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'Para minha mãezinha': como a lei da 'pílula do câncer' uniu Congresso dividido e foi aprovada em tempo recorde

A fosfoetanolamina (ou "pílula do câncer") é alvo de polêmica - Cecília Bastos/USP Imagens
A fosfoetanolamina (ou "pílula do câncer") é alvo de polêmica Imagem: Cecília Bastos/USP Imagens

Rafael Barifouse

Em Sao Paulo

18/05/2016 18h37

Em meio às divisões que marcaram a crise política e o processo de impeachment, uma lei foi aprovada de forma quase unânime por deputados e senadores de todos os partidos: a que libera o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com câncer.

Sancionada pela presidente afastada Dilma Rousseff em 14 de abril, a legislação é criticada pela comunidade científica por autorizar a chamada "pílula do câncer" sem que estudos clínicos tivessem comprovado sua eficácia - até o momento, foram realizados só estudos com animais, que indicaram que a substância não é tóxica.

A lei é polêmica. Especialistas ouvidos pela BBC disseram que, ao aprová-la, o Congresso pode estar pondo em risco a saúde da população e abriu precedentes para a liberação de outras substâncias não testadas pelo Legislativo sem aprovação dos órgãos competentes.

Para outros, entretanto, o Congresso acabou dando voz aos pacientes, dando-lhes conforto e esperança e respondendo à suposta morosidade dos órgãos que aprovam remédios.

Duas visões: a 'pílula do câncer' deve ser liberada no Brasil?

Agora, a lei será analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Nesta quinta-feira, a Corte apreciará uma ação movida pela Associação Médica Brasileira que diz que a lei é inconstitucional por violar a regulamentação vigente sobre o uso de medicamentos no país.

Já a Câmara dos Deputados e o Senado enxergaram, em março, a questão por uma ótica totalmente oposta: em ambas as Casas, parlamentares defenderam se tratar de uma lei "pela vida" e que confere esperança e dignidade a pacientes em estágio terminal. Em discursos carregados de emoção, pediram sensibilidade a seus pares por já terem enfrentado casos de câncer em suas famílias.

Sob estes argumentos, o projeto tramitou com uma velocidade excepcional no Congresso. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, órgão que auxilia sindicatos sobre questões legislativas, leis aprovadas em 2013 levaram em média cinco anos da proposição à sanção presidencial e, em 2014, nove anos.

Por sua vez, o PL 4639/16 passou pela Câmara e pelo Senado em questão de dias, e foi aprovada por unanimidade.

Com urgência e emoção

O projeto de lei foi elaborado por um grupo de deputados federais no qual estão, lado a lado, parlamentares que normalmente se encontram em polos opostos das disputas políticas, como os petistas Adelmo Carneiro Leão (MG) e Arlindo Chinaglia (SP) e os deputados Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ).

Apresentado no plenário da Câmara em 8 de março, o projeto foi apreciado no mesmo dia, graças a dois acordos entre líderes partidários. Primeiro, para que tramitasse em regime de urgência. Depois, para que a oposição abrisse mão da obstrução da pauta, imposta na época até que o STF se manifestasse sobre os ritos de votação do impeachment.

No fim daquele dia, em uma sessão extraordinária com duração de 2h15, o projeto passou por todas as etapas na Câmara: foi discutido, avaliado por um relator e três comissões - Constituição e Justiça e de Cidadania, de Finanças e Tributação e Seguridade Social e Família - e, finalmente, votado.

Em meio ao breve debate feito naquela sessão, alguns deputados pediram a palavra para se manifestarem a favor da lei, muitas vezes com discursos apoiados em relatos e experiências pessoais.

"Se você ou algum familiar estivesse com câncer e alguém dissesse que água de bateria na veia cura, todo mundo tomaria", disse Eduardo Bolsonaro. "A fosfoetanolamina é muito melhor que isso. Há o relato de pessoas que tomaram apenas a pílula e melhoram (...) Meu avô morreu em virtude de um câncer de pulmão e, hoje, não pode, infelizmente ter acesso a fosfoetanolamina."

"Voto 'sim' em homenagem à minha mãezinha, que morreu de câncer", disse o deputado Moroni Torgan (DEM-CE).

O deputado Caio Narcio (PSDB-MG) disse ter perdido sua mãe para o câncer, que ele chamou de "doença do milênio". "Só quem tem alguém com uma doença dessas em casa sabe o que é o sofrimento. Mesmo que fosse 1% de possibilidade, já valeria a pena."

Já o deputado Celso Russomano (PRB-SP) deu um depoimento sobre seu pai, que tinha câncer. "Ele respirava por aparelhos, começou a tomar a fosfoestanolamina e saiu da cama. Mas o pouco medicamento que tínhamos acabou, e sua fabricação parou. Em alguns dias, ele começou a piorar e foi a óbito."

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) contou na sessão já ter perdido seis irmãos e um sobrinho por conta da doença: "Gostaria muito que eles tivessem tido a oportunidade de ter esperança de algo que pudesse amenizar as suas partidas".

Pressão social

Outros parlamentares defenderam que a lei dá esperança a quem sofre de câncer e serve como uma resposta a uma demanda vinda da sociedade.

"Não vamos discutir a questão técnica. Isso não é para nós", disse o deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF). "A Câmara não pode ficar de costas para a opinião pública. Assim mostraremos à sociedade que a Câmara pensa, sim, no cidadão. Queremos plantar uma semente de esperança."

A deputada Laura Carneiro (PMDB-RJ) fez um pronunciamento parecido: "Não vamos salvar as pessoas do câncer, mas vamos lhes dar alguma esperança, alguma possibilidade de resolver o problema."

Em meio a este debate, houve uma voz dissonante. O deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) defendeu em plenário que "a maneira como se encaminha o tema é extremamente perigosa de fazer ciência".

"Nós estamos reduzindo este debate a quem é a favor e contra a cura do câncer. A ciência é feita de pesquisa, de resultados. Não se pode liberar uma substância sem saber seu efeito colateral, qual é a dosagem para uma criança, para um idoso, para uma mulher", disse Mandetta.

'Quem tem câncer tem pressa'

Seu posicionamento não foi suficiente para barrar o avanço do projeto: todos os blocos e partidos se manifestaram a favor da aprovação. Não houve uma votação nominal - em que cada deputado se posiciona individualmente -, mas simbólica, em que o presidente da Casa pede que aqueles contrários ao projeto se pronunciem. Sem qualquer gesto significativo contra, a lei seguiu para o Senado.

"Foi uma matéria bastante estudada em audiências públicas e por um grupo de trabalho. Está sendo debatida desde outubro do ano passado, e a substância é alvo de 20 anos de pesquisas. Os estudos mostram que não é tóxica. E a população clamava por isso", diz à BBC Brasil a relatora do projeto, a deputada Leandre Dal Ponte (PV-PR), sobre a celeridade da tramitação na Câmara, e para quem a aprovação da lei vai pressionar para que os estudos clínicos da fosfoetanolamina sejam realizados.

"O câncer mata milhares de pessoas todos os anos, e quem tem câncer pode tudo, menos esperar. É justo negar o acesso a fosfoetanolamina, diante de relatos que mostram que ela no mínimo prolonga a vida das pessoas?"

Um dos principais autores do projeto e médico fisiologista, Leão (PT-MG) defende à BBC Brasil a aprovação da lei mesmo sem a comprovação da eficácia da fosfoetanolamina.

"Não estamos pulando etapas, porque não é algo que foi descoberto hoje. Se ninguém estivesse usando, aí sim. Mas a substância está em nosso cotidiano há 15 anos, sem haver um relato de prejuízos por conta do seu uso", afirma o deputado.

"Como médico, não posso receitar, porque não é considerado medicamento, mas não teria dúvida nenhuma de indicar para amigos ou familiares com câncer. Eu mesmo usaria diante de uma situação tão dramática."

'Ceifador de esperanças'

Ao chegar ao Senado, como projeto de lei da Câmara nº 3 de 2016, a proposta também tramitou rapidamente, ainda que menos rapidamente do que na Câmara.

Entre os dias 9 e 17 de março, foi analisado e aprovado pelas comissões de Assuntos Sociais e de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática. Chegou ao plenário no dia 22, onde novamente foi colocado em regime de urgência e se abriu uma exceção para ser votado no mesmo dia.

O regimento do Senado determina que, após o requerimento de urgência, a votação deve ocorrer após a realização de duas sessões, o chamado "interstício", como argumentou o senador Cássio Cunha Linha (PSDB-PB), mas outros líderes defenderam e que o tema era delicado e deveria ser apreciado naquele dia.

"Minha experiência é a de milhões de brasileiros. Minha mãe morreu com câncer no cérebro. Eu sei exatamente o que é isso", disse o senador Magno Malta (PR-ES).

O senador Waldemir Moka (PMDB-MS) afirmou se tratar de uma situação de emergência: "É muito difícil você falar para um paciente terminal de câncer que ele não vai ter mais acesso àquilo que ele estava esperando. Porque várias pessoas deram testemunho que, ao tomarem o medicamento, que não é um medicamento ainda, apresentaram melhoras."

Diante dos apelos, Lima cedeu: "Não sou um ceifador de esperanças, nunca fui. Se há um entendimento, todos os líderes de que o interstício deve ser suprimido eu não vou me opor à votação de uma matéria tão importante". Novamente, foi feita uma votação simbólica, e o projeto foi aprovado apenas 16 dias após ter sido apresentado na Câmara - e levou outros 23 dias até ser sancionado por Dilma.

'A próxima vítima'

Ao fim da sessão, o senador Ivo Cassol (PP-RO), um dos principais defensores da lei na Casa, fez um longo discurso para agradecer o empenho dos colegas para "dar alento e esperança" a pacientes com câncer.

Ele chamou a pílula do câncer de "descoberta do século" e argumentou que ainda não havia passado por testes clínicos, porque laboratórios farmacêuticos e oncologistas não teriam interesse na sua comercialização.

Criticou a Anvisa e sua política de aprovação de medicamentos contra o câncer. "Do jeito que está, é uma vergonha nacional. Aprovou dois medicamentos que têm um efeito mínimo no tratamento de câncer, mas a um preço astronômico. Aí, sim, a Anvisa aprova."

Argumentou em prol das mulheres, que são "mais passíveis de câncer", segundo ele: "Tenho amigos que, por causa do câncer, se escondem, especialmente as mulheres, porque elas têm cabelo comprido. Os homens são carecas. Está aqui o Júnior, meu assessor, que é careca. Se amanhã tivesse um câncer, não teria problema, mas as mulheres não são carecas. Perdem cabelo, perdem a autoestima."

Disse ter recebido muitos pedidos pela aprovação da lei e testemunhado casos em que a substância deus bons resultados. "Recebo por dia de 200 a 300 e-mails. Conheço mais de 30 pessoas. Tenho o depoimento de mais de 100 pessoas que fizeram uso. O resultado é fenomenal. Quem garante que amanhã não será alguém da nossa família? Quem garante que amanhã não seremos nós a próxima vítima?"

E anunciou: "Estou aqui defendendo a liberação desse medicamento do câncer. Mas é só esse? Não, gente! Se amanhã aparecer outro lá pelas matas amazônicas, vamos utilizar! Se vier da Mata Atlântica, vamos utilizar. Se vier outro composto, vamos utilizar! Por que não, gente?"

Procurado pela BBC Brasil, o senador Cassol preferiu não conceder entrevista sobre o tema. Disse por meio de sua assessoria que está "muito chateado" com a declaração feita pelo Ministério da Saúde de que a pílula só será distribuída no SUS com aprovação da Anvisa e que trabalhará para reverter esta decisão.