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Jovens que contraíram HIV das mães têm planos e filhos: "Somos normais"

Anderson, soropositivo para HIV, trabalha como professor de hip-hop e ativista - Marcelo Justo/UOL
Anderson, soropositivo para HIV, trabalha como professor de hip-hop e ativista Imagem: Marcelo Justo/UOL

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

19/11/2017 04h00

Adolescentes e jovens que contraíram o vírus HIV quando ainda estavam no útero de suas mães ou assim que nasceram, durante o parto ou a amamentação, tomaram uma firme decisão: viver.

Beneficiados por medicamentos mais eficazes, capazes de controlar o avanço dessa doença ainda sem cura, esses jovens fazem grandes esforços e planos para o presente-futuro, estudam, trabalham, amam e são amados, como todo jovem.

Muitos já sem os pais biológicos, que morreram por complicações da Aids, precisaram amadurecer muito rápido, lidar com limites de vida muito rígidos e aprenderam a estabelecer novos vínculos afetivos e familiares por onde quer que passem.

Cuidam uns dos outros como sua família, "Está tomando seu remédio direitinho? Não descuida!" é uma frase que se diz todo dia, porque às vezes as dificuldades provocam desânimo --e descuido. E descuido, para eles, pode ser fatal.

Alguns descobriram novos sentidos, seu lugar no mundo, com a luta pela conscientização da sociedade sobre a Aids, colocando informação e prevenção no lugar do preconceito, por meio de conversas e palestras país afora.

Esses jovens, infectados por transmissão vertical, o nome médico e técnico que se dá para o contágio dos filhos bebês por suas mães, formam um grupo que merece atenção, respeito e oportunidade. Para eles, viver é para hoje, para já.

Conheça algumas histórias.

Anderson vai ser pai

Em dezembro chega o Bryan. É o primeiro filho de Anderson Correa de Oliveira, 26, professor de hip-hop. "Papo reto, sem demagogia", como ele mesmo gosta de dizer: Anderson descobriu ser soropositivo para HIV/Aids por transmissão vertical aos 8 anos.

Bryan é o presente de uma relação já de quatro anos com uma garota pouco mais nova do que ele que não tem Aids. Moram juntos no Jardim Peri Alto, periferia da zona norte de São Paulo. Bryan foi gerado pelos métodos normais, isto é, numa relação sexual sem uso de preservativo.

O planejamento e o conhecimento foram o caminho saudável seguro. Anderson toma três medicamentos para controle do HIV todos os dias, sem pular ou errar horários, que lhe garantiram a condição, hoje, de possuir quantidade do vírus HIV baixíssima, tão baixa que é indetectável. Segundo os estudos mais recentes com base em resultados da ação das novas drogas contra a Aids, esse estado praticamente reduz a zero a chance de contágio.

"A gente queria [ter uma família] e a gente já tinha as orientações [médicas]", explica. "Se dissesse que família não me interessa, seria uma mentira: me interessa e muito."

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Anderson descobriu a importância de acolher e ser acolhido
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Família é tão fundamental para ele, que tatuou a palavra no antebraço direito, com letras garrafais. Da mãe biológica, que perdeu ainda com 1 ano de idade, restou a lembrança só do nome: Maria do Carmo. O pai, Jesuíno Gonçalves, morreu quando ele tinha 6. Pai e mãe morreram de Aids.

Foi morar com a avó, mas com o tempo ela adoeceu, perdeu a visão e mal podia consigo mesma. Anderson seguiu então para uma casa de apoio, o Sítio Agar, aos 9, no município de Cajamar (Grande São Paulo). Ficou ali até os 17, quando foi adotado. Mas aos 18 preferiu seguir seu próprio rumo.

"Família não é só a de sangue para mim. Foi uma coisa que aprendi: a ter várias famílias. Aprendi a gostar do ser humano em si. Às vezes certa pessoa vai ajudar mais do que a sua família em si. Família é onde passo, acolho e sou acolhido", descreve.

Família é onde passo, acolho e sou acolhido
Anderson, 26, ativista e professor de hip-hop

A família do hip-hop foi uma que o acolheu desde pequeno. Na casa de apoio ainda, aos 10 anos, começou a dançar, por orientação e incentivo do professor Adriano. Dança de rua, break, o menino acabou virando mestre. "Fui incluído na sociedade por meio do hip-hop. Até então era uma criança soropositiva que não sabia se ia durar", recorda.

Hoje ele tem o futuro que escolheu sonhar anos atrás: além da família, ou famílias que vem somando, também dá aulas, faz palestras e ajuda no que pode no dia a dia de uma ONG que apoia crianças e jovens sobretudo com Aids por transmissão vertical, a Fundação Poder Jovem, em São Paulo.

Nas escolas públicas e privadas, ele empolga igualmente falando sobre prevenção da Aids, com sua pose estilosa de rapper, voz grave e tranças no cabelo ao vento: "Satisfação, 'tamo' aí junto, sou o Anderson, professor de hip-hop..." A molecada delira: "Dança! Dança!". Então revela que é soropositivo desde os 8, para espanto e silêncio geral: "Papo reto, sem demagogia: estou aqui para falar sobre prevenção, para que vocês, com informação, não passem pelo que eu passei. Sei como é que é: aquela gostosona do baile funk, a top, pois é: ela é soropositiva, não se cuida. Você não vai entrar nessa, vai? E aquele bonitão, gostosão, com carrão, ladrãozão? Ele é soropositivo, não se cuida. Vai cair nessa?". Os jovens o ouvem, porque ele fala a língua deles, a sua língua, de forma reta, direta, evitando formalidades e conversas técnicas.

"Não durmo pensando em HIV/Aids. Tenho consciência da doença, tomo o medicamento. Mas não vou quebrar preconceitos falando da doença o tempo todo. Tenho de mostrar que posso levar (e levo) uma vida normal."

Então ele ensaia um passo difícil de hip-hop no chão, flexiona o corpo, se contorce, rodopia rápido sobre o próprio eixo. Mundo dá volta.

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Alberto sonha em viver um grande amor, casar e ter filhos
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL

Alberto está apaixonado

É como se tocasse o chorinho "Carinhoso" por todo um dia: os olhos do menino ficam sorrindo sempre que ele a vê, mesmo que ela fuja dele. Da sexta-feira para o sábado, o rapaz quase não dorme, só vai poder dormir depois das 4h da madrugada, por causa da expectativa de vê-la. O sábado é agora o único dia em que vão se encontrar.

Os olhos do menino são ligeiramente verdes e um tanto tímidos. O boné colorido ele leva no alto da cabeça, com a aba virada para trás. E o buço de pelos escuros ainda resiste a crescer, a virar bigode, como se vivesse ainda nele o menino que nunca deixou de ser, apesar dos 22.

"O que ela falou de mim?" É a pergunta que ele me faz, a que mais quer saber, depois de ter conversado com ela. Os dois já namoraram, foi um período dourado de oito meses para ele. Ele sonha com o dia em que vão voltar, o que mais quer na vida. Ela, sete anos mais nova, aos 15, disse que precisava viver a vida primeiro e ter "estabilidade" para poder namorar depois. Se isso dói? Ai, como dói nele a dor de amor.

Será só mais um amor de juventude, desses tão intensos e tão fugazes? O rapaz jura que não. Teve breves flertes depois com outras duas garotas e a ambas chamou com o nome da pretendida. Quer casar e ter filhos. Quer compromisso.

Por isso, está planejando uma surpresa especial para ela no próximo dia 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta Contra a Aids, quando haverá cerimônia para marcar a data: um novo pedido de namoro com o par de alianças na mão.

Alberto Vieira da Silva Filho, 22, o apaixonado em questão, pegou HIV da mãe, por transmissão vertical. Ela morreu faz três anos, de Aids. O pai, diz, morreu "de tiro, era bandidinho", quando ele tinha 8 anos.

Morou por dez anos em casa de apoio, hoje vive com as irmãs (são sete irmãos no total, nenhum deles com Aids), mas diz estar pensando em morar sozinho: "Para ter meu cantinho".

Alberto, que trabalha como monitor da Poder Jovem e será padrinho do Bryan, filho do Anderson, diz que leva uma vida normal, apesar das internações sequenciais a que precisou ser submetido ao longo da vida, no hospital Emílio Ribas, em São Paulo.

"Tomar remédio para mim é como chupar bala", naturaliza. "Vivo normalmente tomando remédio. Mas às vezes dou uns vacilos", admite, diagnosticando a causa: "Às vezes dá uma revolta. Primeiro a morte do meu pai, depois da minha mãe e agora do Silas [Silas Silva]. Ele era um dos meus melhores amigos [participava da Poder Jovem]. Morreu porque não se cuidava direito."

Vivo normalmente tomando remédio. Mas às vezes dou uns vacilos porque dá uma revolta
Alberto, 22, ativista

Alberto confia, entretanto, na sua capacidade para contornar seus vacilos: "Sempre consigo dar a volta por cima. A vida não é tão fácil, mas tem de levar. Se parar de tomar remédio, vou para baixo da terra. Eu sinto mesmo é muita gratidão. A palavra gratidão aqui é muito forte. Quando falam em gratidão aqui, todos choram. Só eu não choro quando falo [e desvia os olhos]. Mas homem também chora, e como!".

"Mas o que foi que ela falou de mim mesmo?", insiste. Ela, a destinatária de tanto amor, se chama Caroline.

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Caroline teve de amadurecer rápido por causa da morte da mãe
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Caroline convive: mãe, pai e irmã com HIV

Faz poucos meses que a estudante do 1º ano do ensino médio Caroline Oliveira Araújo, 15, o amor de Alberto, tomou conhecimento da verdade familiar inconveniente. Foi um dia na Fundação Poder Jovem, pouco depois de começar a acompanhar a irmã, Emily de Oliveira Araújo, 17, nas atividades aos sábados.

"Vivendo ou convivendo?" é ali uma atividade lúdica em grupo das mais sérias. Se alguém se diz "Vivendo", é porque vive a Aids, como soropositivo; se se diz "Convivendo", é porque convive com alguém que tem a doença, um amigo, um familiar.

"De repente minha irmã falou que era 'vivendo'", assombrou-se a menina naquele sábado. E ainda havia mais: a mãe, que morreu quando Caroline tinha 6 anos, morreu de Aids. A irmã tinha sido infectada pela mãe. E o pai? O pai também é soropositivo, contraiu a doença sexualmente. Do núcleo original familiar, apenas Caroline não era soropositiva.

A princípio, a menina se contrariou: por que não me contaram? Sentiu-se traída, enganada. Mas mesmo sem saber, Caroline foi um apoio sempre importante para a irmã: marcava com precisão a hora dela de tomar os remédios e incentivava a sua ingestão, porque muitos dos medicamentos provocavam efeitos colaterais incômodos, como náuseas, e Emily começou a rejeitá-los.

A perda precoce da mãe e a parceria solidária com a irmã anteciparam mudanças: "Sou muito madura para a minha idade. Aprendi a aceitar as diferenças, que ninguém é perfeito. Tem gente com a minha idade que ainda brinca com boneca", compara. Esse, diz, é o lado bom de ser madura, mas ela também já reconhece o lado ruim: "A gente fica tentando resolver tudo, mesmo que não seja com a gente. Não enxerga a responsabilidade do outro".

Aprendi a aceitar as diferenças, que ninguém é perfeito
Caroline, 15, estudante

Caroline valoriza muito o pai, Antoniel, de 40 anos: "Ele é pai e mãe ao mesmo tempo. Vive sempre dizendo para a gente: 'Nunca vou deixar de ser o pai de vocês'". O problema dele é o caráter superprotetor, diz. "Sempre foi exagerado em tudo."

Foi o pai que desencorajou a continuidade do namoro dela com Alberto. Mas quem mais senão o pai, igualmente soropositivo, poderia entender Alberto melhor? É no que o rapaz ainda confia. Caroline passa agora e não o olha - mas ele ainda tem esperanças.

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Diego vê a doença como possibilidade de recomeço
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL

Diego, o enfermeiro, quer cuidar do mundo

Diego Vieira, 22, está se preparando para o primeiro emprego com carteira assinada: tem tudo para ser no hospital Emílio Ribas, só faltava uma última etapa na seleção, a da entrevista.

Concluiu a faculdade de enfermagem em agosto último e está pronto para voltar numa outra posição ao local onde se tratou do HIV por transmissão vertical. Sempre soube da doença. "Mas só fui começar a entender aos 8, 9 anos de idade. Sabia que não tinha cura, mas tinha tratamento."

A sequência de exames e a rotina de consultas acabaram sendo fator vocacional preponderante na hora de decidir o que ser na vida. "Até por muito contato, a área da saúde sempre foi o meu foco."

Dos irmãos (são três), só ele é positivo para o HIV. Cresceu sem o pai e hoje vive com a madrinha, apesar de a mãe estar viva. Do seu estado tirou uma lição: "Sempre se tem chance de passar por cima dos problemas. Descobrir que o que você pensa que é o fim, mas não é o fim. É só o recomeço", sorri, hoje feliz da vida também pelo namoro de um ano com a Jaíny, que não é soropositiva.

A doença não é o fim. É só o recomeço
Diego, 22, enfermeiro

A responsabilidade foi outra aquisição: "Você tem de estar bem para cuidar do outro. Tem de saber o que fazer da vida para cobrar do outro", diz, perguntando a Alberto, ao lado, se ele "tem passado nas consultas".

Por trás dos óculos grossos de grau que lhe deixam mais sério, Diego mira a vida e a saúde da sociedade, confiando na humanidade: "Política está f., segurança está f., crise está f., mas não pode generalizar, porque tem gente boa no mundo".

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Depois de conseguir morar sozinha, Bruna planeja estudar mente do ser humano
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL

Bruna, a independente, se diz realizada

Bruna Nahum, 21, está comemorando uma grande vitória: está morando sozinha faz seis meses, pela primeira vez na vida. Ela paga R$ 400 de aluguel por um quarto e sala na região do Capão Redondo, na periferia da zona sul.

"Me sinto realizada porque consigo me sustentar." Cozinha, lava e passa, com muito orgulho.

Hoje desempregada, Bruna, assim como outros portadores de HIV, tem direito a pleitear um auxílio-doença no valor de um salário mínimo (R$ 937). É com ele que hoje vive.

Os pais de Bruna morreram de Aids quando ela ainda era criança e a tia a adotou, junto com os irmãos dela (um deles, hoje casado e pai, é soropositivo também).
Seu sonho seguinte é fazer faculdade e se tornar psicanalista, psicóloga ou psiquiatra. "Quero conhecer o ser humano, a mente do ser humano."

No salão toca agora uma canção cheia de suingue, de batida dançante. Todos eles se reúnem no entorno de Anderson, para mais uma aula de hip-hop. Caroline dança, ri, livre, uma outra vida está começando agora que ela já é uma mulher ou quase; Alberto olha, os olhos brilhando, sentado. Não dança, Alberto? "Meu negócio é mais samba-rock."

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Anderson dança para celebrar a vida
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Transmissão dos pais é causa da Aids em menor de 13 anos

Segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids, do governo federal, de 1980 até junho de 2016 (o dado disponível mais recente), 14.381 casos de jovens menores de 13 anos foram notificados como transmissão vertical. Essa é a principal via de contágio nesse grupo (93% do total dos casos notificados no Sinan, Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde).

A taxa de detecção da Aids em menores de 5 anos, que é o critério para o monitoramento da transmissão vertical do HIV no Brasil, apresentou tendência de queda de 42,7% em cerca de uma década. Isso mostra avanço na prevenção da doença em gestantes. Medicamentos hoje disponíveis podem minimizar a chance de contágio do bebê pela mãe.

Já foram contabilizados no país um total de 842 mil casos de Aids, incluindo todas as vias de transmissão, sendo mais de 70% deles concentrados nas regiões Sudeste (53%) e Sul (20,1%). Do total dos casos de Aids registrados de 1980 a junho de 2016, 65,1% foram em homens. No período, morreram oficialmente de Aids 303 mil pessoas.

A detecção de casos de Aids tem subido, na última década, entre jovens de 15 a 19 anos; 20 a 24 anos; e 60 anos e mais. Entre os mais jovens (15 a 19), a taxa de detecção mais que triplicou: de 2,4 para 6,9 casos por grupo de 100 mil habitantes.