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SP usar todo o estoque da CoronaVac para 1ª dose é arriscado, dizem médicos

Estudos sobre a CoronaVac consideraram aplicação da segunda dose com intervalo de até quatro semanas - 27.jan.2021 - Amanda Perobelli/Reuters
Estudos sobre a CoronaVac consideraram aplicação da segunda dose com intervalo de até quatro semanas Imagem: 27.jan.2021 - Amanda Perobelli/Reuters

Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo*

29/01/2021 04h00

A proposta do governo de São Paulo para mudar a orientação do Ministério da Saúde de aplicação das vacinas contra a covid-19 é avaliada por especialistas como "arriscada" e "perigosa".

A gestão de João Doria (PSDB) fez uma consulta ao órgão federal sobre utilizar todo o estoque atual da CoronaVac para aplicar a primeira dose sem fazer uma reserva para a aplicação da segunda. Ainda não há resposta para o pedido. A prática já é adotada com a vacina de Oxford, conforme orientação do próprio ministério.

Procurado pelo UOL, o Ministério da Saúde alertou que "é imprescindível que todas as unidades de saúde da Federação cumpram as diretrizes para que o país tenha doses suficiente para imunizar, com as duas doses previstas, este primeiro ciclo da campanha de vacinação —e garanta, desta forma, uma imunização eficaz no país".

"Não há, até o momento, evidências científicas de que a ampliação desse intervalo irá oferecer a proteção necessária à população."

Estratégia para imunizar mais pessoas

Segundo o coordenador do Centro de Contingência do governo paulista contra a covid-19, Paulo Menezes, a proposta permitiria que, em vez de estocadas, doses da CoronaVac já sejam utilizadas, ampliando a população imunizada.

Na capital, a Prefeitura de São Paulo já decidiu utilizar todo o lote já disponível para a primeira dose, sem fazer reserva para o reforço.

"Seria possível imunizar o dobro de pessoas rapidamente com essas vacinas que já estão aqui", diz Menezes ao UOL. No primeiro envio da vacina, São Paulo recebeu quase 1,4 milhão de doses, que, a princípio, seriam destinadas, para cerca de 700 mil pessoas.

A questão que está colocada é bastante delicada. Acho que são 700 mil doses guardadas aqui no estado de São Paulo para segunda dose. Se for possível, se for autorizado utilizar rapidamente essas doses, a cobertura vacinal é significativamente ampliada rapidamente
Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência

Apesar da fala de urgência, até o início da tarde de ontem, o estado de São Paulo registrava cerca de 270 mil pessoas vacinadas em quase duas semanas após o início da imunização. Ou seja, não havia chegado nem à metade do que se pretende vacinar se forem seguidas as recomendações do ministério, de reservar a segunda dose.

Incerteza sobre um novo lote

O problema apontado por especialistas em imunização é que, ainda sem a chegada do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) para o Instituto Butantan produzir mais doses da CoronaVac, não há certeza de que as pessoas receberão o esquema vacinal completo dentro do prazo. A previsão é que o IFA chegue ao país na semana que vem.

"Qual é a segurança de que se terá o produto?", questiona Juarez Cunha, presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). "Por um lado, você teria a possibilidade de ampliar a proteção de muito mais gente talvez com sucesso. Mas é isso, seria tudo no 'talvez seja bom', 'talvez tenha doses'. Nós ficamos inseguros."

Consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Leonardo Weissmann concorda. "É uma estratégia arriscada, pois não existe certeza de quando haverá um novo lote disponível", diz.

A dúvida é se a gente tem que ser conservador ou ousar mais pela situação da pandemia. Eu não sou dono da verdade, mas esse assunto terá opiniões bem diferentes. Não é fácil
Juarez Cunha, presidente da SBIm

É uma estratégia perigosa, com resultados incertos. Jamais se pensaria nessa possibilidade se a situação [da pandemia] não fosse tão grave
Leonardo Weissmann, médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e consultor da SBI

E se faltarem doses?

De acordo com Menezes, o Butantan indicou ao governo de São Paulo que o risco de haver problemas para a produção destinada à segunda dose é "baixo". O fato de haver essa possibilidade, porém, é criticado por médicos.

"É o famoso você contar com o ovo que está dentro da galinha", diz o virologista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Flávio Guimarães da Fonseca, presidente da SBV (Sociedade Brasileira de Virologia). "Eu, pessoalmente, acho arriscado, porque a gente ainda não tem certeza de que vai acontecer."

Intervalo esticado?

Mas, caso haja dificuldades de abastecimento, o governo paulista diz crer que não haverá problemas para a imunização. "A avaliação científica é que, provavelmente, não seria um problema ter um período maior. Até 40 dias, já ocorreu, inclusive, se não estou enganado, no próprio ensaio clínico", diz o coordenador do Centro de Contingência.

Menezes também lembra haver tempo para que não haja problemas de abastecimento, já que a segunda dose para quem recebeu a primeira deve ser aplicada daqui a cerca de duas semanas ainda. Em São Paulo, o intervalo mínimo adotado atualmente é de 21 dias.

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Paulo Menezes é coordenador do Centro de Contingência
Imagem: 7.jul.2020 - Reprodução

No plano de imunização, o Ministério da Saúde recomendou que a segunda dose seja aplicada em um intervalo entre duas a quatro semanas após a primeira, como indicou o laboratório Sinovac, parceiro do Butantan. Questionado, o instituto não respondeu a demanda do UOL. Inicialmente, o Butantan recomenda um espaçamento de 28 dias entre as doses.

"O intervalo de 14 dias utilizado no ensaio clínico foi mais em função de necessidade de resposta rápida", diz Menezes. "E também há argumentação, do ponto de vista biológico, de que outras vacinas que usam a mesma metodologia não só permitem um espaçamento maior [entre as doses] como pode até ser mais eficiente."

O coordenador do Centro de Contingência diz que dados que comprovem isso a respeito da CoronaVac deverão ser analisados em breve.

Sobre o intervalo, o ministério tem reforçado a importância de se seguir o esquema recomendado, com intervalo de duas a quatro semanas para o reforço da CoronaVac.

Dados limitados e pouca margem de segurança

Para Fonseca, presidente da SBV, é um "risco" se um eventual atraso implicar no aumento do intervalo entre doses. "Acho extremamente arriscado alterarmos os protocolos que já foram estabelecidos", diz. "Essa não me parece uma alternativa apropriada, não."

Cunha, da SBim, lembra que também não há dados sobre qual seria a eficácia da CoronaVac após a primeira dose. "Isso pode levar a um descrédito da vacina, o que seria catastrófico, não só para essa, como para qualquer outra". Sabe-se da proteção de 50,38% após o esquema vacinal completo.

"Nós já estamos trabalhando em uma condição de excepcionalidade e com muita pouca margem de segurança", complementa Fonseca. "Essas vacinas foram autorizadas para uso emergencial. Os estudos da fase 3 estão incompletos, a quantidade de dados é limitada."

Microbiologista e coordenador do IQC (Instituto Questão de Ciência), Luiz Gustavo de Almeida diz que esticar muito o intervalo da CoronaVac é "tatear no escuro". "Não que vá perder [a imunização da primeira dose], mas é muito arriscado passar mais do que 40 dias. A gente não sabe, fica até difícil comentar o que vai acontecer. Porque seria fazer um experimento."

Cunha reforça, que independentemente do intervalo, a segunda dose continuará a ser necessária e lembra que, independentemente do intervalo, "nunca se perde a dose anterior" caso a segunda dose não seja aplicada dentro do prazo.

"Não precisa reiniciar. Você só completa o esquema. O que sempre se coloca é que, quanto mais tempo demorar, mais tempo vai levar para conseguir para ter aquela proteção como demonstrada na pesquisa clínica", diz o presidente da SBIm.

* Colaborou Eduardo Militão, do UOL, em Brasília