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Alzheimer não afeta a memória musical, indica estudo

Neurônio sob o efeito da proteína beta-amiloide, que gera as chamadas placas de senilidade, que, acredita-se, seriam as principais causas do Alzheimer - Linnea Rundgren/BBC
Neurônio sob o efeito da proteína beta-amiloide, que gera as chamadas placas de senilidade, que, acredita-se, seriam as principais causas do Alzheimer Imagem: Linnea Rundgren/BBC

Miguel Ángel Criado

27/06/2015 06h00

A área do cérebro que abriga as recordações musicais é menos prejudicada pela doença

Sem saber muito bem por quê, a música é uma das poucas armas que os terapeutas têm para enfrentar o avanço do mal de Alzheimer. Apesar da devastação que essa doença provoca no cérebro e, em particular, na memória, grande parte dos doentes conserva suas recordações musicais mesmo nas fases mais avançadas. Agora, um estudo indica as possíveis causas desse fenômeno: guardamos a música em áreas cerebrais diferentes das demais lembranças.

O lobo temporal, a parte do cérebro que vai da fronte até a área posterior do ouvido, é, entre outras coisas, a discoteca dos humanos. Ali se administra nossa memória auditiva, incluindo as canções.

Estudos com vítimas de lesão cerebral apoiam a ideia de que guardamos a música em uma rede concentrada nessa zona. Entretanto o lobo temporal também é o que sofre primeiro os danos do Alzheimer. Como se explica então que muitos doentes não saibam seu nome ou como voltar para casa, mas reconheçam aquela canção que os emocionou décadas atrás? Como alguns pacientes são incapazes de articular palavras, no entanto cantarolam temas que fizeram sucesso quando eles ainda tinham memória?

Para tentar responder a essas perguntas, pesquisadores de vários países europeus liderados por neurocientistas do Instituto Max Planck de Neurociência e Cognição Humana em Leipzig (Alemanha) realizaram um duplo experimento. Por um lado, procuraram quais zonas do cérebro são ativadas quando ouvimos canções. Por outro, uma vez localizadas, analisaram se nos doentes de Alzheimer essas áreas cerebrais apresentam algum sinal de atrofia ou, pelo contrário, resistem melhor à enfermidade.

Para localizar onde o cérebro guarda a música, os pesquisadores fizeram cerca de 30 indivíduos saudáveis escutar 40 trios de canções. Cada trio era formado por um tema muito conhecido tirado das listas de sucessos desde 1977, canções de ninar e música tradicional alemã. As outras duas canções eram semelhantes à primeira em estilo, tom, ritmo ou estado de espírito, mas foram escolhidas entre os fracassos musicais, que não ficaram conhecidos.

Segundo explicam na revista "Brain", o projeto do experimento se baseou na hipótese de que a experiência de ouvir música é, para o cérebro, diferente da de recordá-la e em ambos os processos intervêm redes cerebrais diferentes.

Durante as sessões, a atividade cerebral dos voluntários foi registrada mediante a técnica de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI na sigla em inglês). Comprovaram que a música se aloja em zonas do cérebro diferentes das áreas onde são guardadas outras lembranças.

"Pelo menos os aspectos cruciais da memória musical são processados em áreas cerebrais que não são habitualmente associadas às memórias episódica, semântica ou autobiográfica", diz o neurocientista do Max Planck e coautor do estudo Jörn-Henrik Jacobsen. "Mas é preciso ser muito cauteloso quando afirmamos algo tão absoluto quanto isto", acrescenta, prudente. Concretamente, as áreas que mostraram maior ativação ao lembrar as canções foram o giro cingulado anterior, situado na zona média do cérebro, e a área motora pré-suplementar, situada no lobo frontal.

Parte dessa prudência pode proceder da metodologia que seguiram para realizar a segunda parte da pesquisa. O ideal teria sido estudar a localização das recordações musicais diretamente nos doentes de Alzheimer, e não na população saudável. Mas, como indica Jacobsen, não é fácil conseguir que um número significativo de pacientes participe de um trabalho como este.

Além disso, há o problema de que muitos dos afetados poderiam recordar a canção, mas não verbalizar essa recordação. Por isso realizaram um segundo experimento para ver se as zonas onde se guarda a música são igualmente ou menos afetadas pela doença do esquecimento.

Para isso, estudaram 20 pacientes com Alzheimer e compararam seus resultados com outros 30 indivíduos saudáveis, ambos os grupos com uma média de idade de 68 anos. Queriam ver em que estado se encontravam as áreas musicais em comparação com o resto do cérebro.

No diagnóstico e seguimento da doença, são usados principalmente três biomarcadores: o grau de deposição do péptido beta-amiloide, uma molécula que tende a se acumular, formando placas nas fases iniciais da doença. Outra pista é a alteração do metabolismo da glicose no cérebro. E por último atrofia cortical, um processo natural na medida que se envelhece, mas que no Alzheimer é mais perceptível.

As medições mostraram que os níveis de deposição de beta-amiloide não apresentavam grandes diferenças. Mas, nas áreas musicais dos doentes, o metabolismo da glicose entrava nos níveis normais e a atrofia cerebral era até 50 vezes menor que em outras zonas do cérebro.

Para Jacobsen, "que mostrem um menor hipometabolismo e atrofia cortical em comparação com as outras zonas cerebrais significa que não são tão afetadas no curso da enfermidade". E acrescenta: "Mas isso só pode ser observado, creio que ninguém pode explicar por que acontece. Entretanto, o giro cingulado anterior mostra uma conectividade aumentada nos doentes de Alzheimer, o que poderia significar inclusive que funciona como uma região que compensa a perda de funcionalidade das outras".

"As lembranças que mais perduram são as ligadas a uma vivência emocional intensa. Justamente a música está mais ligada com as emoções, e a emoção é uma porta para a recordação", diz a musicoterapeuta da Fundação Alzheimer Espanha Fátima Pérez-Robledo. Os resultados do estudo vêm confirmar isso. Muitos doentes não lembram o nome de um parente, mas lembram a letra de uma canção", afirma.

Em seu trabalho diário, Pérez-Robledo tem que fazer muitas vezes de DJ. Se o doente está em uma fase inicial, ele mesmo sugere os temas que o marcaram. "Buscamos em sua história musical as canções de sua infância, de sua adolescência, para evocar recordações. Escutam-nas, dançam ou cantam", explica a terapeuta. Quando o paciente não pode mais dizer de que música gostava, testam com as canções que eram mais escutadas quando pequeno ou, como em muitos casos, é seu par no casamento escolhe a canção que tocava quando se conheceram.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves