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Vacina "anticocaína" avança e testes em humanos devem começar em 2018

Fernando Arbex

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/12/2017 04h00

Uma vacina contra a dependência em cocaína e crack teve bons resultados em testes com roedores feitos no Centro de Referência em Drogas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). A expectativa é de que seres humanos passem pelo experimento entre junho e julho de 2018. 

“Foi um projeto que a gente começou em 2012. Queríamos fazer uma modificação de uma vacina que estava sendo testada nos Estados Unidos para proteção de mães usuárias de crack e seus fetos”, relata Frederico Garcia, do Departamento de Saúde Mental. 

A vacina seria uma forma de criar anticorpos que reduzam o efeito de prazer gerado pelo uso de drogas. 

“O mecanismo farmacológico nasceu da observação que alguns usuários apresentam anticorpos antidroga mesmo sem uma estimulação imunológica. Esses anticorpos podem se ligar às moléculas de droga e, com isso, impedir que elas entrem no cérebro e produzam o efeito de prazer. Assim, é possível que uma vacina antidroga possa induzir o próprio corpo a produzir uma quantidade suficiente de anticorpos que impeçam a passagem da maior parte da droga para cérebro. Ao não perceber a sensação agradável, o usuário tende a diminuir ou abandonar a substância e romper o ciclo que mantém a dependência química.”

De acordo com Garcia, outros quatro grupos no mundo (três nos EUA e um na Coreia do Sul) trabalham em estudos parecidos, mas na UFMG eles alcançaram um diferencial. “As outras pesquisas desenvolveram moléculas proteicas, enquanto nós conseguimos sintetizar a V4N2  e a V8N2 em laboratório, ou seja, elas são mais específicas, estáveis e fáceis de produzir em larga escala”, garante.

Usuário de crack no centro de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress - Zanone Fraissat/Folhapress
Usuário de crack no centro de São Paulo
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Passo a passo até testes em humanos

Para a avaliação da vacina em humanos, três etapas ainda precisam ser vencidas. A primeira corresponde ao estudo da biossegurança da molécula em animais, exigência da Anvisa. O objetivo é assegurar que o novo medicamento não produz efeitos nocivos a ao menos duas espécies de animais. “Nosso grupo já iniciou esses testes em camundongos e, até o momento, tem obtido bons resultados”, afirma o pesquisador.

A segunda etapa corresponde a um estudo clínico de Fase 1, no qual serão repetidas avaliações de biossegurança em seres humanos para assegurar que os possíveis efeitos colaterais das moléculas são mínimos e atendem as normas internacionais.

Esta fase também permitirá avaliar se a V4N2 e a V8N2 são capazes de induzir a produção de anticorpos em seres humanos.A partir desses resultados, a droga pode ser testada em humanos.

Se a estratégia der certo, o futuro desenvolver moléculas semelhantes para conseguir inibir a sensação de prazer da nicotina e do THC, principais componentes ativos do cigarro e da maconha, respectivamente.

Cocaína - Getty images - Getty images
Imagem: Getty images

Efeitos não são para todo mundo

Vice-coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria, Carla Bicca não crê em solução definitiva para o vício, mas recebe os resultados positivos com otimismo.

“Em uma área tão escassa, a gente recebe com boas expectativas quando surge algo promissor. Não vai funcionar para todos, mas seria mais uma arma para ajudar os pacientes”, afirmou.

A psiquiatra lembra que existem medicamentos para inibir os efeitos agradáveis do consumo de álcool, mas não funciona para todos os dependentes porque parte deles passa a beber mais para alcançar a sensação desejada.

A visão é compartilhada pela chefe do departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, Renata Azevedo.

A questão é definir quem vai ser o destinatário da vacina. Dentro de um contexto de tratamento e psicoterapia, pode ser uma ferramenta complementar para o paciente, mas corre o risco de aumentar o uso de quem que não estiver motivado a largar o vício. A dependência química tem um caráter multifatorial.”

Renata Azevedo, da Unicamp

Carla também aponta que outros projetos promissores esbarraram em um obstáculo comum: “Muitos estudos acabavam sendo muito caros e pouco acessíveis. Esse parece que vai conseguir vencer essa barreira”.

De acordo com ela, não existe pesquisa em curso neste momento que apresente resultados que vão eliminar o vício em cocaína e crack. “Psicoterapia e técnicas de reabilitação geram resultados escassos. A gente apoia todo e qualquer estudo que aparecer, tomara que um pouco de cada consiga ajudar mais pessoas”, afirmou.

Dificuldades em universidades federais

Antes de alcançar resultados positivos em roedores, os pesquisadores da UFMG tiveram de interromper o estudo no começo de 2017. De acordo com o o professor da federal de Minas Gerais, a falta de verba foi a responsável pelo atraso, cenário conhecido da comunidade científica brasileira, que organizou protestos neste ano contra o governo federal.

“Houve, de fato, uma redução de investimentos e criação de editais na área da ciência. Em razão disso que o Brasil enfrenta uma fuga de cérebros para outros países e a produção por aqui abaixou”, comenta o pesquisador.