Uma gota, 15 minutos: doença leva brasileira a descomplicar exame de sangue
Patricia Guedes, 32, definiu cedo o que queria. “Aos 7, decidi que seria física. Aos 9, que abriria uma empresa. Eu era a criança mais bizarra do planeta Terra: nerd, introvertida, nunca fui de brincar. Lia, estudava muito e comprava dólar com minha mesada.” Hoje formada em física, ela já teve sua empresa e agora desenvolve um aparelho portátil e não invasivo que permite a qualquer um fazer exames de sangue em casa: uma gota para a análise, 15 minutos para o resultado.
Criar o produto não estava na programação inicial, mas tudo mudou por causa de uma doença grave, que exigiu por meses coletas diárias de sangue: “Fiquei destruída”.
Essa história começa em 2015, quando Patricia estava totalmente absorvida pela plataforma de ensino online que havia criado, chamada Sabixão. Descuidou da saúde, ignorando uma febre constante que havia alguns meses a acompanhava. “Sou hiperfocada e estava em um momento importante da empresa. Fui muito displicente comigo mesma.” Na sexta-feira de Carnaval, foi de má vontade a um hospital de Capivari (137 km de SP), onde morava, atendendo a um pedido incisivo de seu então marido.
“Achei que ia só tomar uma injeçãozinha e era uma infecção generalizada. O médico disse que eu poderia ter uma parada cardiorrespiratória a qualquer momento, que minha chance de sobreviver era pequena. Lembrou ainda do caso de uma modelo que havia amputado vários membros e, depois, morrido”, conta Patricia, comparando a gravidade da situação.
Ela teve pielonefrite (infecção) nos dois rins e, depois de sete dias internada, passou os meses seguintes tomando antibióticos (devidamente prescritos por médicos) e fazendo exames de sangue diários, para saber como seu corpo reagia aos medicamentos.
Eu tinha de fazer exames de sangue todos os dias. Não tem veia que aguente: o braço detona, fica roxo, cheio de bolas e duro. Fora isso, os resultados só saíam horas depois. Eu não fazia mais nada, parei de viver, fiquei totalmente focada nessa espera. Foi horrível
Patricia Guedes
Veio daí a motivação para criar o que hoje ela chama de IG11, m dispositivo portátil que permite fazer hemogramas em casa. O aparelho ainda está em fase de testes, da qual Patricia participa como paciente --a pielonefrite deixou sua função renal reduzida, e ela precisa monitorar constantemente a creatinina no sangue. Faz isso furando o dedo com uma lanceta.
Parceria com universidade e previsão de lançamento
“Mesmo que ninguém quisesse usar, eu usaria. A princípio não o desenvolvi para vender, ele não surgiu a partir de um estudo de mercado. O caminho foi inverso: começou com a visão do paciente”, explica ela, que já trabalhou na criação de planos de negócios e fez consultorias para empresas. A ideia veio no final de 2015. Patricia entrou em contato com representantes de laboratórios, para entender as técnicas, comprou componentes e montou um protótipo com a ajuda do irmão mais novo, formado em biologia.
Desde então se separou (IG vem de Igor, o nome do ex-marido, que “me salvou ao praticamente me obrigar a procurar um hospital”), vendeu o Sabixão e voltou o foco ao produto de saúde. O objetivo é disponibilizá-lo no mercado brasileiro em um ano, em duas versões: uma descartável para até dez exames (previsão de R$ 40) e outro para uso a longo prazo (previsão de R$ 630). Cada exame deve custar entre R$ 1 e R$ 2 no Brasil e 1 euro ou 2 euros na Europa.
O desenvolvimento do IG11 é feito em parceria com o departamento de física da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), onde Patricia se formou em 2009. Em 2016, ela apresentou no laboratório de Olaf (Óptica, Laser e Fotônica) seu protótipo, que foi aceito e vem passando por aprimoramentos, testes e aperfeiçoamento da patente. Os testes são feitos no Brasil, e a ideia é expandir para Alemanha e também Itália, onde a pesquisadora mora atualmente.
O IG11 aproveita tecnologias de ponta, integrando em uma única plataforma elementos da física, da biologia, da medicina e da ciência da computação em um projeto altamente interdisciplinar. Um excelente exemplo de como a pesquisa cientifica aplicada pode contribuir para o social
Filippo Ghiglieno, professor doutor da UFSCar ligado ao projeto
Interação com o paciente e com os médicos
O foco do aparelho é a análise de células brancas, vermelhas e as CTCs (células tumorais circulantes). Do tamanho de um iPhone, ele tem um local para inserção da amostra de sangue. Um sistema de inteligência artificial, como o da assistente Siri (do iPhone), permite que o usuário interaja via smartphone com a plataforma, sabendo de maneira simples como está sua saúde naquele momento e se precisa tomar algum cuidado especial (exemplo: comer ou deixar de comer algum alimento).
O médico poderá acompanhar as informações e se comunicar via aplicativo com o paciente: “A ideia é que o dispositivo trabalhe com esses profissionais da saúde, não que compita com eles”, diz Patricia. Esse comentário tem um motivo específico. No começo do projeto, ela se deparou com um dilema ético: e se os usuários descuidassem da saúde sabendo que um aparelho diria o que fazer, quando fazer?
Sou completamente envolvida com tecnologia, amo inteligência artificial, automação. Mas me preocupa a possibilidade de as pessoas delegarem sua capacidade de pensar para uma máquina
Patricia Guedes
Na prática, seria alguém deixando de se alimentar corretamente ou tomar os remédios adequados, por exemplo, sabendo que seria alertado caso a saúde “desse pau”. Por fim, decidiu apostar em sua criação. “Recebi e-mails de pessoas querendo fazer parte do grupo de testes e essas mensagens me trouxeram a resposta. Não tenho conclusão fechada, mas esperança de que se chegue a um equilíbrio sobre o uso dessas ferramentas”, continua.
Nessa mesma linha, a médica Ana Cristina Ribeiro Zollner comemora a inovação e faz um alerta. “Realizar exame de sangue com apenas uma gota, em seu domicilio, é uma revolução. E como tudo que é novo deve ser analisado e ponderado com bom senso”, diz a diretora de ensino e residência médica da SPSP (Sociedade de Pediatria de São Paulo) e coordenadora-adjunta do curso de medicina da Universidade de Santo Amaro.
Ela lembra que, por muitos anos, diabéticos morriam por não ter como controlar a glicemia --algo simples hoje em dia. “Entretanto, sabemos que muitos não utilizam esta tecnologia de maneira adequada e as complicações ocorrem, como ocorreriam em outras situações”, continua, reforçando a importância da análise correta dos resultados. “Uma interpretação inadequada pode acarretar automedicação, complicações clínicas e até evoluir para sequelas ou até mesmo óbito.”
Recentemente, outros pesquisadores anunciaram a criação de dispositivos parecidos, que prometem fazer exame de sangue em casa com baixo custo e resultados rápidos --muitos ainda não estão no mercado. Patricia diz acreditar que se trata de uma tendência: “Já existia a demanda, mas não a tecnologia para viabilizar”.
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