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Agente de saúde espera 1 ano por cirurgia no SUS: 'Aprendi a viver com dor'

A agente de saúde Rosa Cristina Oliveira Souza aguarda cirurgia no colo do útero - Alisson Louback/UOL
A agente de saúde Rosa Cristina Oliveira Souza aguarda cirurgia no colo do útero Imagem: Alisson Louback/UOL

Alexandre Santos

Colaboração para o UOL, em Salvador

04/11/2017 04h00

Agente comunitária na área de saúde há 19 anos, Rosa Cristina Oliveira Souza, 53, sente-se cada vez mais impotente. O problema não é o trabalho, mas está relacionado. Desde que se viu vencida por dores pélvicas e abdominais, foi obrigada a dar uma pausa.

"Eu falo de saúde para as famílias. Mas, como é que vou falar de saúde, se eu não tenho saúde? Acredito que isso seria uma hipocrisia", fala, ao resumir a via-crúcis que diz enfrentar há quatro anos na tentativa de fazer uma histerectomia --cirurgia de retirada do útero-- por meio do SUS (Sistema Único de Saúde).

Moradora de Simões Filho (BA), município de 136 mil habitantes da região metropolitana de Salvador, Rosa está à espera de atendimento público. Sua fila só anda quando uma vaga é aberta em outra unidade de saúde.

Sua expectativa é conseguir uma transferência para algum hospital de alta complexidade da rede estadual.

Questionada pela reportagem sobre a necessidade de Rosa, a Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) informou que o primeiro passo é procurar o serviço de saúde do município onde ela reside: "Este é o fluxo de atendimento pactuado entre Estado e municípios". 

Rosa diz estar cansada de fazer isso. "Pela quantidade de gente que eu vejo no hospital da cidade, creio que essa fila é imensa. Nesse tempo todo, foram muitas promessas, e nada", critica. "São quatro anos nessa labuta. Muitas idas de vindas a hospitais, mas só promessas."

A Secretaria de Saúde de Simões Filho foi procurada desde o dia 25 de outubro. O órgão recebeu os questionamentos, mas não se manifestou até a conclusão desta reportagem.

Rosa 1 - Alisson Louback/UOL - Alisson Louback/UOL
Rosa mostra receita que pede exames de ultrassom e ressonância
Imagem: Alisson Louback/UOL

Dores começaram em 2013

O calvário teve início em 2013, quando a agente de saúde passou a sentir fortes cólicas abdominais. Na maioria das vezes, os incômodos apareciam em meio às visitas de porta em porta.

À época, Rosa estranhou os sintomas. "Nunca havia sentido aquelas dores. Todo dia que eu retornava para casa, sentia essas cólicas. Eu chegava, tomava um Buscopan, descansava, a dor passava e tudo bem", relembra. "Só tomava remédio e achava que as dores eram devido às minhas andadas, coisa de mulher."

Em 2014, porém, veio o primeiro sinal de alerta. Após uma panela de pressão explodir na cozinha, ela teve uma intensa hemorragia.

"A válvula de segurança da panela soltou e, com o barulho, fiquei tão assustada que saí correndo. Larguei panela, larguei tudo... Isso foi num domingo à noite. Na segunda-feira de manhã, quando acordei, tive uma hemorragia muito forte. Pensei que fosse morrer."

Rosa 2 - Alisson Louback/UOL - Alisson Louback/UOL
Agente de saúde olha exames médicos já realizados
Imagem: Alisson Louback/UOL

"Tem algo estranho no seu útero"

Assustada, Rosa procurou uma ginecologista. "Depois de dois exames transvaginais, a médica pediu uma estereoscopia, que é um exame feito no colo do útero, com uma microcâmera, para saber se era um câncer no colo do útero. Pelo que visualizou nos exames, ela me disse: 'Tem algo estranho em seu útero'. Aí foi aquele pânico", conta.

Um cirurgião teria de avaliar a necessidade de intervenção. "Depois de muito pedido e muita correria, no finalzinho de 2015, ele trouxe o equipamento da clínica dele em Salvador para fazer esse procedimento. Acho que ele [o médico] ficou com muita pena de mim", afirma a agente de saúde.

Rosa foi diagnosticada com endométrio espessado, disfunção que leva à menstruação irregular e à queda dos níveis de progesterona (hormônio feminino).

Já perdi as contas de gastos com absorventes, fraldas e papel higiênico. Nem sei calcular

Rosa Cristina Oliveira Souza, agente de saúde

O alívio, contudo, trouxe outra preocupação: ela não poderá ser submetida à operação sem antes realizar uma ressonância magnética e um ultrassom com doppler. Os exames servirão para identificar as causas das dores e dos sangramentos.

"O médico me disse que endométrio espessado não causa dores, daí a necessidade dos exames. Também falou que, sem retirar o útero, nada resolverá o problema. Na verdade, a regulação do município teria que me encaminhar para um hospital estadual em Salvador, onde eu pudesse fazer esses procedimentos. Estou desde 2016 tentando fazer essa ressonância magnética e o ultrassom com doppler, mas não consegui."

Com uma renda mensal de R$ 1.400 corroída por empréstimos desde a época das primeiras crises, Rosa chegou a cotar os valores dos respectivos procedimentos em clínicas particulares. "A ressonância custa na casa de R$ 1.500. O mais barato que vi foi de R$ 1.300. Já o ultrassom com doppler custa uns R$ 200, nem é tão caro. Mas um sem o outro não adianta, porque, quando eu fosse fazer a ressonância, o ultrassom já estaria 'vencido'. Não posso arcar com os dois, pois meu salário já está comprometido."

"Aprendi a conviver com a dor"

Na sala de sua casa, onde hoje vive sozinha, Rosa até sorri. O riso contido reflete o drama com o qual diz ter se acostumado. "Sinto dor o tempo inteiro. As dores não param de jeito nenhum", conta.

"Desde quando isso começou, em 2013, aprendi a conviver com a dor, pois os remédios não fazem mais efeito. Buscopan é água. Até outros remédios mais fortes já não fazem mais efeito em mim. Posso tomar uma caixa que não resolve", relata.

"Pela quantidade de sangue que eu perco, já pensei que fosse morrer. Como uma pessoa perde sangue durante três anos e não morreu? E não é pouco. É muito."

Rosa recorda que não foram poucas as vezes em que precisou ligar para a filha, que mora em um imóvel ao lado, para levá-la às pressas a salas de emergências em Salvador.

"O marido de minha filha, graças a Deus, tem um carro. Eles sempre me levaram, fosse qualquer hora do dia, da noite. Não tinha hora. Principalmente, porque, até então, a gente não sabia o que era o que eu tinha. Não aguento pegar ônibus. Estou aparentemente bem, mas sinto fraqueza e dores", descreve.

"Quando a gente pedia para alguém vir me buscar, eu pedia para que trouxessem alguma coisa para forrar o carro. Plástico, jornal, para não sujar o automóvel."

Ela acrescenta mais itens na listas de despesas com o problema: "Já perdi as contas de gastos com absorventes, fraldas e papel higiênico. Nem sei calcular."

"Já tive hemorragia no meio da rua"

Chova ou faça sol, Rosa levanta por volta das 6h, se arruma, toma café e sai de casa às 7h30. Da residência até a região onde atua, encara um trajeto de 15 minutos por vias de terra batida, numa região com ares de zona rural.

Das 8h até as 14h, sua missão é bater de porta em porta para conscientizar moradores sobre a importância dos hábitos de higiene para a prevenção de doenças, entre outras atitudes que visam o bem-estar coletivo.

Tarefa que ela exercia com satisfação de segunda a sexta-feira até há pouco mais de um mês. "A maioria das famílias que visito sabe que estou doente. Muitas já me trouxeram aqui, após eu passar mal durante o trabalho, porque eu não aguentei. Já tive hemorragia no meio da rua, várias vezes, e as pessoas vieram me trazer."

Ela afirma que teve apoio no trabalho. "Minha coordenadora deu prioridade à minha saúde. Disse que eu ficasse tranquila, para fazer apenas o que desse com as famílias, até mesmo por telefone ou pelo WhatsApp", detalha Rosa. Ela bate o ponto uma vez por semana para não ter descontos em seu ordenado.

Ela classifica como "um grande descaso" a cruzada que enfrenta, recorrendo a um ditado popular. "Costumo dizer: casa de ferreiro, espeto de pau. Mas eu tenho fé que Deus está comigo, senão eu já teria morrido."

O que dizem a prefeitura e o governo

A reportagem perguntou sobre o caso específico da agente, sobre prazos para a realização dos exames, sobre quantos pacientes estão na mesma situação de Rosa e em quais hospitais eles podem ser realizados. Também questionou sobre o tamanho da fila de espera.

Em nota encaminhada ao UOL, a Secretaria de Saúde da Bahia respondeu apenas que, "quando se trata de procedimentos eletivos (consultas, exames dentre outros), em que os pacientes não estão internados, o primeiro passo é o paciente procurar o serviço de saúde do seu município e a regulação municipal deverá encaminhá-la para uma unidade de saúde em Salvador, que provavelmente será o Hospital da Mulher".

Contatada por diversas vezes desde o dia 25 de outubro, a assessoria da Prefeitura de Simões Filho não respondeu nenhuma pergunta enviada pelo UOL.