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Ciência ainda não é capaz de distinguir cogumelo comestível de venenoso

Sir G.T.Prance/Acervo Dr. Oswaldo Fidalgo
Imagem: Sir G.T.Prance/Acervo Dr. Oswaldo Fidalgo

Deborah Giannini

Colaboração para o UOL

15/01/2018 04h00

Parece champignon, mas pode matar. Conhecido como "anjo da morte", o cogumelo da espécie Amanita virosa, em sua fase inicial, muito se assemelha ao Agaricus bisporus, o champignon, porém é altamente tóxico. Distinguir um cogumelo venenoso de um comestível não apenas na natureza, mas também em laboratório ainda é um dos grandes desafios da ciência.

A estimativa é que existam 3,8 milhões de espécies de fungos no mundo. Cerca de 3% delas são conhecidas – o que corresponde a 120 mil fungos. Cada fungo – família à qual o cogumelo pertence – pode produzir dezenas de substâncias químicas.

"Podemos procurar no cogumelo substâncias que a gente já conhece. Mas, cientificamente, é impossível pegar um cogumelo de uma espécie que nunca foi estudada e saber se é venenosa ou não. Essa espécie pode produzir dezenas de centenas de substâncias e uma delas pode ser tóxica. Por isso a ciência não consegue dizer se um cogumelo é tóxico ou comestível", explica Noemia Kazue Ishikawa, micologista do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).

Esse conhecimento, no mundo todo, provém da experiência empírica do saber tradicional. “Na Europa e na Ásia, veio dos camponeses. No Brasil, quem detém essa sabedoria são os índios”, afirma Moreno Saraiva Martins, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA), que trabalha com os yanomami na Amazônia desde 2010.

Com o intuito de unir o saber indígena ao saber científico, o ISA elaborou o livro "Ana Amopö: Cogumelos Yanomami", uma parceria com pesquisadores indígenas e participação do Inpa, Instituto de Micologia de Tottori do Japão, IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo), Instituto de Botânica e Instituto ATA. Primeiro livro sobre cogumelos comestíveis do Brasil, trata sobre 15 espécies comestíveis da Amazônia consumidas pelos Sanömas, subgrupo dos yanomami, sendo sete delas registradas cientificamente pela primeira vez. Foi vencedor do Prêmio Jabuti em 2017 na categoria Gastronomia.

Os cogumelos do livro foram identificados por meio de análise morfológica e sequenciamento de DNA pelo taxonomista Nelson Menolli Jr., do IFSP. "A certificação da identificação foi feita comparando nossos resultados com estudos taxonômicos publicados previamente e também comparando as sequências de DNA obtidas com sequências disponíveis em bancos de dados de sequências genéticas", afirma.

O primeiro pesquisador brasileiro a entrar em contato com o conhecimento yanomami sobre cogumelos foi o biólogo micologista Oswaldo Fidalgo, hoje com 89 anos. Por meio de um tradutor local – índio poliglota de uma comunidade rival que falava sanöma, português e espanhol, além de sua língua mãe –, Fidalgo, junto ao pesquisador inglês "Sir" G. T. Prance, registraram em 1976 as primeiras 19 espécies comestíveis da Amazônia.

"Comi todas, sem nenhum medo", relembra. "Nosso objetivo era trazer para o conhecimento científico o conhecimento dos índios. Nós não sabíamos quais cogumelos eram comestíveis, mas os índios sabiam", completa.

Autor do primeiro dicionário micológico do país, publicado em 1967, com apêndice de vocábulos indígenas, Fidalgo procurou saber as raízes de cada nome que os índios davam aos fungos. "Por exemplo, há um fungo que cientificamente é conhecido como Polyporus aquosus e eles chamam de Sama-sama i amo. "Sama-sama" é arraia, "i" é rio, porque o cogumelo lembra uma arraia de rio, e "amo" se refere à textura. Esse termo "amo" também é utilizado para designar um palmito de uma bananeira", conta ele, que tem um livro pronto sobre sua experiência de vida e aguarda editora para publicação.

Segundo Fidalgo, o cogumelo supria a necessidade de proteína animal na alimentação do povo yanomami, pois os bichos para caça, já nos anos 1970, estavam praticamente extintos. "Em uma semana, cerca dos 300 yanomami que havia no local conseguiram caçar apenas uma paca, que generosamente dividiram conosco. Era o que tinha", afirma. A pesquisadora do Inpa ressalta que a inclusão do cogumelo na dieta dos yanomami provavelmente contribuiu para sua sobrevivência ao longo dos séculos. "O corpo humano precisa de aminoácidos essenciais que só podem ser adquiridos pela alimentação e os cogumelos, assim como as carnes, dispõem dessas substâncias", diz.

Sobre o sabor da iguaria, o pesquisador indígena Resende Maxiba Apiamö, que participa do livro, define: "Nós, yanomami, distinguimos dois tipos de fome: fome de proteína e fome de carboidrato. Os cogumelos matam a fome de proteína, por isso falamos que eles são saborosos como carne de caça."

Ele conta que prepara os cogumelos de duas principais formas: embrulhado em folhas de helicônia e assado diretamente na brasa ou cozinhando com água, sal e pimenta. Esse caldo normalmente é engrossado com o amido da mandioca. Segundo ele, nunca houve caso de envenenamento acidental na comunidade por erro na identificação de cogumelos comestíveis. "É um conhecimento do povo yanomami, passado de geração em geração durante nosso cotidiano", afirma.

Um reino à parte 
Cogumelo_1 - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Os cogumelos comestíveis consumidos pelos yanomami brotam em cascas de árvores derrubadas para a agricultura. Segundo Apiamö, os cogumelos nascem o ano todo, mas é na época da seca, de outubro a março, que estão próprios para coleta.

O fungo tem papel fundamental no ciclo da vida, pois é o responsável pela degradação do material animal e vegetal. "Sem o fungo, a madeira, por exemplo, não vai degradar, apodrecer. Ao se alimentar, ele transforma uma molécula grande como a celulose em glicose e, vai devolvendo nutrientes para o solo", afirma Noemia.

Nem animais nem plantas. "Os fungos são um reino à parte", afirma Fidalgo. Como exemplo, ele cita a fecundação: nos fungos ela não ocorre da fusão dos núcleos de uma célula feminina com uma masculina como nos animais e nas plantas, mas sim a partir de duas células idênticas, que mantêm seus núcleos separados, dividindo-se sincronicamente, unindo-se apenas em um momento avançado da reprodução. "São completamente diferentes em sua química e biologia", completa.

Existe uma certa "magia" em torno dos cogumelos que, devido a substâncias psicodélicas presentes em algumas espécies, é utilizado em rituais religiosos por determinadas culturas. Dentro de um mesmo gênero, podem haver tanto espécies tóxicas quanto comestíveis. O taxonomista cita como exemplo o gênero Agaricus. "Embora a maioria deste gênero seja comestível, como é o caso do champignon (Agaricus bisporus), existem também espécies potencialmente tóxicas, como Agaricus xanthodermus", afirma Menolli.

De acordo com Noemia, no Brasil, a principal possibilidade de intoxicação é com erro na identificação entre espécies comestíveis do gênero Macrolepiota com espécies tóxicas do gênero Chlorophyllum. Por exemplo, Macrolepiota procera confundida com Chlorophyllum molybdites.

Fidalgo ressalta a existência também de espécies com toxicidade cumulativa, como é o caso da Ramaria flavo-brunnescens. "É um fungo muito vistoso que se associa a eucaliptos e o gado costuma comer. Se come apenas uma vez, não há problema, mas se come várias, vai envenenando o animal e ele morre", diz.

Mais frequentes no Brasil 
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Imagem: Daniel Gomes/Apta/Divulgação

Há 22 mil espécies de cogumelos no mundo, sendo 2.000 comestíveis. No Brasil, já foram reportadas cerca de 1600 espécies de cogumelos, segundo Menolli. Não há estatística para espécies comestíveis. Já foram coletadas 90 no Estado de São Paulo e 34 na Amazônia. Esse número reflete, segundo Noemia, a desigualdade de pesquisa nas diferentes regiões do país.

O que chama a atenção, segundo ela, é a importação de espécies comestíveis mesmo com abundância de alternativas semelhantes no Brasil. "Há registro de cogumelo comestível em São Paulo desde 1889, como Pleurotus albidus, do mesmo gênero do shimeji e com sabor semelhante. Acredito que espécies comestíveis deste gênero são as mais frequentes no Brasil. Mas estamos em 2017 e continuamos produzindo o que vem de fora", diz.

Os cogumelos yanomami apresentados no livro "Ana Amopö: Cogumelos Yanomami" são as primeiras espécies nativas brasileiras a serem comercializadas no país. São dois produtos: um mix de espécies de cogumelos inteiros mais macios e um mix de espécies mais fibrosas em pó. "Nos cogumelos inteiros, a predominância é da Lentinula raphanica, do mesmo gênero do shitake. Já os cogumelos em pó são compostos de espécies muito diferentes das asiáticas e europeias e, portanto, apresentam um sabor mais inédito", afirma Moreno.

Na comunidade yanomami os cogumelos ainda são obtidos por meio de coleta. Já Noemia está desenvolvendo no Inpa o primeiro cultivo do mundo da espécie Lentinula raphanica, escolhida, de acordo com a pesquisadora, pelo sabor semelhante ao shitake e pela facilidade de manter a maciez após a reidratação. Ainda está fase experimental e não tem previsão para venda.