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'Anjo dos órfãos' na Libéria, freira brasileira relata que ebola 'é pior que guerra'

Renata Mendonça

Em São Paulo

04/02/2015 10h07

A voz alegre de irmã Maria Teresa Moser ao telefone não deixa transparecer a dor que ela tem vivido nos últimos meses.

Desde que mudou do Brasil para a Libéria, há 37 anos, com outras freiras brasileiras da Congregação Missionárias da Consolata, viveu duas guerras civis em um país que já teve de ressurgir das cinzas nas duas vezes.

Mas o ano de 2014, com a epidemia do ebola na região, foi o pior de todos, acredita.

"É pior que a guerra. Porque na guerra pelo menos você podia abraçar as pessoas, consolá-las. Agora são só palavras e lágrimas, não podemos nos tocar, é muito triste", relatou a freira em tom emocionado à BBC Brasil.

"Durante a guerra, a gente fugia de um lado para o outro para se defender, mas com o ebola não tinha para onde fugir, pois estava em todo o lugar."

Aos 70 anos, ela tenta se manter firme diante das terríveis circunstâncias na Libéria para não perder a esperança em dias melhores no futuro.

"Ano passado foi o ano das lágrimas, eram lágrimas para todos os lados. Muita gente que conheci morreu, gente que eu ajudava, famílias inteiras."

Irmã Maria já não sabe quantos amigos ou conhecidos perdeu por causa do vírus.

No desespero de ver famílias inteiras morrendo com a epidemia, a freira decidiu fazer alguma coisa para ajudá-las.

Órfãos

Ao lado de outros 24 voluntários, Irmã Maria organizou um workshop sobre o ebola e as formas de preveni-lo. Depois disso, o grupo saiu de casa em casa orientando a população local sobre a doença.

"Eram pais, mães de família e jovens prontos a arriscar a própria vida", diz ela, sobre o grupo.

"Saíamos de segunda a sexta, das 8h às 12h, com botas, luvas nas mãos, mangas compridas para se proteger do virus, com os baldes, torneiras, água sanitária para orientar as pessoas sobre o vírus."

O primeiro grande desafio foi fazer as pessoas entenderem que o ebola era real, e não "feitiçaria", como pensavam muitos locais.

"As pessoas nos diziam 'as águas dos nossos poços foram envenenadas'. Eles entendiam que esse veneno era um feitiço. E o povo dizia 'vocês são pagos pelo governo, que recebe milhões, e é por isso que vocês vão de casa em casa, para ganhar mais dinheiro'", conta a religiosa.

"Muitas pessoas ainda hoje não acreditam que o povo morreu por causa do vírus do ebola. Há ainda muita crença por aqui."

Nas visitas, além das orientações sobre a doença, o grupo coletava informações sobre as famílias. Com isso, irmã Maria conseguiu elaborar uma lista de crianças que perderam os pais para a doença, na tentativa de ajudá-las no futuro.

"Em quatro meses de trabalho de orientação, visitamos 7.839 casas, entramos em contato com 10.851 chefes de familia e orientamos 64.209 pessoas. No total, encontramos 541 crianças órfãs de 17 anos para baixo."

A freira diz que no primeiro levantamento o número de órfãos foi bem menor. Isso porque, segundo irmã Maria, "as pessoas têm vergonha de dizer que foram vítimas do ebola para não serem estigmatizadas pela comunidade".

Mas quando o grupo de voluntários voltou às casas visitadas levando um simbólico presente de Natal para os 242 órfãos listados a princípio, descobriu que o número de crianças era bem maior do que esse.

"O número de 242 orfãos que tínhamos na nossa lista no dia 20 de dezembro subiu para 541 no dia 27. São crianças que vivem sozinhas ou com vizinhos, familiares próximos ou alguém caridoso."

A primeira ajuda para as crianças veio poucos dias depois: caminhões de comida da ONG World Food Program para a região.

"Aos poucos, a ajuda está chegando", diz. "Esperamos que venha mesmo beneficiar cada criança órfã. Elas precisam de muitas outras coisa além de comida, precisam especialmente de amor."

Dificuldades

Maria Teresa Moser nasceu em Taió, pequena cidade de Santa Catarina, que tem menos de 18 mil habitantes. Logo que chegou à Libéria, em 1978, o que mais a impressionou foi a pobreza extrema do país.

Em 37 anos, irmã Maria vivenciou a primeira guerra civil do país, que durou de 1989 a 1996, e depois a segunda, de 1999 a 2003. Mas a epidemia do ebola foi o que mais a abalou.

"Eu fui ficando fraca de tanta notícia ruim que recebia. E o governo não fazia nada, não se interessava em preparar lugares para o isolamento, para acolher os doentes, socorrer e salvar a vida do povo", conta em tom de desespero.

"Falei com o Ministro da Saúde , com o secretário dele, supliquei. Chorava e explicava pra eles que as pessoas não acreditavam, que o governo tinha de informar melhor a população sobre a gravidade da situação."

"Eles mandaram equipes na cidade, viram as pessoas mortas e decretaram a quarentena. Foram mais de 17 mil pessoas que entraram em quarentena, não podiam sair de suas casas", relata.

A Libéria é o país mais atingido pelo ebola. No total, foram 8.936 mortos pelo vírus em todo o globo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Só na Libéria, foram 3.710.

"Estamos vivendo as mesmas consequências da guerra, porque tem a fome, que é muito grande, a falta de trabalho, e o fato de que a gente vive com medo por causa da doença."

Mas irmã Maria diz que a situação já está um pouco melhor e que o vírus está mais 'controlado' na região. Ela mantém a esperança de que 2015 será um ano melhor.

"Espero que essa desgraça não venha mais assolar nossa terra."