Sinais de fumaça

Queimadas na Amazônia atraem olhos do mundo e colocam governo Bolsonaro sob pressão

Bernardo Barbosa e Talita Marchao Do UOL, em São Paulo Ueslei Marcelino - 17.ago.2019/Reuters

No livro "Viagem ao Araguaia", de 1863, o escritor José Vieira Couto de Magalhães descreveu como indígenas que habitavam as margens do rio Araguaia, que nasce em Goiás e deságua no Pará, usavam sinais de fumaça para se comunicar.

"Vão subindo por um buriti e amarrando em torno dele, com um palmo de espaço, faixas de capim verde; descem, depois, e ateiam-lhe fogo: (...) a gigantesca palmeira serve de farol, não só por ficar toda em brasas, como também pela elevada coluna de fumaça, que sobe ao céu em forma de espiral."

Segundo Magalhães, a técnica servia para convocar a tribo a se reunir no fim do dia, mas também podia ser usada para pedir ajuda.

"Quando, porém, o chefe da tribo (...) se vê falto de comida, ou receia algum ataque, ateia o fogo, pela mesma forma, ao meio dia em ponto", escreveu Magalhães, que também foi político e militar.

Desta vez, quem pede socorro com os sinais de fumaça é a Amazônia.

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Otavio Valle/Folhapress Otavio Valle/Folhapress

Dia vira noite em São Paulo

Os sinais de fumaça amazônicos chegaram longe. O que era floresta virou fuligem, e a nuvem viajou milhares de quilômetros, a ponto de fazer o dia virar noite na maior cidade do país. Por volta das 15h, o tempo fechou e as luzes da cidade se acenderam.

Mesmo para uma tribo acostumada ao cinza da poluição, a população de São Paulo manifestou choque nas redes sociais com o cenário da tarde de segunda-feira (19).

A chuva que caiu naquele dia tinha cor de chorume e cheiro de queimado, relataram moradores de diversas regiões. Uma análise preliminar da água feita pelo Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo) apontou a presença de reteno, uma substância tóxica característica de queima de restos de plantas.

Achamos um composto que é encontrado só em queimadas, na queima de biomassa. Esse composto não é emitido em esquema de emissões industriais e não é emitido em emissões de carro. E nós o encontramos
Pérola de Castro Vasconcellos, professora da USP

O que os paulistanos viveram por um dia tem sido um cenário comum em cidades brasileiras dentro da região da Amazônia Legal, como Manaus, Porto Velho, Cuiabá e Rio Branco. Há relatos de céu cinza mesmo em cidades mais distantes, como Corumbá (MS).

"Céu? Aqui não tem, só temos fumaça", disse à BBC Brasil o físico Artur Moret, que mora em Porto Velho. "Quando parou de chover por aqui, há mais ou menos dois meses, as queimadas tiveram início, e o céu começou a ficar assim."

Reprodução/Nasa

No caminho do corredor de fumaça

A fuligem chegou a São Paulo por meio de um corredor de fumaça provocado por queimadas na Amazônia e em países vizinhos como Bolívia e Paraguai, que estão no caminho da fumaça.

Para a agência Fapesp, Saulo Ribeiro de Freitas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) explicou que São Paulo viu a convergência de uma massa de ar poluído que vinha do norte com uma frente fria vinda do sul.

O fenômeno não é incomum nesta época do ano, tempo de seca. No entanto, segundo um especialista entrevistado pelo UOL, o corredor de fumaça não ocorreu nos últimos anos e depende de muitos fatores para se formar --entre eles, o número e a intensidade dos incêndios.

As queimadas ocorridas nos estados da Amazônia Legal em agosto representam 79% das ocorridas no Brasil este mês. Os focos são mais numerosos no Pará (7.901), Amazonas (5.596) e Mato Grosso (5.864).

Satellite image ©2019 Maxar Technologies/Handout via Reuters

A fumaça das queimadas acaba funcionando como alerta para um outro problema: o desmatamento. Isso porque o fogo é o passo seguinte da derrubada de árvores; as chamas são usadas para limpar o terreno, abrindo caminho quase sempre para pastagens.

Uma nota técnica do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) com base em dados do Inpe ajuda a dar a noção da relação entre queimadas e desmatamento. Segundo o documento, "os dez municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento".

AFP/ © 2019 Planet Labs, Inc

Apesar do período de seca, a estiagem este ano está mais branda e não explica por si só o avanço das queimadas na Amazônia, alertam os pesquisadores do Ipam.

De acordo com o Inpe, houve um aumento de 278% no desmatamento da Amazônia em julho na comparação com o mesmo mês do ano anterior.

O Inpe é o mesmo órgão cujo diretor, o físico Ricardo Galvão, foi demitido depois de criticar as declarações do presidente Jair Bolsonaro (PSL) colocando em xeque a credibilidade dos dados de desmatamento do instituto, cujo trabalho de monitoramento existe desde 1988. Os dados do Inpe são usados e reconhecidos dentro e fora do Brasil.

Bruno Kelly/Reuters

Desde junho, quando começaram a vir a público dados mostrando o crescimento do desmatamento, o governo adotou a tática de apontar o dedo para outros como forma de responder às pressões políticas decorrentes do avanço do desmatamento e das queimadas, se valendo até mesmo de acusações sem qualquer tipo de prova.

Esta semana, em dois dias seguidos, sem citar nenhuma evidência que comprovasse o que falava, Bolsonaro disse que ONGs (organizações não governamentais) podem estar por trás das queimadas por terem perdido recursos e com o objetivo de atingi-lo.

Depois, o presidente afirmou que "há suspeitas" de que produtores rurais estariam fazendo queimadas. Mais uma vez, sem detalhar informações sobre o que dizia.

Quando não acusou sem provas, Bolsonaro fez troça das informações sobre desmatamento. No começo de agosto, o presidente criticou os dados do Inpe e se intitulou, em tom de brincadeira, "capitão motosserra".

Em entrevista ao UOL, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo), disse que quer implantar uma força-tarefa envolvendo órgãos do governo, ONGs e empresas que atuam na Amazônia com o objetivo de desenvolver e fiscalizar a região. Ele disse esperar que as primeiras medidas sejam anunciadas em até um mês.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou que a Casa vai criar uma comissão "nos próximos dias" para acompanhar as queimadas e "propor soluções ao governo". Maia sugeriu usar parte de um fundo da Petrobras, de R$ 2,5 bilhões, no combate às queimadas e para a educação --e não para projetos de combate à corrupção.

22.ago.2019 - Ueslei Marcelino/Reuters 22.ago.2019 - Ueslei Marcelino/Reuters
Luis Robayo/AFP

Amazônia vira "crise internacional"

O avanço na devastação na Amazônia colocou o governo Bolsonaro contra a parede de forma inédita nestes primeiros oito meses de mandato. O presidente da França, Emmanuel Macron, esteve à frente da pressão internacional nos últimos dias, que pode ter consequências práticas para a economia brasileira.

Ao afirmar que Bolsonaro mentiu sobre seu compromisso com o meio ambiente, Macron se manifestou contrário à adesão da França ao acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, que passou mais de 20 anos sendo negociado.

Nossa casa está queimando. Literalmente. A floresta amazônica --os pulmões que produzem 20% do oxigênio do nosso planeta-- está em chamas. É uma crise internacional. Membros da Cúpula do G7, vamos discutir esta primeira ordem de emergência em dois dias!

Tanto Macron quanto a chanceler alemã, Angela Merkel, cobraram que a situação da Amazônia seja discutida na reunião do G7 (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e Japão) marcada para este fim de semana em Biarritz, na França.

A Alemanha, por sinal, é uma das financiadoras do Fundo Amazônia junto com a Noruega, por meio do qual mais de cem projetos foram apoiados desde 2008, com investimento de R$ 1,8 bilhão. Os dois países interromperam repasses após o avanço do desmatamento na Amazônia.

Bolsonaro virou alvo de protestos nas ruas de capitais da Europa, e celebridades de expressão global --Madonna, Cristiano Ronaldo, Leonardo DiCaprio, Gisele Bündchen, Lewis Hamilton-- se manifestaram em defesa da Amazônia.

O presidente brasileiro reclamou principalmente de Macron, a quem atribuiu uma "mentalidade colonialista" e o interesse em "ter um espaço na região amazônica". Para o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), Macron "não tem conhecimento do que está acontecendo aqui".

O Itamaraty buscou apagar o incêndio na opinião pública internacional munindo seus diplomatas de dados positivos sobre o combate ao desmatamento no Brasil -- mas referentes a governos anteriores, do PT.

O filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), aspirante à embaixada do Brasil nos EUA, chamou o presidente francês de idiota.

"O Brasil é país que cuida muito bem do seu meio ambiente, não precisamos de lição de ninguém", afirmou o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM).

Após duas semanas de queimadas na Amazônia Legal, da pressão pública e internacional, Bolsonaro anunciou o envio das Forças Armadas para o combate aos incêndios --mas somente para os estados que pedirem ajuda.

Na noite desta sexta-feira, o presidente foi a rede nacional de TV para afirmar que os incêndios florestais, como as queimadas que atingem a região amazônica, acontecem em todo o mundo e não podem "servir de pretexto para sanções internacionais".

O discurso, de pouco mais de quatro minutos, foi recebido com um panelaço em algumas cidades.

As reações no Brasil

Dentro do país, a Rede entrou no STF (Supremo Tribunal Federal) com um pedido de impeachment do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. "Ele cometeu todos os erros", resumiu a ex-ocupante do cargo e principal liderança do partido, Marina Silva.

O MPF (Ministério Público Federal) cobrou do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama que informem se cumpriram o planejamento para 2019 das ações de fiscalização contra o desmatamento e as queimadas na Amazônia.

ONGs como Greenpeace e WWF Brasil reagiram às acusações sem provas de que estariam envolvidas com queimadas, afirmando que o presidente buscou culpar quem defende o meio ambiente em vez de tomar providências para conter o desmatamento na Amazônia.

O Observatório do Clima, que reúne dezenas de entidades no Brasil para discutir a mudança climática, publicou nota dizendo que as queimadas refletem "a irresponsabilidade do presidente" com a Amazônia, destacando que o órgão responsável pelos planos de combate ao desmatamento foi simplesmente extinto. Recentemente, Salles atribuiu a queda na fiscalização a cortes orçamentários decorrentes da crise econômica.

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Futuro em jogo

Enquanto o governo reclama das pressões que sofre e pouco fala de soluções para as queimadas, consequências negativas bastante práticas se avizinham.

O dinheiro bloqueado por Alemanha e Noruega é usado em uma série de ações em defesa da Amazônia, entre elas o monitoramento do desmatamento tão criticado por Bolsonaro.

Na economia, há o risco de que o acordo UE-Mercosul, negociado ao longo de duas décadas, fique estagnado por causa da questão ambiental.

Mais do que o impacto econômico, há o impacto sobre a vida humana. Um dos mais imediatos é o aumento de problemas respiratórios entre quem vive onde a fumaça chega.

No médio e longo prazo, o risco é de que o desmatamento provoque alterações climáticas que poderão ser sentidas não só na Amazônia, mas a milhares de quilômetros da floresta.

Hoje, os ventos das cordilheiras dos Andes --os mesmos que trouxeram a fuligem para São Paulo-- arrastam umidade vinda da Amazônia para o Sudeste brasileiro, a região mais populosa do país. Uma redução da floresta corre um risco de transportar para todo o centro-sul um clima de deserto.

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