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País faz acordo para treinar médicos para cirurgias como a da 'bebê Sofia'

A bebê Sofia, que passou pelo transplante de cinco órgãos, deve ter alta nas próximas semanas, nos EUA - Arquivo Pessoal
A bebê Sofia, que passou pelo transplante de cinco órgãos, deve ter alta nas próximas semanas, nos EUA Imagem: Arquivo Pessoal

Eduardo Schiavoni

Do UOL, em Ribeirão Preto (SP)

09/06/2015 17h00

Um acordo entre Brasil e Argentina permitirá que brasileiros tenham acesso, através do SUS (Sistema Único de Saúde), ao transplante multivisceral, técnica que substitui, ao mesmo tempo, no mínimo três e no máximo seis órgãos do sistema digestório. Os profissionais argentinos serão responsáveis pela capacitação dos brasileiros. Hoje, o Brasil não tem expertise para realizar os procedimentos, e por isso, a Justiça já concedeu decisões, em três casos, que determinavam que o transplante fosse feito nos Estados Unidos, a um custo estimado em US$ 1,4 milhão por transplante. Na Argentina, o mesmo procedimento é feito por US$ 250 mil, valor 82% inferior.

Embora possua dois hospitais autorizados a fazer procedimentos de transplante multivisceral - o Hospital das Clínicas e o Albert Einstein, ambos em São Paulo - o Brasil só realizou seis procedimentos do tipo até hoje. Todos os pacientes morreram algum tempo após a cirurgia. A estimativa do Ministério da Saúde é que o Brasil tenha demanda de pelo menos 12 transplantes do tipo por ano.

A expectativa é que a cooperação esteja em funcionamento nos próximos meses, sendo que os médicos argentinos devem vir ao Brasil treinar as equipes brasileiras a partir do segundo semestre. Os profissionais argentinos serão recebidos no Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), na capital paulista. Além de médicos do HC, serão capacitados também profissionais do Albert Einstein, a outra instituição brasileira habilitada a fazer transplantes multiviscerais.

Pelo termo de cooperação, assinado pelos dois países durante a Assembleia Mundial de Saúde, que ocorreu em Genebra, na Suíça, em 18 de maio, cada uma das nações arcará com os seus respectivos custos. “O acordo permite a transferência de tecnologia da cirurgia de transplante multivisceral para o Brasil, fundamental para a ampliação do acesso ao procedimento no País”, afirmou na ocasião o ministro da Saúde do Brasil, Arthur Chioro.

Ações

O Ministério da Saúde informou ainda, em nota, que a cooperação com a Argentina tornou-se viável pela proximidade entre os países, que possuem ainda marcos regulatórios similares para a realização de transplantes.

Entre as ações a serem realizadas estão o intercâmbio de informações, transferência de tecnologia e a realização de transplantes feitos por uma equipe composta por brasileiros e argentinos, além de palestras e cursos de capacitação. Em um momento posterior, médicos brasileiros também podem visitar a Argentina para participar de transplantes no país vizinho.

Ainda segundo Chioro, o Brasil também deve enviar profissionais de outras áreas da saúde à Argentina para capacitar médicos do País vizinho em áreas nas quais o Brasil domina técnicas mais avançadas, como transplante de pâncreas e tratamento de doenças infecto-contagiosas, como a Aids.

Casos na Justiça

Desde 2013, três pacientes ganharam na Justiça o direito de fazer esta operação nos Estados Unidos, com custo pago pelo SUS. Apenas um deles, entretanto, realizou o procedimento - a bebê Sofia Gonçalves de Lacerda, de um ano. O governo brasileiro pagou perto de US$ 1,4 milhão pelo transplante, que foi um sucesso. A menina se recupera nos Estados Unidos.

Os outros dois pacientes que conseguiram que o governo bancasse o tratamento - o mineiro Antônio Gleiber Cassiano Júnior, 15, e o bebê Davi Miguel, de dez meses -- aguardam decisão final da Justiça. Juntos, os procedimentos tem custo aproximado de R$ 12 milhões. A União já desembolsou cerca de R$ 5 milhões com os casos.

Expertise

A decisão de apostar na parceria com a Argentina, entretanto, chegou a ser criticada pelas famílias dos pacientes que precisam do procedimento e por especialistas da área.  O principal ponto seria a menor experiência dos médicos argentinos frente a dos cirurgiões norte-americanos, já que especialistas da área indicam que, embora a experiência argentina seja bem-sucedida, o centro de excelência mundial para o assunto é o Jackson Memorial Hospital, em Miami, nos Estados Unidos, que apresenta índices de sucesso maiores. O departamento de transplantes da instituição é comandado pelo médico brasileiro Rodrigo Vianna.

O país vizinho tem histórico de 10 transplantes multiviscerais nos últimos cinco anos, todos eles realizados na Fundação Favaloro, de Buenos Aires. A taxa de sobrevida após um ano de procedimento chegou a 80%, mas nenhum dos procedimentos foi realizado em crianças. Já no Jackson Memorial, são realizados próximo de 20 procedimentos por ano, sendo oito em crianças menores de dez quilos, com taxa de sobrevida superior a 90.

Para o gestor de saúde José Sebastião dos Santos, pioneiro no Brasil em transplante de pâncreas, as parcerias devem ser feitas com quem tem maior expertise na área, o que não exclui que, em paralelo, exista a parceria com a Argentina. "O trabalho do Jackson Memorial, em Miami, é referência mundial. Eles certamente têm números expressivos e dominam a técnica. Um caminho adequado talvez fosse apostar em uma parceria com o centro dos Estados Unidos, com a participação ativa do médico brasileiro, mas sem deixar de lado o trabalho com a Argentina", conta.

Além dos especialistas, a Justiça brasileira também reconheceu o Jackson Memorial como local mais adequado para realizar os transplantes. Em casos onde foi chamada para decidir onde internar os pacientes que pediram que o governo brasileiro financiasse a operação, o hospital foi o escolhido.

Em uma dessas decisões, o desembargador Carlos Eduardo Delgado, amparado por médicos especialistas do Hospital das Clínicas e do Albert Einstein, as duas instituições credenciadas a realizarem o transplante multivisceral no País, declarou que, "apesar de um trabalho bastante elogiável e digno de observação", a Fundação Favaloro não possui as mesmas "condições de conhecimento e disponibilidade técnica da Universidade de Miami".

O magistrado, que julgou o pedido de Antônio Gleiber, 15, que espera pelo transplante multivisceral em um hospital do Paraná, declarou ainda que "caso o paciente seja atendido pela equipe de Buenos Aires as perspectivas de bons resultados certamente serão inferiores".

De acordo com o Ministério da Saúde, entretanto, o governo brasileiro também tem tratativas iniciadas com o Jackson Memorial para que uma parceria com os norte-americanos seja fechada.

O médico Rodrigo Vianna declarou que a instituição norte-americana está de “portas abertas” para a realização de intercâmbios.  "Já recebemos alguns especialistas brasileiros e eu, pessoalmente, por ser brasileiro, teria o maior prazer de realizar um intercâmbio e formar um centro de especialidade no Brasil. Houve até um contato, mas o governo brasileiro acabou não indo adiante até agora", disse.