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Visão turva e taquicardia: doentes crônicos contam os efeitos da cloroquina

Originalmente usado contra malária, cloroquina é ministrada a pacientes graves de covid-19 no Brasil mesmo sem eficácia comprovada - Rafael Henrique/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
Originalmente usado contra malária, cloroquina é ministrada a pacientes graves de covid-19 no Brasil mesmo sem eficácia comprovada Imagem: Rafael Henrique/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

Arthur Sandes

Do UOL, em São Paulo

21/04/2020 04h01

Náusea, vômitos, alteração na visão, taquicardia e problemas no rim: esses são alguns dos efeitos relatados por quem usa cloroquina e similares para doenças crônicas como lúpus. A droga vem sendo testada preliminarmente no tratamento da covid-19 e as consequências de seu uso são, justamente, um dos pontos de atenção.

"Às vezes eu vejo embaçado, e na claridade os meus olhos não se dão, vejo as luzes estouradas. A taquicardia não é frequente, mas hoje mesmo eu senti. Aí me deito, e aos poucos vai passando", conta Layane Pinheiro, 23, estudante que mora em Fortaleza. Ela toma Reuquinol (hidroxicloroquina) desde que foi diagnosticada com lúpus, uma doença autoimune, há quase dois anos.

Entre os efeitos colaterais, a náusea já foi mais comum, mas Layane ainda tem as alterações na visão e taquicardia. "Eu sempre tive [efeitos colaterais], desde que comecei a tomar. Quando o médico passa, já fala de tudo o que pode dar e faz os exames oftalmológicos", afirma.

A própria bula do sulfato de hidroxicloroquina adverte que as dores abdominais e a náusea são efeitos colaterais "muito comuns", enquanto diarreia e vômito são "comuns". Os pacientes também devem fazer exames oftalmológicos frequentes porque "alterações na retina (e distúrbios visuais) podem progredir mesmo após o término da terapia" com a droga.

Layane Pinheiro precisa ir a um oftalmologista ao menos uma vez por ano, mas a próxima consulta, que seria neste mês, deve ser cancelada por causa da pandemia de covid-19. "O hospital não quer de jeito nenhum que a gente vá sem necessidade extrema", explica.

Abandonou a hidroxicloroquina pelos efeitos

Elisandra Favero, 48 anos, precisou abandonar o Reuquinol justamente pelos efeitos colaterais. Ela descobriu o lúpus há oito anos e tomou o remédio por cerca de seis meses até mudar o tratamento. "Comecei a ter reações muito complicadas", conta, listando os efeitos colaterais: "Tive náusea, vômito, muito enjoo, e por isso não conseguia comer. Mal tinha saliva, minha língua grudava na boca, e eu emagreci bastante", recorda.

Ela mora em Campo Grande (MS) e é técnica em enfermagem, uma profissão quase inviável se sua visão fosse seriamente deteriorada pela cloroquina.

"Não tome como vitamina C, porque não é"

Flávia Moreira, atriz de 45 anos, já usou o sulfato de hidroxicloroquina por cerca de quatro meses por causa do lúpus. Parou após quase ter que operar. "Logo de começo eu passei a ter muita dor do lado direito [do tronco]. Fui ao médico, fiz exames e notaram uma mancha no meu fígado. Os médicos queriam operar, tirar esta parte, afinal é um órgão que se regenera. Mas eu não quis", conta.

Ela argumentou que o problema podia ser efeito colateral do remédio, mas não foi ouvida. Por isso negou-se a fazer a cirurgia e também abandonou o medicamento. Nunca mais sentiu a tal dor. Flávia hoje toma outros remédios e alerta para os riscos da cloroquina. "Não adianta tomar achando que é vitamina C, porque não é"

A bula do Plaquinol, medicamento tomado por Flávia, adverte que a droga "distribui-se amplamente pelo organismo, sendo acumulada nas hemácias e em alguns órgãos como os olhos, rins, fígado e pulmões, onde pode se armazenar por tempo prolongado". Entre os efeitos colaterais, as alterações dos testes de função do fígado são considerados "incomuns", e a frequência de redução grave da função do órgão (insuficiência hepática fulminante) é "desconhecida".

Tratada como cura, cloroquina sumiu das farmácias

"Fiquei desesperada quando a notícia saiu, porque o pessoal estava comprando e tomando como se fosse um remédio qualquer, e não é", preocupa-se Layane Pinheiro. Em Fortaleza, a corrida desenfreada pela cloroquina obrigou a família dela a buscar o remédio a 200 quilômetros de distância.

"Quando as pessoas ficaram sabendo da cloroquina, passou nos jornais, acabou em todas as farmácias. Eu só consegui encontrar em Boa Viagem (CE)", afirma, antes de alertar: "É muito perigoso tomar sem acompanhamento médico. É alarmante."

Na posição de enfermeira, Elisandra reforça o apelo contra o uso inadvertido do medicamento. "É um pouco perigoso, não pode ser tomado simplesmente indo na farmácia e comprando. Cada um tem um sistema, o corpo reage de uma forma. É perigoso e precisa de acompanhamento", diz.

Demanda e fake news crescem

A busca por cloroquina e hidroxicloroquina aumentou desde que as substâncias passaram a ser objeto de estudo no combate ao novo coronavírus. A cautela científica tem sido atropelada pelas fake news, e até o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se deslumbrou com os medicamentos e já os tratou como cura, ainda que não haja consenso científico neste sentido.

O Ministério da Saúde orienta a administração do remédio a pacientes de covid-19 que estejam internados e em estado grave, mas admite ainda estar "monitorando estudos de eficácia e segurança". Justamente por isso a pasta avisa que "em qualquer momento, poderá modificar sua recomendação quanto ao uso, baseado na melhor evidência disponível".

O UOL procurou as três maiores fabricantes de cloroquina no Brasil, a APSEN (que produz o Reuquinol), a Sanofi (Plaquinol) e a EMS (genérico). Todas as três afirmam não haver desabastecimento dos medicamentos nas farmácias, mas só a última detalhou sua produção de sulfato de hidroxicloroquina.

Em março, a EMS fabricou 1,38 milhão de comprimidos, mais do que o dobro da média mensal de antes da pandemia (660 mil). O tamanho da produção foi mantido para este mês de abril; só não é maior porque, "para tanto, depende da disponibilidade do fornecedor do insumo".

OMS e entidades brasileiras pregam cautela

No último dia 13, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou cautela quanto ao uso da cloroquina contra o novo coronavírus, mas o incluiu em uma bateria de testes pelo mundo. É um procedimento padrão: não anunciar como solução milagrosa, mas estudar em laboratório para ver se funciona. Segundo o diretor de operações da agência, Michael Ryan, ainda não há "evidências empíricas" da eficácia do medicamento.

É apenas o primeiro passo. Se aprovada em diversas condições em laboratório, a cloroquina em seguida precisa ser testada em grupos controlados de pacientes de covid-19. Os resultados de todas estas pesquisas precisam ser comparados, e o remédio deve se provar eficaz para só então poder ser usado em larga escala.

Nove entidades médicas nacionais assinaram documento que também prega cautela quanto ao uso de cloroquina em pacientes de covid-19. "Em relação ao tratamento, até o momento não há disponível um medicamento que tenha demonstrado eficácia e segurança", apontam a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo) e outras sete instituições.