Destino Controlado

Celular revistado, passeios vigiados, povo sorridente: o relato de turistas brasileiros na Coreia do Norte

Zeca Baboin e Natalia Takeno Colaboração para o UOL, em Pyongyang Zeca Baboin / Colaboração para UOL

Por favor, chequem novamente os celulares e apaguem qualquer vídeo, imagem ou áudio com conteúdo religioso, pornográfico ou relacionado à Coreia do Norte. Os soldados entrarão para a revista em breve.

Assim, a guia repetia um dos avisos do dia anterior, apresentados na reunião obrigatória promovida pela agência de turismo. Já haviam informado que não é permitido levar lente fotográfica com zoom superior a 150mm, nem aparelhos de GPS (apesar de celulares serem permitidos). Também não poderíamos fotografar militares, construções em andamento, estações de trem ou partes de estátuas.

A lista de proibições na Coreia do Norte se seguia:

  • Proibido tirar foto das imagens dos líderes se houver alguma obstrução, ainda que pequena.
  • Proibido dobrar jornais ou revistas de modo que faça vinco no rosto dos líderes.
  • Proibido jogar fora imagens dos líderes, o que inclui jornais.

Quanto às regras de vestimenta, o país se mostrou mais flexível com os turistas. Homens podem usar bermudas e chinelos, e mulheres podem vestir decotes e minissaias. 

E mais do que proibições, reforçaram uma obrigação: deveríamos sempre, a todo momento, sob qualquer hipótese, seguir as ordens dos guias.

Na maior parte do tempo, eram três nos acompanhando: um britânico, da empresa que vende os pacotes de viagem, e dois funcionários do governo norte-coreano. 

A visita ao país é inteiramente controlada, e os guias locais fixam itinerário e horários, que podem variar sem aviso prévio. Não é possível circular desacompanhado de um guia local. E a regra é seguida à risca: não é permitido dar um passo para fora do hotel sem eles. Não existe turismo independente no país. 

Zeca Baboin / Colaboração para UOL Zeca Baboin / Colaboração para UOL
Zeca Baboin / Colaboração para UOL

O país oferece uma razoável gama de passeios: de tours de dois dias pela capital, Pyongyang, a programas de três semanas, incluindo visitas ao litoral, trekkings para cachoeiras e escalada para avistar um lago no topo de um vulcão fora de atividade.

Com programação ou sorte, é possível ainda participar de eventos como a maratona de Pyongyang, em abril, o festival de cinema ou ainda comemorações cívicas. Essas ocasiões costumam ser marcadas por festividades vistosas e grandes paradas militares, como o aniversário de um dos grandes líderes ou a independência do país.

Nos programamos para estar no país em 9 de setembro, quando é celebrada a criação da República Popular Democrática da Coreia, que cumpriu 70 anos em 2018.

Um dos eventos mais esperados para a ocasião são os Jogos das Massas, apresentação que entrou para o Livro dos Recordes em 2007 como a maior apresentação artística e de ginástica do mundo.

Zeca Baboin / Colaboração para UOL

O gesto inesperado

Há duas maneiras convencionais para o turista entrar na Coreia do Norte: de trem ou de avião, ambos com uma única saída diária a partir de Pequim.

O voo, operado pela estatal Air Koryo, gasta em torno de duas horas até Pyongyang. O trem leva 24 horas e faz uma parada em Dang Dong, cidade chinesa na fronteira com a RDPC (República Democrática Popular da Coreia, nome oficial do Estado). Além de ser a opção mais econômica, permite apreciar a paisagem rural do país de Kim Jong-un.

Apesar das orientações dadas pela empresa de turismo (ou talvez por conta delas), a expectativa era grande quando o trem parou na imigração norte-coreana, após cruzar a fronteira com a China.

Um militar passou recolhendo passaportes e vistos, outros conferiam bagagens e eletrônicos. Duas horas depois, um deles voltou devolvendo os documentos e até distribuindo sorrisos.

Antes de deixar o trem, o policial se aproximou de um turista suíço e acariciou a barba ruiva do estrangeiro. Um gesto que transbordava curiosidade.

Enquanto esperávamos a liberação do trem, caminhamos pela plataforma da estação. Ali, uma mulher uniformizada vendia cervejas, refrigerantes, salgadinhos e sabonetes, a maior parte de origem norte-coreana.

A primeira cerveja norte-coreana de nossas vidas custou R$ 5, não estava muito gelada, mas não decepcionou.

A capital

Zeca Baboin / Colaboração para UOL Zeca Baboin / Colaboração para UOL

Vitrine do governo norte-coreano, Pyongyang impressiona. Ruas impecavelmente limpas, parques bem cuidados e prédios modernos ao lado de avenidas largas demais para os pouco carros que circulam.

Apesar de não ser uma cidade fantasma, o local não tem a vivacidade que se espera de uma capital.

Para muitos, a cidade é um grande teatro para impressionar estrangeiros.

Em alguns pontos da cidade, diziam os guias, linhas de eletricidade bloqueiam as tentativas de fotografia indesejadas. Eles nos avisavam quando os cliques eram permitidos.

O guia britânico explicou que desobedecer a essas ordens simples não traz grandes consequências para o turista, mas sim para os guias locais e para a empresa de turismo.

Há também um sistema tácito de recompensa à disciplina. Grupos desobedientes podem ter visitas encurtadas e locais suprimidos do roteiro. Os mais comportados, por outro lado, podem ganhar regalias. Nosso grupo foi autorizado a visitar um centro de treinamento de tiro, por exemplo.

Zeca Baboin / Colaboração para UOL

Relações humanas

Ainda em Pequim, fomos instruídos sobre como nos portar em relação as pessoas. De maneira geral, algumas regras simples deveriam ser observadas:

  • Não perguntar a opinião dos guias em relação aos líderes, nem criticá-los. Guiar turistas é uma função de prestígio no país, e qualquer deslize (como falar algo indevido ou não controlar o grupo) pode representar a perda de um cargo para o qual o profissional se dedicou a vida toda. Os guias têm resposta padrão para perguntas delicadas.
  • Não tratar os guias norte-coreanos como pessoas de outro mundo. Para se aproximar, uma dica é encontrar gostos em comum. Nosso guia, assim como nós, tinha um grande apreço por  soju (uma bebida alcoólica), mexilhões e ironia. 
  • Demonstre respeito ao país. Em termos práticos, isso significa se curvar diante de estátuas dos líderes e usar roupas sociais em certos lugares.

Mas uma vez no país, a relação com os norte-coreanos se mostrou, antes do que tudo, amistosa. Diferente do clichê, os conterrâneos de Kim Jong-un são sorridentes, receptivos e curiosos com relação aos estrangeiros

Onde quer que estivéssemos, os olhares se voltavam para nós, seguidos de acenos entusiasmados e sorrisos que tentavam, sem sucesso, ser contidos.

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Turismo militar

Igrejas estão para um roteiro turístico em Portugal assim como monumentos militares estão para um passeio na Coreia do Norte: cemitério dos heróis da guerra da independência, Arco do Triunfo e Museu da Guerra estiveram em nosso roteiro.

Os turistas também são levados ao local de nascimento de Kim Il-sung, visitam enormes estátuas dos líderes, a torre da ideologia juche e o monumento de formação do partido.

O monumento mais impressionante é o Mausoléu do Sol, local estão Kim Il-sung e Kim Jong-il mumificados. O acesso é extremamente controlado e exige trajes sociais. Câmera ou qualquer aparelho eletrônico são vetados.

Lá dentro, máquinas limpam o solado dos sapatos, e túneis de ar retiram sujeiras do corpo dos turistas. A visita, de pouco mais de duas horas, tem horário rígido para começar e para terminar.

Mas é na visita à DMZ, a zona desmilitarizada na fronteira com a Coreia do Sul, que se vê o exército de verdade.

A DMZ não impressiona pela estrutura, mas pela simbologia. A apenas algumas dezenas de quilômetros de Seul, a capital sul-coreana, a faixa de terra já foi um dos locais de maior tensão militar do mundo e ainda abriga das maiores concentrações de minas terrestres do globo.

A visita apresenta a visão norte-coreana da história: para eles, não existem duas Coreias, mas sim uma parte do território invadido e ilegitimamente controlado pelos EUA.

Sincronia perfeita

Zeca Baboin / Colaboração para UOL

De última hora, fomos autorizados a assistir à abertura dos Jogos das Massas, normalmente vetados para estrangeiros. Não pudemos levar bolsas, bebidas, aparelhos fotográficos, carteira, cartão de crédito, nem moedas. Dinheiro, apenas em cédulas. A revista e os procedimentos de segurança duraram três horas.

Nos primeiros instantes do espetáculo, sob fortes aplausos e urros, Kim Jong-un tomou a melhor cadeira do estádio.

Diante de nós, começou um espetáculo com muitos fogos, drones luminosos, música e milhares de pessoas que, em sincronia perfeita, operavam placas coloridas que formavam escritos, paisagens e figuras em movimento. Foram cerca de 90 minutos do espetáculo mais impressionante que já vimos, pela grandiosidade e pela coordenação impecável.

No dia seguinte, voltamos para ver o mesmo espetáculo e pudemos levar câmeras. Kim não estava mais.

Zeca Baboin / Colaboração para UOL
Zeca Baboin / Colaboração para UOL

Em uma estrada injustificadamente larga para tão poucos carros, chegamos ao litoral. No caminho, um grupo enorme de trabalhadores pavimentava a via sem o auxílio de máquinas.

Esperava por nós uma espécie de clube, com chalés espalhados em um grande terreno arborizado, tudo muito bem cuidado e confortável. As águas, diziam, eram termais, e um banho de banheira faria bem a saúde.

Ali, vivemos um dos pontos altos da viagem.

Atrás dos chalés, o motorista e o câmera que acompanhava nosso grupo preparavam a entrada do jantar: moluscos flambados na gasolina, acompanhados de soju -- licor comum nas duas Coreias.

Apesar da barreira linguística, tendo em comum a língua dos ébrios, estrangeiros e norte-coreanos sorridentes passaram horas se divertindo em uma espécie de luau sem praia. Apesar de estar no litoral, não vimos o mar.

Longe de Pyongyang, o guia principal, que até então caminhava de testa franzida e cara de preocupação, ria alto. Notava-se que todos, mas especialmente os coreanos, estavam à vontade ali.

Depois do jantar, houve um campeonato de tênis de mesa. A final foi entre o motorista e o guia, ambos extremamente competentes no esporte. Desclassificados, os turistas viraram plateia e juiz.

Foi também nesse momento que descobrimos que a segunda guia, uma moça muito jovem, era estagiária, estudava o último período da faculdade de turismo e tinha dúvidas sobre a carreia. Sua preocupação era em como conciliar uma vida familiar com as responsabilidades da profissão que, na Coreia do Norte, incluía a missão de controlar estrangeiros em um Estado tão fechado.

Zeca Baboin / Colaboração para UOL Zeca Baboin / Colaboração para UOL
Zeca Baboin / Colaboração para UOL

Apesar de dias imersos no país e do convívio intenso com norte-coreanos, a verdade é que nosso contato se restringiu às pessoas designadas pelo regime. Impossível estar 100% confortável com tantas proibições e tanto controle. 

Por outro lado, a experiência mostrou que ideias que tínhamos do país eram rasas.

As crianças uniformizadas correndo na rua, o senhor que cedeu o seu lugar no metrô (sim, há duas linhas em Pyongyang!) por gentileza, o cuidado do guia para explicar a uma brasileira neta de japoneses sua visão da guerra, os acenos entusiasmados das pessoas que nos viam passar pela rua: as imagens que colhemos são muito diferentes do conceito que tínhamos de país fechado e carrancudo.

Antes de partirmos, um funcionário da empresa de turismo que nos levou havia dito:

"Se vocês estão indo para a Coreia do Norte em busca de respostas, não fiquem tristes se retornarem com ainda mais perguntas. Vou há 10 anos, e tem muita coisa que não sei",

Não poderia ser mais preciso.

Zeca Baboin / Colaboração para UOL Zeca Baboin / Colaboração para UOL
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