo apenas a polícia paulista, que costuma fazer incursões em regiões dominadas pelo crime para reprimir o comércio de drogas.

No conflito contra a polícia, o PCC utiliza menores de idade de maneira estratégica. Apesar de não admitir que crianças e adolescentes pertençam diretamente à facção, o PCC costuma "contratar" seus serviços, os utilizando em pontos de venda de drogas como olheiros, para avisar sobre movimentações policiais.

"Muito embora adolescentes afirmem ser integrantes do PCC, em São Paulo a facção não admite menores entre seus integrantes. Em estados do Nordeste, como Ceará, por exemplo, adolescentes já são admitidos. Agora, nada impede de ter menores em envolvimento com o crime, prestando auxílio ao tráfico e para integrantes do PCC. É comum trabalharem nas biqueiras, inclusive como olheiros", afirmou o promotor Lincoln Gakyia, chefe do Gaeco (Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado) em Presidente Prudente (SP).

O aumento de 306% relacionado a adolescentes apreendidos mais de uma vez pelo crime de tráfico de drogas teria ligação direta com a "terceirização" feita pelo PCC desses jovens, aponta o promotor. A estratégia costuma dar certo, uma vez que, ao utilizar menores de idade em pontos de tráfico, menos integrantes diretos do crime organizado, maiores de idade, são detidos. Além disso, a rigor os menores ficam menos tempo reclusos.

Willian Oliveira, ex-interno, foi preso por roubo há cinco anos. Dentro da Fundação Casa, ele relata que não havia a presença direta do PCC.

Se tivesse, os funcionários não bateriam, não iam nem encostar. Se funcionários batessem em moleques do PCC, morreriam.
Willian Oliveira, ex-interno da Fundação Casa

Oliveira contou com o auxílio de um projeto socioeducativo na fundação para conseguir emprego assim que saísse da internação.

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