Porradas e humilhações

Vítimas relatam agressões físicas e psicológicas motivadas por homofobia; STF aprova criminalização

Lucas Borges Teixeira Colaboração para o UOL, em São Paulo Dolores Ochoa - 17.mai.2012/AP

Um entrevistado era maltratado pelo padrasto por ter um jeito afeminado. Outras duas sofreram xingamentos nas redes sociais por postarem uma foto juntas. Um terceiro apanhou de cinco homens na frente de uma festa.

O que eles têm em comum?

Todos foram agredidos por se relacionarem com pessoas do mesmo sexo.

Casos como este infelizmente não são raros no Brasil. Um estudo do ano passado feito pelo pesquisador Julio Pinheiro Cardia mostra que a cada 16 horas uma pessoa morre por homofobia no país.

O STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou hoje o uso de lei sobre o racismo para punir homofobia, enquanto o Congresso não formula uma proposta específica sobre o assunto.

O UOL ouviu vítimas de diferentes tipos de agressões motivadas apenas por preconceito contra suas orientações sexuais.

Dolores Ochoa - 17.mai.2012/AP
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Espancamento, bullying e assédio

M. M.*, 38, descobriu na infância os efeitos da homofobia. Ele morava com a mãe e o padrasto em um bairro de classe alta de Salvador. Seu jeito "mais delicado" não agradava o companheiro da mãe, que o agredia quando ela estava ausente.

"Na época [final dos anos 1980], não se falava em homofobia. Ele tinha uma visão bem machista, e eu era uma criança delicada no jeito de ser. Quando me via fazendo qualquer tipo de brincadeira considerada do sexo feminino, ele vinha me bater", conta.

As agressões iam de tapas a pancadas com toalha molhada. "Ele também torcia a minha orelha. Uma vez, fez tão forte que a quebrou. Até hoje não digo para os outros como isso aconteceu."

A violência durou dos sete aos dez anos. Até que a mãe descobriu e pediu o divórcio.

Um pouco mais velho, a vida na escola não foi muito melhor. "Eu sou negro e estudava em uma escola da aristocracia. Além de sofrer bullying por isso, com piadas com café e o meu sobrenome, também tinha o aspecto de ser afeminado."

M. M. conta que só desenvolveu a voz por volta dos 16 anos, o que também lhe transformou em alvo de diversos abusos e músicas pejorativas. "Isso teve um peso grande, porque tentei empurrar para a frente minha vida sexual ao máximo. Eu tinha vergonha, não queria desenvolver meu desejo por outros homens. Então focava nos estudos. Só fui ter a minha primeira relação sexual aos 21 anos e só me assumi para a minha mãe aos 25, depois de ter ido à faculdade."

Adulto, se mudou para São Paulo e conseguiu um bom emprego em uma empresa que presta serviços públicos. No trabalho, no entanto, foi alvo de piadas de um chefe durante três anos, entre 2014 e 2017. "Ele ficava me elogiando, falando das minhas pernas na frente das outras pessoas. Isso se repetiu várias e várias vezes nesse período. Era só para constranger, porque ele não era homossexual, duvido que tinha qualquer objetivo comigo", diz.

Com isso, M. M. relata ter assumido uma atitude cada vez mais reativa. "Se há qualquer tipo de piada, eu me levanto contra [quem fez], o que não fazia aos 16."

Os efeitos de anos de abuso, no entanto, persistem. Ele conseguiu enfrentar a depressão na adolescência, mas ainda toma medicamentos. "Eu tenho uma vida que considero saudável, mas muitas escolhas foram feitas para mostrar que eu poderia, sim, ser um homossexual, negro e nordestino que faz sucesso em São Paulo. Não me vitimizo, sou bem-sucedido, mas sei que não fui tudo o que eu poderia ter sido porque alguém disse que eu não poderia ser."

Meu padrasto também torcia a minha orelha. Uma vez, fez tão forte que a quebrou. Até hoje não digo para os outros como isso aconteceu

M. M.*, vítima de homofobia

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Risadas depois de porradas

Diferentemente de muitos conhecidos, F. Y.*, 31, não enfrentou problemas quando jovem por sua orientação sexual. "Sou de uma geração que entendeu a sexualidade mais tarde. Comigo foi por volta dos 22 ou 23, mas nunca tive problema com isso, nem na escola", relata. "Minha família sempre foi muito tranquila, não me senti rejeitado, nada do tipo."

Ele diz que via casos de homofobia na mídia, mas pensava estar longe da sua realidade. Até outubro do ano passado.

F. Y. saía com uma amiga de uma casa de shows em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, onde tinha visto a apresentação de uma amiga drag queen, por volta das 2h. "Ainda ia ter uma festa lá, então tinha movimentação, muita gente chegando. Mas decidimos voltar para casa."

Os dois pediram carros por aplicativo e o dela chegou primeiro.

Para esperar, ele foi até a esquina e sentou no meio-fio. "Estava me sentindo seguro e mexia no celular. Até que chutaram ele para cima. Sem eu conseguir ver nada, outra pessoa bateu no meu rosto. Eu apaguei um pouco e senti mais uma porrada nas costas."

Como estava na calçada, ele se encolheu no chão. "Eles começaram a me bater mais e xingar de 'viado filho da puta'. Eu não sabia nem o que pensar, era um alvo bem fácil ali sentado", conta.

Os ambulantes próximos notaram a agressão e foram socorrê-lo. "Pelo que consegui identificar, eram cinco. Eles saíram correndo, rindo, como se tivessem apertado a campainha de uma casa."

O motorista chegou e ele foi levado ensanguentado ao hospital. Além de lesões por todo o corpo, teve um nariz quebrado e passou por uma cirurgia plástica. "Até hoje não contei para minha mãe porque ela é muito protetora. Ela já tinha esse medo [de agressão], que eu ainda não tinha."

Ele fez um boletim de ocorrência, caracterizado apenas como agressão, sem homofobia, e não sabe como está o andamento do caso.

F. Y. ficou por um tempo com receio ao andar na rua. "Tive medo de ir trabalhar. Dentro do metrô, tinha uma sensação estranha. Foi uma fase curta, já não tenho tanto medo, mas não sou a mesma pessoa desde aquele dia. Isso me fez entender que há quem me enxergue como uma piada, um saco de pancadas. Fui pego totalmente desprevenido, sem ter feito nada. Por isso estou muito mais envolvido com estes casos. É preciso que as pessoas saibam."

Pelo que consegui identificar, eram cinco [agressores]. Eles saíram correndo, rindo, como se tivessem apertado a campainha de uma casa

F. Y.*, vítima de homofobia

Fernando Donasci/UOL

Quando dar as mãos vira um ato de coragem

G.A.*, 25, e Y. I.*, 27, estão juntas há dois anos. No ano passado, as duas foram convidadas para participar de uma propaganda de Dia dos Namorados nas redes sociais de uma loja de roupas em Maceió.

"A campanha ia ter vários casais: hétero, de senhores, um homossexual de homens e outro de mulheres. Eles não puderam ir e só ficou nós duas", conta G.A. Ela diz que o ensaio foi muito tranquilo e todos adoraram as fotos.

"No dia em que lançaram a campanha [no Instagram], eu estava dando aula e o celular começou a tocar muitas vezes. Quando fui ver, eram várias mensagens da Y. I., chocadíssima, porque estava muito feliz que saiu, mas, quando abriu a foto, viu vários comentários fortes. Uma mulher, em especial, ficava repetindo que a gente não era um casal, mas uma dupla, porque casal é homem e mulher, tem que ter órgão genital masculino. Falava até para pesquisar na Bíblia."

Como estava no trabalho, ela só pode avaliar a situação à noite, quando chegou ao apartamento onde mora com a namorada. "Tinha muita gente falando que ia parar de seguir a loja, que era um desrespeito e vários comentários horríveis, dizendo que éramos aberrações, coisas muito baixas."

Segundo ela, as duas ficaram chateadas porque nunca imaginaram que uma foto de duas pessoas apaixonadas poderia gerar uma reação tão violenta. "A gente nunca acha que vai ser com a gente."

G.A. diz que o mais trágico deste acontecimento é a insegurança. "Ficamos muito mal ao ver que, quando a gente está andando na rua, essas são as pessoas que vão olhar para nós."

As duas dizem já não se sentirem seguras e lamentam que tenham de tomar precauções que casais heterossexuais nem sabem que existem. Quando pegam carro por aplicativo para irem ao trabalho, por exemplo, evitam dar selinho ao se despedirem, com receio da reação do motorista.

"Quando estamos andando e vamos passar por algum lugar, a gente se pergunta: 'Vamos dar as mãos?'. É uma coisa tão simples, né? Mas, para nós, é um ato que requer muita coragem, pois não se sabe se uma pessoa vai se ofender pelo fato de existirmos como casal e vir para cima."

A gente nunca acha que vai ser com a gente

G. A.*, vítima de homofobia

Valentina Petrova/AP

"Corri como nunca na vida"

M. B.*, 27, também sente os efeitos da homofobia desde criança, quando morava em Franca, no interior paulista. "Eu tive uma criação excelente, estava inserido em um contexto perfeitinho, mas sabia que ocorria algo diferente comigo", conta. "Eu sofria bullying, era chamado de 'viado' a todo momento, mas nem isso eu conseguia entender direito."

Aos 24 anos, em 2016, quatro anos depois de ter tido sua primeira experiência homossexual, se mudou para Ribeirão Preto para fazer residência odontológica e foi morar em um pequeno prédio recém-lançado, onde era o único inquilino. "Lugar novo, tive mais forças para tudo, não tinha problema de falar para os outros que sou gay. Só me deixava triste porque não conseguia compartilhar isso com meus pais e meu irmão, as pessoas que mais amo."

Um dia, quando voltava da academia, a duas quadras do prédio, à noite, notou que era seguido por dois homens. "Minha reação foi andar mais devagar, me preparando para ser assaltado, e parei na esquina. Até que escutei um deles falando: 'E aí, viadinho?'. Eu não sabia o que pensar, nunca tinha passado por nada disso."

Sem respostas, os dois o cercaram e iniciaram as agressões verbais e físicas. "Começaram a me humilhar, falando coisas horríveis e dando uns tapas na cara, na cabeça. Eu não conseguia fazer nada, nem olhava para eles. Quando fui falar, um deu um tabefe na minha boca, tão forte que cortou o lábio. Eu queria explodir ele, meu olho encheu de lágrimas, mas não falei nada. O outro, então, cuspiu na minha cara, pedindo alguma reação."

Com o barulho, uma senhora que morava na frente saiu para a rua. "Quando eles deram as costas para falar com ela, saí correndo como nunca corri na vida."

M. B. foi parar em uma avenida movimentada da cidade. "Eu não tinha dinheiro, não tinha Uber, não tinha a quem chamar e estava com medo de voltar ao meu prédio e eles verem que eu moro sozinho."

Depois de um tempo, correu para o apartamento. "Tive crise de ansiedade trancado no banheiro e decidi contar para os meus pais."

Na visita seguinte a Franca, deixou uma carta para os dois, mas só contou sobre o incidente anos depois. Ele também nunca mais voltou à academia, com medo de encontrar os agressores. "Paguei um plano anual e não consegui ir lá nem para cancelar... Comecei a ter um pouco de fobia de sair de casa."

Hoje, se diz mais forte e confiante. O episódio foi um ponto de mudança. "Eu não me privo de mais nada, mas, ainda assim, muitas vezes não me sinto à vontade em lugares públicos, talvez por receio [de outra agressão]. No fim, a chave disso é heteronormatividade. Sei que pessoas mais afeminadas sofrem mais do que eu. É triste ver um olhar de reprovação só por você ser quem você é."

É triste ver um olhar de reprovação só por você ser quem você é

M. B.*, vítima de homofobia

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Expulso da igreja

Nem toda violência vem de uma única ação direta. A. E.*, 26, era membro de uma igreja cristã em Teresina desde os dez anos. "Desde criança aprendi que homossexualidade era algo errado", conta. "Eles não a atacavam diretamente, mas, caso você tivesse 'esses' pensamentos, teria de controlá-los."

Aos 21 anos, teve sua primeira relação com outro jovem. Com culpa, decidiu contar o ocorrido aos líderes da igreja. "Você passa por um tipo de julgamento. Eles avaliam se você pode continuar ou será expulso, desassociado."

Como punição, foi destituído do cargo de liderança que ocupava e proibido de colaborar nos cultos. Só poderia assistir. A. E. passou um ano assim, até decidir revelar de vez sua sexualidade ao comando da igreja. Foi expulso, com anúncio público a todos os membros, sem revelar o motivo.

"As pessoas pararam de falar comigo. Elas não sabem por quê, mas apoiam a decisão. A igreja fala que não é discriminação, pois deve seguir a Bíblia, mas conheço pessoas que foram desassociadas só de beijarem outra do mesmo sexo. Isso não acontece com heterossexuais."

Ele diz que, no começo, sentia culpa. Nem a família sabia de sua orientação. "Na igreja, eu ouvia comentários de que casal homoafetivo não era família, era nojento. Eu sentia o peso de que não podia ser quem eu sou. A religião fala em respeitar a dignidade humana, mas tudo era pautado em como você deve se comportar, qual o papel do homem. Tudo tinha de ser dentro daquela métrica, daquele padrão. Qualquer coisa que me revelasse afeminado era excluída", conta.

Atualmente, A. E. saiu de casa e tem uma relação "reservada" com os pais. Com a irmã, não fala há quatro anos "por sua crença".

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