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Mortalidade por doenças respiratórias é maior nos estados com mais covid-19

Visão do novo coronavírus em um microscópio - Getty Images via BBC
Visão do novo coronavírus em um microscópio Imagem: Getty Images via BBC

Igor Mello

Do UOL, no Rio

07/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Estados com mais casos confirmados de covid-19 no Brasil têm um histórico de alta letalidade para doenças respiratórias
  • Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará respondem por 73% das mortes provocadas pelo novo coronavírus no país
  • Segundo especialistas, as redes de saúde desses três estados são mais eficientes para classificar os casos de doenças respiratórias
  • Segundo dados obtidos pelo UOL, em 81% das mortes não há especificação de qual vírus ou bactéria infectou a vítima

Cruzamento de dados oficiais mostra que os estados com mais casos confirmados de covid-19 no Brasil têm um histórico de alta letalidade para doenças respiratórias.

Juntos, Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará respondem por sete em cada dez mortes provocadas pelo novo coronavírus no país — 404 dos 553 óbitos registrados até ontem. Também concentram 7.340 casos de coronavírus, cerca de 62% dos 12.056 confirmados pelo Ministério da Saúde.

Esses três estados registram também as maiores taxas de mortalidade do país por gripe e pneumonias — doenças com quadros semelhantes ao novo coronavírus.

Para chegar a essa conclusão, a reportagem do UOL cruzou dados do DataSUS referentes a mortes ocasionadas por dez categorias de gripes e pneumonias com dados populacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). As informações são de 2018, as mais recentes sobre mortalidade no país.

Naquele ano, 81.440 pessoas morreram por gripes e pneumonias no Brasil. Essas mesmas categorias são listadas pelo Ministério da Saúde no monitoramento da SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave).

O Rio de Janeiro foi o estado com maior taxa de letalidade por esse tipo de problema respiratório: 56,89 mortes a cada 100 mil habitantes, e 9.763 no total. Em seguida vem São Paulo, com 52,65 mortes a cada 100 mil habitantes e o maior número absoluto de vítimas (23.977). Já o Ceará tem taxa de mortalidade de 48,27 mortes a cada 100 mil habitantes e 4.381 casos.

Para especialistas ouvidos pelo UOL, diferentes fatores fazem com que essas três unidades da federação apresentem números mais altos. São importantes centros de movimentação de turistas brasileiros e estrangeiros, além de terem regiões metropolitanas populosas.

A principal causa, porém, é técnica: as redes de saúde dos três estados são mais eficientes para classificar corretamente os casos de doenças respiratórias, com menor subnotificação.

Alerta para as cidades pequenas

Médicos têm afirmado que, em sua forma grave, o novo coronavírus é mais agressivo do que outros vírus respiratórios, como o H1N1 — responsável pela pandemia de gripe suína em 2009.

Mesmo assim, análise de dados da startup TechTrials, especializada em análise de big data em saúde, mostra que essas doenças respiratórias têm um grande impacto sobre o sistema de saúde brasileiro. Apenas em 2018, elas resultaram em aproximadamente 645 mil internações hospitalares, com um tempo médio de permanência de seis dias.

Estudo da Universidade de Harvard, com base nos registros da pandemia na China, mostra que o tempo médio de internação para covid-19 fica entre 7 e 15 dias, chegando a 21 dias nos casos que precisam de leito de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

Embora os casos de coronavírus hoje estejam concentrados em grandes centros urbanos, os dados de mortalidade por doenças respiratórias mostram que é preciso ligar o sinal de alerta sobre a chegada da pandemia às pequenas cidades. É nelas em que há proporcionalmente mais vítimas.


Falta de diagnóstico adequado

Para Nilson do Rosário Costa, pesquisador da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública) da Fiocruz, a grande diferença nas taxas de mortalidade entre estados e municípios é explicada, em boa medida, por problemas na hora de registrar corretamente o motivo dos óbitos.

"Alguns estados conseguem produzir informações epidemiológicas mais refinadas. Isso é um alerta em relação aos dados da covid-19. Esses três [RJ, SP e CE] estão bem acima da média do país. A capacidade de produção de informação é um desafio crucial para o futuro imediato", avalia.

Na semana passada, a Open Knowledge Brasil fez um ranking de transparência dos estados na divulgação de dados relacionados à pandemia. Corroborando o que Rosário afirma, Rio de Janeiro e Ceará estão entre os três melhores.

Segundo o médico epidemiologista e infectologista Bruno Scarpellini, head de Evidência de Mundo Real e Economia em Saúde da Techtrials, o Brasil tem um problema grave na notificação dos casos desse tipo de doença respiratória, relacionado ao fato de que não há no âmbito do SUS uma fiscalização efetiva sobre a qualidade dos dados fornecidos pelos gestores.

"Não existe sistema centralizado e unificado, com cobrança de informações", explica. "O que mais me chama atenção é que poderíamos expandir e intensificar o sistema de vigilância epidemiológica de vírus respiratórios. Não só no Brasil, mas na América Latina como um todo. Precisa ampliar a testagem e incluir outros vírus respiratórios, com esse mesmo perfil do que é feito na China, Taiwan e Hong Kong, por exemplo".

Scarpellini exemplifica esse tipo de gargalo: "o sistema registra que foi feita uma internação por pneumonia viral, mas qual tipo de pneumonia viral? Não sabemos. Todo mundo que chegasse às emergências deveria ser testado".

Segundo os dados obtidos pelo UOL, em 81% das mortes não há especificação de qual vírus ou bactéria infectou a vítima.

A falta de informações precisas prejudica a capacidade do poder público de reagir ao avanço do coronavírus, aponta Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) em Ribeirão Preto. Segundo ele, o Ministério da Saúde e outras autoridades deveriam estar analisando esses dados em nível local, de municípios ou até mesmo de bairros, e não discutindo dados sobre o contexto do país ou de estados inteiros.

"A gente não pode ficar fazendo análise para o Brasil ou para estados inteiros. A sazonalidade de vírus respiratórios muda muito de município para município", diz. "A gente deveria estar fazendo testes em massa, inclusive para identificar áreas em que há necessidade de bloqueio total. O Rio de Janeiro já deveria estar bloqueando bairros, por exemplo."

Cortes prejudicaram capacidade de testar

Desde 2014, quando o país entrou em crise econômica, a União, os estados e os municípios vêm fazendo cortes nas verbas para saúde e desenvolvimento científico. Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, essa realidade causou problemas para ambas as áreas lidarem com a pandemia.

Nilson do Rosário Costa lembra que os cortes prejudicaram sobretudo estados e municípios, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás. Ele aponta que a capacidade de produção de informação do sistema de saúde nessas regiões, que já era insuficiente, ficou ainda mais prejudicada.

"Por força do processo de austeridade fiscal, de modo geral os estados e municípios reduziram muito suas despesas com saúde. São Paulo e alguns estados do Nordeste são algumas das poucas exceções, por isso têm melhores condições nesse momento. Temos uma situação de cataclisma sem informação adequada para tomar decisões", comenta o pesquisador da Fiocruz.

Domingos Alves aponta que o grande gargalo do Brasil não é o número de testes disponíveis, mas a capacidade de processá-los para obter os resultados em tempo hábil.

O professor da USP de Ribeirão Preto observa que nem mesmo casos de óbitos estão sendo diagnosticados tempestivamente. Ao menos 454 mortes em São Paulo estão sob investigação. No Rio de Janeiro esse número é de 75.

"O próprio ministro já admitiu que isso [não aplicar testes em massa] foi um erro de estratégia. Não fizemos testes porque não tínhamos locais para fazer. Nos últimos anos as verbas para pesquisa foram sucateadas", afirma.

"Hoje temos 16 mil testes represados no Instituto Adolfo Lutz. Como vamos fazer controle de epidemia desse jeito? Quem realiza esse tipo de trabalho é o bolsista, mesmo com os cortes feitos pelo governo. Essa é a primeira consequência concreta na vida da população dos cortes de investimentos em ciência", pondera.