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Com vaquinha, pais de bebê com síndrome rara migram aos EUA por tratamento

Lia sofre da síndrome de Ohtahara, um raro tipo de epilepsia - Arquivo Pessoal
Lia sofre da síndrome de Ohtahara, um raro tipo de epilepsia Imagem: Arquivo Pessoal

Eduardo Carneiro

Colaboração para o UOL

05/12/2017 13h17

Decidida a melhorar o tratamento e a qualidade de vida da filha portadora da rara síndrome de Ohtahara, a família Mota organizou uma "vaquinha" e se mudou de São Caetano, no ABC Paulista, para Boston, nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que renovam as esperanças no tratamento de Lia, que completa 2 anos no próximo dia 29, os pais Fábio, 43, e Irene, 35, além de Pedro, 6, o outro filho do casal, encaram os desafios de reiniciar a vida no exterior com poucos recursos.

UOL contou a história de Lia, que sofre de um raro tipo de epilepsia que exige o uso de uma fórmula específica em sua alimentação para evitar que ela tenha uma nova convulsão a cada minuto, em junho.

Na ocasião, o governo do Estado de São Paulo havia atrasado por quase dois meses a entrega do remédio. A síndrome de Ohtahara é uma encefalopatia epiléptica precoce que provoca crises convulsivas e afeta o desenvolvimento neurológico. Depois do contato da reportagem, a Secretaria de Saúde alegou “um desabastecimento temporário” e normalizou a entrega.

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Passados quase seis meses, porém, a jornada da família recomeça do outro lado do continente. “Como a gente tomou a decisão? Principalmente por causa de várias frustrações no Brasil”, explica Fábio Mota. Além do atraso no medicamento, a família se decepcionou em consultas com alguns profissionais da saúde. “Não gostaria que depreciasse o Brasil. Nunca quis sair do meu país e nem pensava nisso. Mas vi que chegou a um momento em que os médicos quase me falavam que não tinha o que fazer”.

Como Lia não fala e praticamente não se mexe em virtude da síndrome, ela faz sessões de fisioterapia e fonoaudiologia desde o primeiro ano de vida. “Mas muitos profissionais não aceitavam tratá-la no Brasil. Temiam que ela tivesse crises convulsivas. Só duas profissionais atenderam, de forma particular, e creio que Lia consegue hoje fazer alguns movimentos e engolir saliva graças a elas”, pontua Mota.

A rotina de consultas a neurologistas, lembra o pai, também já traziam poucas esperanças. “Parecia que aceitavam que era uma coisa grave e ponto. E são crises muito fortes, várias convulsões por dia. Num dos hospitais de São Paulo, quem atendeu a Irene e a Lia foi um médico neurologista residente que falou que elas poderiam ir para casa se era apenas uma consulta de rotina. Ela então pediu uma guia para fazer fisio e fono, e ele respondeu: 'mas você acha viável tirá-la de casa para fazer fisio? Não adianta muito no caso dela'", conta. "Não é questão de adiantar. É tentar o mínimo. Isso pra nós já é muita coisa”.

Insatisfeita, a família começou a fazer pesquisas sobre o tratamento da Ohtahara em outros países. "Descobri por uma matéria que o hospital da criança de Boston (Boston Children’s Hospital) estuda a síndrome. Entramos em contato com grupos de famílias no Facebook e muitas elogiavam este hospital”.

A família, então, começou a se comunicar com o hospital por e-mail e foi autorizada a levar Lia assim que chegasse à cidade americana. “Conversando com um geneticista no Brasil fiz a pergunta decisiva: 'Acha que se for para lá tem 0,01% de chance de melhorar a qualidade de vida da Lia? E ele: 'Cara, talvez muito mais. Porque lá eles usam os mesmos remédios, mas a estratégia pode ser diferente'. E viemos atrás disso”.

Vaquinha e chegada aos EUA

Mota tinha uma empresa de pequeno porte em São Caetano, enquanto Irene dava aulas numa escola bilíngue – onde Pedro estudava. A ida para os Estados Unidos fez a família deixar emprego, casa e parentes para trás. “Não tinha como vir só uma parte, por exemplo a Irene ficar com o Pedro e eu vir com a Lia ou vice-versa. E a gente não sabe quanto tempo vai durar. Se um mês, três meses, três anos, 30 anos. Não sabe... Nunca imaginei sair do meu país, mas tudo acabou levando a esse caminho. A gente deixou muita coisa”, relata o pai de Lia.

A família, cujo gasto mensal com o tratamento de Lia no Brasil girava em torno de R$ 10 mil, ainda precisou fazer uma grande mobilização para viajar para Boston. “Corremos atrás de amigos, colegas, familiares, fizemos eventos e festas. Pessoas que nem conhecemos começaram a nos ajudar. Nossa meta era levantar R$ 300 mil, mas alcançamos R$ 93 mil e viemos com isso”, diz Mota.

Pai diz que vaquinha foi usada para tirar vistos e alugar a casa em que estão morando - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Pai diz que vaquinha foi usada para tirar vistos e alugar a casa em que estão morando
Imagem: Arquivo Pessoal

O pai de Lia afirma que o dinheiro angariado na vaquinha foi gasto nos custos da viagem, para tirar os vistos e para alugar a casa em que estão morando, dentre outras despesas da mudança. Da quantia levantada, devem sobrar somente US$ 2.000. Mota, que fez uma conta específica para receber doações para Lia, começa a trabalhar nesta semana como motorista do Lyft, empresa de transporte americana que funciona aos moldes do Uber.

“Chegamos a Boston em 15 de novembro e se Deus quiser amanhã (quarta) eu começo. Não pude antes porque a Lia pegou influenza e já foi internada assim que chegamos. Conversei e decidi trabalhar com eles, porque em áreas como construção eu teria horário fixo e aqui não gostam muito que fique saindo. No Lyft, se eu passar metade do dia no hospital, compenso à noite. Me conseguiram o carro e ainda vão atrás de uma cadeirinha ou de uma cama adaptada para quando tiver que transportar a Lia”, diz.

Como a família regularizou a situação e não tem previsão de retorno ao Brasil, o pai conseguiu que Lia não fosse tratada como paciente internacional, o que encareceria os custos. Mota já definiu um plano de saúde que cobre os gastos do hospital, além de acompanhamento de uma assistente social. Os vinte dias em solo norte-americano bastaram para ele perceber diferenças em relação a seu país natal.

“Senti principalmente uma mudança no tratamento. No primeiro contato o médico falou que não há cura, mas que iriam fazer o melhor que pudessem, o que estiver ao alcance. Eles estão encarando como um desafio também. O pessoal da pesquisa está junto com ela no hospital. É frustrante quando você não se sente ouvido, e aqui isso pouco aconteceu. Quando aconteceu, eles se reuniram e pediram desculpas. Não quero falar mal do Brasil, mas aqui tem mais suporte”.

Mota dá um exemplo prático ao comparar os dois países. Como Lia não é capaz de engolir, sua dieta é feita desde os quatro meses de vida por meio de um tubo. Ele conta que a alimentação da menina era feita com seringa, processo que demora cerca de uma hora e meia, o que dificultava a condução de outras tarefas no cuidado de sua filha. Entretanto, a mesma função poderia ser feita com um aparelho automático. "No Brasil, só há bomba no hospital ou se você processar o plano de saúde. Aqui nos EUA, já estão vendo de instalar o equipamento na nossa casa”, explica.

Esperança renovada

Mais do que um recomeço no tratamento de Lia, a mudança para os Estados Unidos também melhorará a qualidade de vida dos outros integrantes da família, acredita o pai. Pedro, por exemplo, está contando com ajuda de uma psicóloga e, na última segunda-feira (4) entrou na escola. Uma enfermeira também deve ir para a casa dos Mota ao menos duas vezes por semana assim que Lia tiver alta, o que pode acontecer ainda nesta semana

O inglês, por enquanto, é problema só para o patriarca. “Quem sofre sou eu, já que a Irene dava aula na escola bilíngue e antes morou aqui nos Estados Unidos por seis anos. O Pedro estudou na mesma escola e pratica o idioma desde o início. Agora eu nunca tive vontade de aprender. Eu trabalhava com telecomunicação, mas aquele inglês técnico, de equipamentos. Estou sofrendo um pouco e é mais um desafio. Vamos pra cima”.

Lia sofre da síndrome de Ohtahara, um raro tipo de epilepsia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Com o dinheiro das doações recebidas no Brasil no fim, Fábio também está contando com a compreensão do hospital e dos assistentes sociais que lhe atendem em Boston. “Todos os programas possíveis de nos encaixarem, eles estão olhando. E funciona mais ou menos assim: vamos cuidar dela com todos esforços para você poder trabalhar tranquilo e só depois pagar”, diz ele, feliz com o suporte recebido até o momento.

“Nitidamente estão criando um plano de tratamento para ela. Foram feitos vários exames e perceberam que a Lia é muito delicada, que qualquer coisa altera seu estado. A gente nunca está preparado para o pior. Mas foram tantas convulsões desde o terceiro dia de vida que quase nem era mais para ela estar entre nós. Eles também vão tentar entender como ela suportou e suporta tanto”. 

Esperançoso, Fábio conta que a expectativa de vida dos portadores de Ohtanara é de três anos de vida, mas que há casos de pacientes que chegaram aos 22 anos com os tratamentos adequados.

Corrida beneficente

Uma caminhada e corrida beneficente cuja renda das inscrições será toda convertida para o tratamento de Lia acontece no próximo dia 17 em São Caetano. O dia a dia da menina também é atualizado pela família na página Lia Meu Amor no Facebook.