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Ex-presidiária se livrou do crack e hoje ajuda outras mulheres a reconstruir suas vidas

A americana Susan Burton - Cortesia/A New Way of Life
A americana Susan Burton Imagem: Cortesia/A New Way of Life

Por Alessandra Corrêa

Em Winston-Salem (EUA)

02/06/2017 06h36

Toda vez que era libertada da prisão, a americana Susan Burton repetia a mesma promessa: "Vou começar uma vida melhor. Não vou voltar". Pouco tempo depois, porém, estava de volta atrás das grades por posse de drogas.

Ao todo, foram seis passagens pela prisão por posse de cocaína e crack ao longo de quase duas décadas, nas quais nunca recebeu tratamento para o vício nem qualquer tipo de ajuda para se reintegrar à sociedade.

Na época, início dos anos 1980, os Estados Unidos viviam o auge da chamada guerra às drogas, com foco em punição em vez de tratamento para viciados.

"Nunca me ofereceram, e eu não sabia pedir ajuda, porque nem sabia o que pedir. Pessoas da minha cor, que cresceram onde cresci, nunca haviam ouvido falar em reabilitação. Eu era sempre mandada de volta para a prisão", conta Burton em uma autobiografia lançada neste mês nos Estados Unidos.

Em 1997, aos 46 anos de idade, ela finalmente conseguiu tratamento por conta própria e se recuperou do vício.

Desde então, dedica-se a ajudar outras ex-presidiárias a recomeçarem a vida e interromperem o ciclo de pobreza, abusos, drogas e prisão.

Abuso sexual e morte do filho

Burton conhece bem esse ciclo. Nascida negra e pobre em uma comunidade violenta de Los Angeles, ela tinha quatro anos de idade quando começou a ser abusada sexualmente pelo namorado de uma tia.

Foi o início de anos de violência nas mãos de diferentes agressores. "Naquela comunidade, sofri todo tipo de abuso físico, sexual e emocional", relata Burton à BBC Brasil.

Ela conta que somente décadas depois, quando já estava presa, conseguiu finalmente falar sobre o trauma e começar a entender o impacto duradouro que teve em sua vida.

Mas o acontecimento que jogou Burton definitivamente na espiral de decadência que a levou à prisão foi a morte do filho, Marque Hamilton, a quem ela chamava de K. K., aos cinco anos de idade.

Em uma tarde de 1981, Burton estava em casa quando ouviu o som de pneus derrapando. Ao correr para a rua, deparou com K. K. já caído.

O motorista, um policial que dirigia um carro sem identificação, não viu o garoto nem parou para socorrê-lo, tampouco foi punido pelo acidente.

"Nunca recebi nem mesmo um pedido de desculpas, nem do policial, nem do departamento", conta Burton.

"Eu desmoronei. Comecei a beber para sufocar a dor, a perda, e todos os problemas da minha vida. Logo passei a usar drogas, e essas drogas me levaram à prisão", revela.

Sua outra filha, Toni, tinha 15 anos quando o irmão foi morto.

Dificuldades e recaídas

Sempre que era libertada, ainda sem tratamento para o vício ou apoio para recomeçar, Burton, assim como mais da metade das ex-presidiárias na Califórnia, segundo dados do Departamento de Correções, acabava sofrendo recaídas e voltando para a prisão.

Segundo Burton, ao sair da prisão, as mulheres recebem US$ 200, com os quais devem comprar uma muda de roupas, uma passagem em um ônibus que vai deixá-las em Skid Row - área no centro de Los Angeles notória pela concentração de moradores de rua e viciados - e, com o que sobrar, recomeçar a vida.

"Eles destruíram sua carteira de identidade (no momento da prisão), então você não tem nenhum documento. Também não tem onde morar", ressalta.

Ao descer do ônibus, essas mulheres se tornam alvo fácil de cafetões e traficantes que circulam pela área.

"A única comunidade que a recebe de volta é aquela da qual você saiu quando foi para a prisão", observa.

Mesmo as que conseguem se manter sóbrias, sofrem com preconceito e barreiras legais para sua reintegração.

Sem documentos e com ficha criminal, é muito difícil conseguir emprego. Sem emprego, não há como conseguir alugar um lugar para morar. Sem moradia, têm a custódia dos filhos negada.

Recomeço

Burton cita dados segundo os quais 85% das mulheres presas nos Estados Unidos foram, em algum momento, abusadas fisicamente ou sexualmente, e que, desproporcionalmente, são negras e pobres. Ela faz parte dessa estatística.

"Desde cedo sofri diferentes tipos de abuso. Se tivesse tido acesso a algum tipo de terapia, alguma ajuda para lidar com o trauma e com a dor da perda do meu filho, talvez não tivesse recorrido ao álcool e às drogas", diz.

O ciclo de vício e encarceramento só foi quebrado quando, ao sair da prisão pela última vez, recebeu ajuda de uma amiga para se internar em uma clínica de reabilitação para viciados.

"Fiquei internada durante cem dias, recebi todo tipo de tratamento e me curei", relembra.

Quando deixou a clínica, Burton decidiu que queria oferecer a outras ex-presidiárias o tipo de abrigo e apoio que gostaria de ter recebido.

Conseguiu emprego como cuidadora de uma idosa, economizou US$ 13 mil e, em 1998, comprou uma pequena casa.

Ela mobiliou os cômodos com beliches e passou a esperar as mulheres que desciam do ônibus vindo da prisão, oferecendo-lhes um lugar para morar.

Reconhecimento

Hoje, aos 65 anos, Burton tem cinco casas em Los Angeles operadas pela organização que criou, A New Way of Life ("Um Novo Modo de Vida", em tradução livre), pelas quais já passaram mais de mil mulheres e crianças.

Ela recebe dezenas de cartas diariamente de presidiárias buscando uma das cerca de 70 vagas abertas por ano.

Além de moradia, as ex-presidiárias recebem assistência legal, ajuda para conseguir documentos, empregos, retomar os estudos e reconquistar a guarda dos filhos. Também são encaminhadas a tratamento mental e para abuso de drogas.

"Não limitamos o tempo que podem permanecer conosco. Você não sabe quanto tempo vai levar para uma pessoa se reintegrar. Não queremos tratar alguém por três ou seis meses e depois colocá-la na rua se ainda não estiver pronta", observa.

Os esforços de Burton ganharam reconhecimento nacional nos Estados Unidos, onde ela já recebeu diversos prêmios por seu trabalho.

Agora, ela conta sua trajetória no livro Becoming Ms. Burton: From Prison to Recovery to Leading the Fight for Incarcerated Women ("Tornando-se Senhora Burton: Da Prisão à Recuperação à Liderança na Luta pelas Mulheres Presas", em tradução livre), escrito com a jornalista Cari Lynn.

Burton ressalta que sua organização gasta US$ 16 mil por ano para manter cada mulher, menos de um terço do custo de US$ 60 mil por ano para manter uma mulher na prisão na Califórnia.

Ela defende que investir em tratamento em vez de punição pode reduzir a reincidência e dar uma chance para que essas pessoas contribuam com a sociedade.

Burton opina, porém, que os dependentes devem ter a opção de receber tratamento, mas não serem internados à força. "Ninguém deve ser forçado a nenhum tipo de hospitalização. O poder de escolha é um fator crucial para que a pessoa participe ativamente de seu processo de recuperação."

"Estamos vendo que colocar essas pessoas na prisão não funciona, não torna uma comunidade mais segura", afirma.