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19 das 27 secretarias de saúde omitem dados raciais em balanços de covid-19

19.jun.2020 - Movimentação no Mercadão de Madureira, centro de comércio popular, no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro - Dikran Junior/AGIF
19.jun.2020 - Movimentação no Mercadão de Madureira, centro de comércio popular, no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro Imagem: Dikran Junior/AGIF

Do UOL, da Folha de S.Paulo, de O Estado de S. Paulo, do EXTRA, do G1 e de O Globo

21/06/2020 07h00

Apenas oito das 27 secretarias estaduais de saúde do Brasil informam em seus boletins os dados raciais das pessoas contaminadas ou dos óbitos causados pela covid-19. Dezenove pastas não têm ou não divulgam estas informações, o que é uma falha grave segundo especialistas ouvidos pelo consórcio de veículos de imprensa do qual o UOL faz parte.

Os 26 estados e o Distrito Federal foram indagados pelas seis publicações sobre a qualidade de seus números. Foram perguntados os critérios para divulgação, como os números eram apresentados, se a idade, a cor e o sexo das vítimas eram considerados, a ocupação das UTIs públicas e privadas e se a atualização dos números de testes feitos era constante —neste quesito, 12 secretarias não divulgam a quantidade dos exames ainda sem resposta.

Todas as secretarias têm painéis de divulgação e atualizam os dados ao menos uma vez por dia —os horários, no entanto, não seguem padrão: eles aparecem entre 10h e 20h. Municípios, idade e sexo das vítimas também são contemplados nos 26 estados e no Distrito Federal. Cinco estados não divulgam a quantidade de leitos totais de UTIs disponível.

"Campo não obrigatório"

Dois estados apontaram a não obrigatoriedade como fator da superficialidade dos dados raciais coletados: São Paulo e Goiás. Ambos argumentam que as informações "não constituem um campo obrigatório de preenchimento" nos formulários. "A informação é pouco preenchida", acrescenta a secretaria goiana.

As secretarias municipais de saúde usam dois sistemas online para registrar novos casos de covid-19, o e-SUS e o Sivep-Gripe. Nenhum deles trata o campo "raça/cor/etnia" como obrigatório.

"O dado é coletado, é um campo do sistema de notificação. Mas não é um campo obrigatório, então seu preenchimento é muito falho, explica Fernanda Campagnuci, da Open Knowledge, uma organização sem fins lucrativos que promove conhecimento livre.

Quando a sociedade cobra, e os governos orientam na ponta, isso pode ser melhorado."
Fernanda Campagnuci, da Open Knowledge

Portaria do Ministério da Saúde, de 2017, estabelece que "a coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde". A pasta divulgou nota informando que "estão sendo feitos ajustes" para que o campo raça/cor "seja de preenchimento obrigatório" a partir desta semana.

Critérios variados

Os critérios sobre cor ou raça dos que divulgam em seus boletins também não são unificados. O Amazonas, por exemplo, informa que pretos e pardos correspondem a 74% das pessoas diagnosticadas com a doença e 86,8% das mortes.

Os outros estados que divulgam dados raciais são Alagoas, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul e Rondônia, mas sem qualquer padrão e com graus variados de precisão. O Rio Grande do Norte aponta como "não informada" a raça de cerca de 22% do total de infectados.

Entre os 19 estados que não divulgam os dados raciais, as justificativas para a omissão são das mais variadas. Por meio de uma portaria, em abril a Secretaria de Saúde do Distrito Federal proibiu a divulgação de "informações pessoais das vítimas".

Já a pasta do Mato Grosso do Sul alega ter os dados mas não mostrá-los porque a plataforma "está em construção".

A Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro diz "não haver determinação" para que sejam disponibilizados os dados sobre raça; a de Minas Gerais diz que "analisa a possibilidade" de divulgar tais dados; enquanto a do Amapá responsabiliza os municípios, "que nem sempre coletam".

Por sua vez, o Acre informa que tais dados são fornecidos "apenas nos testes rápidos, e não nos testes RT-PCR", os específicos de covid-19, por isso evita divulgar a informação incompleta.

Dados para o enfrentamento da pandemia

Especialistas ouvidos pelo consórcio afirmam que, se os dados fossem bem coletados e interpretados, seriam valiosos no enfrentamento da pandemia.

"Quantos mais dados se tem, melhor. Se no Rio de Janeiro tivéssemos preenchido de forma correta raça ou cor, as informações populacionais indicariam os bairros com predominância de negros ou brancos. Indiretamente, seria possível estimar onde estariam os focos da doença", exemplifica o epidemiologista Diego Xavier, que monitora a evolução da pandemia e lida com dados diariamente no Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz, no Rio de Janeiro.

Manoel Galdino, diretor-geral da ONG Transparência Brasil, cobra clareza nos dados públicos, essenciais para a criação de políticas públicas e para o enfrentamento da desigualdade.

A falta de preocupação ao coletar esses dados mostra como os governos estaduais não estão preocupados em combater o racismo."
Manoel Galdino, diretor-geral da ONG Transparência Brasil

Os especialistas apontam que saber a raça ou cor das pessoas contaminadas poderia acelerar a resposta dos governos ao avanço da pandemia. Se as secretarias de saúde ou o Ministério da Saúde conhecessem de fato o perfil populacional de quem é atingido pela covid-19, conseguiriam encontrar soluções mais bem adaptadas a cada realidade.

Emanuelle Góes, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz Bahia, afirma que há tempos são cobradas essas informações que, em uma pandemia, se tornam urgentes.

[Coletar e divulgar dados raciais] Tem a ver com pensar política de saúde com equidade e com superação das desigualdades."
Emanuelle Góes Fiocruz Bahia,

Números escondidos ou ignorados?

O infectologista Hélio Bacha, do Hospital Albert Einstein, vê na omissão dos dados uma "tentativa de esconder o preconceito racial". Para ele, o combate à covid-19 está relacionado ao combate à desigualdade, e ambos só seriam efetivos se os governos primeiro conhecessem o problema que precisam enfrentar.

Esconde-se o racismo tempo inteiro, inclusive tem sido um tom, uma ideologia que é até defendida por muita gente. É óbvio que as pessoas deveriam ter direitos iguais independentemente de raça, mas o que se faz nestes momentos é tentar esconder as diferenças com base em um discurso torto."
Hélio Bacha, infectologista

Para o epidemiologista Diego Xavier, no entanto, a falta de dados pode estar diretamente ligada à coleta de informações. "Não acredito que as secretarias estejam escondendo, mas que a qualidade dos dados é mesmo ruim. Tanto a qualidade quanto o volume do registro tendem a diminuir muito durante uma pandemia", aponta.

Mesmo nas oito secretarias que divulgam os dados raciais, a falta de padrão é um problema, explica Manoel Galdino, da ONG Transparência Brasil. "É o Ministério [da Saúde] quem deveria coordenar, criar um protocolo padrão. Cada estado faz de um jeito, cada município, cada posto de saúde?"

Nesta semana, o UOL revelou que o Ministério da Saúde excluiu registros de notificações de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), que incluem os casos de covid-19, da base de dados disponibilizada publicamente pela pasta.

Veículos de imprensa unidos pela transparência

Em resposta à decisão do governo Jair Bolsonaro (sem partido) de restringir o acesso a dados sobre a pandemia de covid-19, os veículos de comunicação UOL, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, G1 e Extra formaram um consórcio para trabalhar de forma colaborativa desde a semana passada e assim buscar as informações necessárias diretamente nas secretarias estaduais de Saúde das 27 unidades da Federação.

O governo federal, por meio do Ministério da Saúde, deveria ser a fonte natural desses números, mas atitudes recentes de autoridades e do próprio presidente colocam em dúvida a disponibilidade dos dados e sua precisão.

*Participaram desta apuração: Arthur Sandes e Wanderley Preite Sobrinho (UOL), Flávia Faria e Diana Yukari (Folha), Daniel Bramatti (Estadão), Renato Grandelle e Gabriela Oliva (O Globo/EXTRA) e Clara Velasco, Gustavo Petró e Ricardo Gallo (G1),