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Barco veleja o mundo com tripulação de portadores de esclerose múltipla

Divulgação/Oceans of Hope
Imagem: Divulgação/Oceans of Hope

Bárbara Paludeti*

Do UOL, em Boston (EUA)

10/10/2014 06h00

Luisa Sacchetti Matias, 36, portuguesa, foi diagnosticada há 10 anos com esclerose múltipla. E, como é de se esperar, sua vida mudou muito desde então, mas ela nem imaginava que poderia encarar uma viagem de barco de Lisboa até Boston, nos EUA, com uma tripulação toda composta por pessoas com a mesma doença que a dela.

"No início deste ano, quis muito passar um mês sem esclerose múltipla. Pode parecer um pedido estranho, mas eu trabalho na Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla e meus dias são dedicados à doença das outras pessoas e também, claro, ao final do dia continuo tendo a minha esclerose múltipla para lidar. Queria mesmo descansar de tudo isso", explicou.

Em maio, Luisa recebeu um e-mail sobre o Oceans of Hope, projeto idealizado pelo médico dinamarquês Mikkel Anthonisen de velejar pelo mundo com uma tripulação composta por portadores de esclerose múltipla. O desafio começou em 28 de maio em Copenhagen, quando o barco iniciou a navegação.

Após se candidatar, ela recebeu, em julho, o telefonema que tanto esperava: precisavam de uma portuguesa para ir de Lisboa a Boston.

A jovem embarcou no dia 2 de agosto e chegou aos EUA no dia 8 de setembro, para participar do Congresso Internacional de Esclerose Múltipla. De lá, voltou para Portugal de avião. A tripulação do barco é itinerante, vai mudando conforme os locais por onde passa. Além do médico e dos doentes, há uma tripulação permanente de três pessoas: um capitão, um ajudante e um repórter cinematográfico que registra a empreitada em imagens.

Mikkel é um neurologista especializado em esclerose múltipla, há alguns anos ele teve um paciente que foi a inspiração para o Oceans of Hope. "Tive um paciente que tinha medo de nunca mais poder velejar, que era o que ele mais amava fazer. Foi então que, há uns dois anos, tive a ideia do projeto. Esse meu paciente nunca mais conseguiu velejar, mas resolvi realizar o sonho dele e colocar uma tripulação de pessoas portadoras de esclerose múltipla num barco e navegar pelo mundo. Cerca de seis meses atrás consegui o dinheiro para colocar o projeto em ação", contou em entrevista ao UOL, em Boston.

"Foi a evolução natural e nosso maior sonho depois que montamos um programa bem sucedido de navegação na Dinamarca para pessoas com esclerose múltipla. Tudo começou bem pequeno, e foi crescendo à medida que mais pessoas se envolveram e perceberam que ter a doença não significava parar completamente de fazer algo que se ama, é só uma questão de fazê-lo um pouco diferente", falou.

Ajuda mútua

"Era um grupo pequenino, de nove pessoas, mas tínhamos turnos de quatro horas para as atividades, que podia ser cozinhar, limpar o barco, fazer a navegação. Foi uma lição de vida muito importante, porque para o bem da equipe, cada um de nós tem que tomar conta de si próprio", afirmou Luisa.

Luisa escreveu um diário, segundo ela, porque tem medo de esquecer os detalhes da experiência. "O que mais vou levar é ter conseguido me ver como uma pessoa e não como uma doente. A esclerose múltipla não pode ter o papel principal da minha vida. Eu sou suficiente, aquilo que eu consigo fazer é suficiente, não preciso ser uma pessoa diferente, uma super mulher, só preciso ser a Luisa", contou.

O médico dinamarquês compartilha da opinião da portuguesa. "Quando vejo os pacientes que foram diagnosticados com esclerose múltipla, parece que eles perderam alguma coisa, que algo se quebrou dentro deles. Não apenas fisicamente, mas eles costumam perder a identidade. Eles têm medo da doença. Eles não contam aos seus patrões ou aos seus familiares porque têm medo do que pode acontecer. O Oceans of Hope vem para mudar esse comportamento", explicou.

Contrariando tudo o que a medicina diz, a bordo do iate de 20 metros o grupo passa por situações que, normalmente, ativariam os sintomas da doença tais como fadiga, dormência dos membros e visão turva, mas não é o que acontece no Oceans of Hope.

"Em casa, alguns alimentos me provocavam sintomas, como dormência, e no barco, não. Em casa, tenho uma circunstância, e no barco, outra. No barco, não houve o desencadeamento da doença", relatou a portuguesa.

Aos 26, quando teve o diagnóstico, Luisa foi atrás de pessoas que estavam bem, para se espelhar nos exemplos. "Pensei: 'quero ser doente ou quero ser como essas pessoas?'". "Estar no barco foi como fazer uma peregrinação pelo mar", afirmou.

A bordo do iate, Mikkel conta que ele não é médico, e sim amigo da tripulação. "Quero fazer as pessoas pensarem: 'ok, tenho esclerose múltipla, ela pode me privar de algumas coisas, mas ela não vai mandar na minha vida'. No barco, cuidamos uns dos outros".

Questionado sobre se o barco virá ao Brasil, o médico e velejador conta que é grande a vontade: "todos querem ir ao Brasil", mas por conta das dificuldades de navegação, o projeto ainda tentar viabilizar essa parada.

*A jornalista viajou a convite da Biogen Idec