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Coronavírus: hospital vítima de fraude pediu doações para combater covid-19

Empresas diferentes fizeram lances usando os mesmos computadores, aponta investigação - Divulgação/Hupe
Empresas diferentes fizeram lances usando os mesmos computadores, aponta investigação Imagem: Divulgação/Hupe

Eduardo Militão

Do UOL, em Brasília

15/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Polícia e MP fizeram buscas em empresas que vendiam material para exames no Rio
  • Lances de pregões saíam dos mesmos computadores, diz MP
  • Hospital vítima do esquema pede doações para combater coronavírus
  • Participação de todos os envolvidos ainda está em investigação
  • "Como ficou claro com o coronavírus, [corrupção] mata pela falta de dinheiro para a pesquisa científica adequada", diz procuradora

Enquanto a Polícia e o Ministério Público do Rio identificavam indícios de fraude em licitação para compra de materiais em exames de câncer, no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), a instituição recorria à comunidade para arrecadar dinheiro, com o objetivo de instalar 50 centros de terapia intensiva (CTIs) e enfrentar a pandemia de coronavírus.

Na manhã de ontem, foram cumpridos 12 mandados de busca em empresas e na casa de empresários suspeitas de formarem um conluio em pregões eletrônicos, para fornecer materiais que detectam câncer em pacientes. Os agentes da Polícia Civil do Rio usaram máscaras, luvas e álcool em gel para fazer a ação, como mostrou o UOL.

Os materiais para exames contra o câncer foram fornecidos ao Hupe, ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em contratos que somam R$ 1,9 milhão.

Em 28 de março, o hospital lançou campanha para buscar dinheiro e construir 50 CTIs, ao preço de R$ 100 mil cada um — ou seja, a meta era atingira R$ 5 milhões. "Esses leitos serão fundamentais para o suporte respiratório dos pacientes mais graves, aumentando suas chances de recuperação", disse o Hupe, em comunicado.

Contratos de R$ 1,9 milhão investigados

Três empresas já ganharam R$ 23 milhões em contratos com a UERJ e o Huep entre 2012 e 2020, mostram dados do Portal da Transparência do Rio analisados pelo UOL.

A promotora Bárbara Nascimento, do Ministério Público do Rio de Janeiro, afirmou que, até o momento, são investigados R$ 1,9 milhão desses contratos, relacionados a materiais usados em um reagente para tumores.

Ela preferiu não comentar se os outros contratos das empresas são suspeitos de fraude também. "As investigações ainda estão em andamento, portanto essa questão será melhor esclarecida em momento oportuno", disse Bárbara ao UOL, no final da tarde de ontem.

A promotora também não esclareceu se agentes públicos estão envolvidos na fraude. "A identificação de todos os envolvidos ainda se reveste de caráter sigiloso."

Segundo Nascimento, em tempos de coronavírus, a operação mostra que "a corrupção literalmente mata". "Mata nos corredores dos hospitais públicos pela falta de equipamentos e de profissionais de saúde, mata por causa dos exames que não são feitos para identificar as doenças, mata pela ausência de remédios para tratar os doentes."

Como ficou claro com o coronavírus, [corrupção] mata pela falta de dinheiro para a pesquisa científica adequada."
Bárbara Nascimento, promotora

Não houve concorrência entre empresas

A investigação da Polícia e do Ministério Público se concentra em três empresas: a Biodinâmica, a Cenaclin e a Newdiag. Bárbara disse que os lances do pregão eletrônico para venda de materiais para exames partiam de computadores com o mesmo protocolo de internet, os chamados "IPs".

Segundo a promotora, isso indica que os lances, "fisicamente, eram realizados do mesmo local".

"Não teria havido uma real concorrência entre empresas, na qual cada uma oferta o preço que entende adequado e o Poder Público opta pela melhor proposta", explicou.

Como somente elas participaram e 'uma sabia do lance da outra', o preço contratado podia ser manipulado pelas empresas."
Bárbara Nascimento, promotora

Endereço de internet de uma empresa pertence a outra

O endereço de internet da Cenaclin — cenaclin.com.br, que é utilizado apenas para correio eletrônico — está registrado em nome da Biodinâmica, mostram documentos do Registro.br, espécie de "cartório" da rede no Brasil.

Os endereços das três empresas investigadas que constam na Receita Federal mostram que elas funcionam a uma distância de 260 metros. É possível percorrer a distância em três minutos, segundo cálculos do aplicativo Google Maps.

O UOL solicitou esclarecimentos à assessoria do Hupe, mas não obteve resposta. A reportagem telefonou e mandou e-mails para os contatos indicados das três empresas. Não houve retorno.

A operação foi coordenada pelo Departamento Geral de Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e à Lavagem de Dinheiro (DGCOR), da Polícia Civil, e pelo Ministério Público fluminense. As ordens partiram da 14ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. A assessoria da Polícia Civil do Rio não prestou informações.

Veja os principais trechos da entrevista com a promotora Bárbara. A pedido dela, as perguntas e respostas foram feitas por escrito.

UOL - Qual é o foco da investigação?
Bárbara Nascimento - A investigação tem como foco supostas fraudes em pregões eletrônicos realizados no âmbito do Hospital Universitário Pedro Ernesto.

Como a fraude foi descoberta?
Ela teve início com uma representação da Controladoria Geral do Estado. Apurou-se que os lances ofertados pelas empresas supostamente concorrentes tinham origem em um mesmo IP (Internet Protocol), a indicar que fisicamente eram realizados do mesmo local. Ou seja, não teria havido uma real concorrência entre empresas, na qual cada uma oferta o preço que entende adequado e o Poder Público opta pela melhor proposta. Como somente elas participaram e "uma sabia do lance da outra", o preço contratado podia ser manipulado pelas empresas.

Existem agentes públicos envolvidos?
A identificação de todos os envolvidos ainda se reveste de caráter sigiloso.

Há outros contratos sob a lupa da polícia e da promotoria?
As investigações ainda estão em andamento, portanto essa questão será melhor esclarecida em momento oportuno.

Esses exames laboratoriais servem para detectar câncer. Qual o impacto disso na sociedade, em tempos em que o Brasil se convence da necessidade de ter um bom sistema de saúde?
A frustração do caráter competitivo da licitação lesa os cofres públicos porque a contratação se torna mais onerosa. O procedimento licitatório visa a promover a concorrência e reduzir o custo da contratação pelo ente público. Ao reduzir tal custo, libera-se recursos para aplicação em outros bens ou serviços também na área de saúde, otimizando a qualidade do serviço prestado para a população.

Os serviços prestados não têm a ver com o combate ao coronavírus, mas essa operação pode indicar alguma "lição" ou ponto de atenção para as autoridades, em época em que compras emergenciais, sem licitação, são feitas sob o justificável estado de calamidade e pandemia de covid-19? Quais lições e pontos de atenção?
Creio que a principal lição que podemos tirar é que a corrupção literalmente mata. Mata nos corredores dos hospitais públicos pela falta de equipamentos e de profissionais de saúde, mata por causa dos exames que não são feitos para identificar as doenças, mata pela ausência de remédios para tratar os doentes e, como ficou claro com o coronavírus, mata pela falta de dinheiro para a pesquisa científica adequada. Ao Ministério Público cabe cumprir as funções que lhe são atribuídas pela Constituição da República e se manter permanentemente vigilante, cobrando integridade, probidade e transparência na gestão de recursos públicos. Esses valores são pilares do Estado Democrático de Direito.

De um lado, o hospital pede doações para enfrentar o coronavírus. Do outro, é vítima de fraude. Como avalia?
Isso foge ao escopo da investigação.