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Coronavírus: Governo não informa plano B para quando faltarem leitos de UTI

UTI da Santa Casa de São Paulo - Joel Silva/Folhapress (4.7.2018)
UTI da Santa Casa de São Paulo Imagem: Joel Silva/Folhapress (4.7.2018)

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

04/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • País pode ter falta de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para atender pacientes já em abril
  • Governo não tem plano concreto para aliviar a sobrecarga dos leitos
  • Representantes de hospitais privados e planos de saúde não foram contatados pelo ministério
  • Pasta diz que "em uma fase inicial, talvez o sistema público tenha de socorrer a iniciativa privada"

Com o crescimento das infecções pelo novo coronavírus no país, o Ministério da Saúde deve enfrentar déficit nos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para tratar pacientes graves já em abril. Uma nota técnica produzida por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) mostrou que, no cenário mais otimista, com 0,1% dos brasileiros contaminados até o fim deste mês, já haverá falta de leitos em UTI para tratamento.

Na projeção mais pessimista, com 1% da população infectada pela covid-19, 53% das microrregiões (agrupamentos de municípios) ficariam sobrecarregadas.

Apesar disso, o governo ainda não informou qual será o plano para contornar essa escassez, nem solicitou leitos particulares — solução prevista em lei —, de acordo com os principais representantes do setor.

"Já tivemos algumas reuniões diretas com o ministério da Saúde, mas não houve nenhuma proposta oficial relacionada à contratação de leitos da rede privada. Estamos disponíveis e fazemos questão de participar, mas não tivemos nenhuma posição do ministério sobre como isso vai ser feito", diz Adelvânio Francisco Morato, presidente da FBH (Federação Brasileira dos Hospitais).

A Federação representa 15 associações estaduais que respondem por mais de 4 mil hospitais particulares — parte deles conveniado ao SUS (Sistema Único de Saúde). "Não podemos ser hipócritas em um momento tão difícil. Todos os hospitais privados têm um custo fixo. Esse é momento de a gente estar junto, mas precisamos entender o lado do hospital", afirma Morato.

A Anahp (Associação Nacional de Hospitais Privados) também não foi contatada pelo ministério. Em nota, a Anahp afirmou que "os hospitais privados ainda trabalham com boa capacidade de atendimento", à exceção das instituições no Sudeste, que "certamente têm uma taxa de ocupação maior". A organização tem como membros hospitais como Albert Einstein, Oswaldo Cruz e Sírio-Libanês.

Principal representante dos planos de saúde, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) comentou que não houve solicitação do ministério para contratação de leitos privados. Os planos têm interesse direto nessa negociação, pois respondem pela demanda dos hospitais particulares.

Ontem, questionado pelo UOL, o secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, disse que vai "passar a monitorar, a acompanhar a utilização dos leitos de UTI, tanto da rede do SUS, quanto da rede privada".

"Em uma fase inicial, talvez o sistema público tenha de socorrer a iniciativa privada. Mais adiante, quando mudar o perfil das pessoas que vão estar doentes, é possível que o SUS precise mais dos leitos privados. (...) Isso tudo está sendo analisado, e a gente está criando as propostas possíveis para ser implementadas", declarou Gabbardo.

Hoje, há uma oferta de 55.101 leitos de terapia intensiva no Brasil, sendo que 27.445 (49,8%) são do SUS. Segundo a pasta do governo federal, outros 3 mil leitos de UTIs volantes de instalação rápida foram alugados. Pelo menos sete em cada dez brasileiros dependem exclusivamente do SUS.

Poder público pode usar leitos privados

A lei de quarentena deu à União, aos estados e aos municípios poder para requisitar "bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa".

Mas o ministério da Saúde, apesar dos questionamentos da reportagem, não informou objetivamente um planejamento para que leitos e estruturas de hospitais privados sejam contratados.

No momento, os casos de covid-19 em São Paulo — estado com o maior número de mortes e de casos confirmados da doença (219 e 4.048, respectivamente, segundo dados divulgados ontem) — estão concentrados nos hospitais particulares. O SUS, no entanto, possui uma taxa alta de ocupação dos leitos de UTI que é anterior ao vírus; antes da pandemia, a média era de 78% na utilização dessas estruturas. A prefeitura da capital já informou que, em duas semanas, o sistema ficará sobrecarregado.

"Não é porque há um surto de coronavírus que as pessoas vão deixar de enfartar. Existe uma demanda para internação que não tem relação com o vírus. As pessoas continuam sofrendo acidentes, tendo pneumonias bacterianas. A demanda vai aumentar em cima do que nós temos já normalmente", diz um médico que atuou com pacientes diagnosticados com a covid-19, no Conjunto Hospitalar de Sorocaba. A cidade do interior já registrou 20 casos confirmados e três mortes, segundo a prefeitura local.

Quantos leitos estão sendo utilizados?

Se antes da doença, 78 em cada 100 leitos de UTI estavam ocupados, hoje, após a disseminação do coronavírus, não se sabe precisamente quantos estão sendo utilizados. Segundo o Ministério da Saúde, até ontem havia 25,6 mil pessoas hospitalizadas por conta de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) no país; dessas, 1.769 foram diagnosticadas com covid-19.

A pasta não informa quantos pacientes estão na UTI, e há evidências significativas de que existe uma grande subnotificação, ou seja, os números oficiais não correspondem à realidade.

"Estamos na expectativa de trabalhar com 150% da nossa capacidade", pontua Mirocles Campos Véras Neto, presidente da CMB (Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas).

Equipe médica com roupa de proteção trata paciente com coronavírus em UTI de hospital em Cremona, no norte da Itália - LA7 PIAZZAPULITA - LA7 PIAZZAPULITA
Equipe médica com roupa de proteção trata paciente com coronavírus em UTI de hospital em Cremona, no norte da Itália
Imagem: LA7 PIAZZAPULITA

A instituição representa 2.172 hospitais sem fins lucrativos em todo o país (sendo que 1.704 atendem o SUS) e responde por 50% de todo o atendimento da saúde pública. Os hospitais filantrópicos também são responsáveis por 60% dos tratamentos complexos do SUS (rádio e quimioterapia, por exemplo).

A CMB reúne 180 mil leitos e 16 mil leitos de UTI. Além das dívidas, que se arrastam há anos, os hospitais filantrópicos também passam por problemas de diálogo com os estados e municípios, em meio à pandemia do novo coronavírus. "Hoje, o direcionamento de EPIs, medicamentos e material é para os hospitais públicos, isso está gerando uma dificuldade muito grande para os filantrópicos", observa Véras Neto.

Ministério pediu estudo

Médicos e profissionais da saúde têm sido consensuais de que, em algum momento, haverá déficit nos leitos. A despeito de não ter um plano, o ministério tem conhecimento dessa possibilidade.

Junto à SVS (Secretaria de Vigilância em Saúde) da pasta, pesquisadores de Harvard traçaram projeções e mostraram que o país pode ter falta de leitos de UTI nas principais capitais já neste mês de abril.

A simulação mostra, levando em consideração dados da China, que as pessoas contaminadas pela covid-19 podem permanecer, em média, de 7 a 15 dias internadas em leitos comuns e 21 dias na UTI. Os estudiosos estimam que 5% dos contaminados terão de ser colocados em tratamento intensivo e, desses, metade vai precisar de ventilação mecânica. Quando utilizaram como parâmetro dados da Itália, o número de infectados que necessitará de internação em UTI chega a 12%.

Em um cenário "muito otimista", como descrito por um médico à reportagem, com um milhão de contaminados (0,5% da população), praticamente todos os leitos de UTI, públicos e privados, teriam de ser utilizados. Se dois milhões de pessoas se contaminarem, cenário ainda dentro de uma perspectiva otimista, cerca de 100 mil pessoas precisariam da UTI, e o país tem 58 mil leitos para casos graves.