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RJ: Cientistas veem incertezas e criticam anúncio de Carnaval sem restrição

Foliões no desfile do Cordão do Bola Preta, um dos blocos mais tradicionais do Rio, em 2020 - Fotoarena/Estadão Conteúdo
Foliões no desfile do Cordão do Bola Preta, um dos blocos mais tradicionais do Rio, em 2020 Imagem: Fotoarena/Estadão Conteúdo

Igor Mello

Do UOL, no Rio

05/10/2021 04h00

Três epidemiologistas ouvidos pelo UOL veem com preocupação o anúncio de que o Rio de Janeiro terá um Carnaval sem restrições por conta da covid-19. Na última sexta-feira (1º), o prefeito Eduardo Paes (PSD) disse que a festa ocorrerá normalmente na cidade.

Os cientistas alertam para o eventual risco de surgimento de novas variantes, questionam o tempo de proteção proporcionado pelas vacinas e criticam a comunicação adotada por Paes. Ele se baseia em decisão do Comitê Científico da prefeitura —que tem caráter consultivo— de vincular a reabertura das atividades econômicas ao percentual de população adulta vacinada na capital.

Segundo Paes, praticamente todos os cariocas adultos estarão completamente imunizados até meados de novembro. O prefeito também usou esse dado para defender o passaporte de vacina. A medida foi alvo de uma guerra de liminares com bolsonaristas, mas foi respaldada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na semana passada.

"Quando a gente estabelece o passaporte da vacina, a gente diz ao turista responsável que ele pode vir com tranquilidade. E nós estamos também dizendo para aqueles que não se vacinaram que, por favor, não venham, porque não serão bem-vindos", afirmou Paes.

No sábado (2), Paes afirmou ao jornal O Globo que não há chance de haver restrições —como distanciamento social ou uso de máscaras— durante a festa, que ocorrerá no começo de março.

"Fica até ridículo, quem é que vai ficar fazendo distanciamento no Carnaval, né? 'Mantenha 1 m de distância'. Eu sou o primeiro a desrespeitar", opinou Paes.

Cenário incerto

Os três especialistas ressaltam que afirmar hoje que haverá Carnaval sem restrições em março é uma posição bastante otimista e sem nenhuma garantia de que se concretizará.

Para eles, o momento pede que a prefeitura se prepare para realizar a festa, mas continue estimulando a vacinação e a adoção das medidas sanitárias para conter a epidemia o quanto antes.

"Desconhecemos o tempo de proteção da vacina, mas já sabemos que idosos precisam de doses de reforço. Não sabemos o comportamento da proteção da vacina em adultos jovens, que foram vacinados a partir do meio do ano. Também não temos como saber se haverá uma nova variante que escape da proteção da vacina", diz o epidemiologista Renato Kfouri.

Para ele, que é diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, "é um exercício de futurologia garantir que o cenário epidemiológico vai estar assim ou assado".

A epidemiologista Joana D'Arc Gonçalves diz que o cidadão deve avaliar os riscos que corre —como sua vulnerabilidade à doença por conta de comorbidades ou o fato de morar com idosos— mesmo que a prefeitura não exija restrições no Carnaval.

Segundo ela, não é possível garantir hoje que a covid-19 estará controlada na cidade.

"O governo tem que garantir a proteção coletiva. Se não for possível, o mínimo que devemos fazer é adotar as medidas que já sabemos serem eficazes: usar máscara e, se possível, manter o distanciamento", alerta. "Ou então vamos esperar um aumento de casos e pessoas em estado grave após o Carnaval."

A médica Gulnar Azevedo, professora de epidemiologia da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), alerta que a aglomeração de milhões de pessoas em blocos, festas e na Sapucaí pode provocar um novo pico da doença, especialmente se houver o surgimento de novas variantes mais eficazes em escapar da imunidade produzida pelas vacinas.

"É difícil prever o futuro com um vírus como esse. A gente corre o risco de ter um recrudescimento. É uma festa que não dura só um dia, com muito deslocamento das pessoas no transporte público, muita bebida, muita aglomeração. É o risco do Réveillon [que provocou a segunda onda no começo de 2021] potencializado."

No entanto, Gulnar pondera que, se a curva continuar desacelerando e pudermos entender que a pandemia está controlada, é possível realizar o Carnaval.

Críticas à comunicação

Os especialistas dizem acreditar que esse tipo de declaração de Paes pode servir como incentivo para que a população abandone as medidas não-farmacológicas —como o distanciamento social e o uso de máscaras— já no atual momento, quando a taxa de totalmente imunizados é de apenas 56,5% das pessoas com mais de 12 anos na cidade do Rio.

Não se sabe ao certo qual percentual garantirá a imunidade de rebanho, mas diante do alto contágio da variante delta há cientistas projetando que essa proteção só seja atingida com a vacinação de algo próximo de 90% da população.

"Uma autoridade pública dizer que não cumpriria qualquer que seja o regulamento não é bom. É uma declaração forte e espelha muitas vezes o que sua população reflete sobre isso. É descabido a meu ver. Se as medidas existirem no Carnaval, é porque serão necessárias. Não é porque se quer. Isso não é papel de um chefe do Executivo", critica o Renato Kfouri.

Joana D'Arc Gonçalves ressalta que autoridades como Paes devem aproveitar a exposição que têm na imprensa para orientar corretamente a população.

"Esse tipo de declaração prejudica e muito, porque [o prefeito] tem que orientar a população a saber como se comportar. Tem que orientar, por exemplo, que se você quer participar do Carnaval, mas tem algum sintoma tem que ficar em casa. Tem que orientar para que a população se sinta segura para participar de determinadas atividades."

Precauções com turistas

Outro ponto citado pelos especialistas é a preocupação adicional com o grande fluxo de turistas que entram e saem da cidade no período do Carnaval. Segundo eles, é preciso haver medidas específicas para esse público —que pode inclusive trazer novas variantes para a cidade.

"Outros países, quando recebem turistas, checam se a pessoa está vacinada, pedem teste PCR e monitoram se está fazendo quarentena. A gente precisava ter um sistema mais organizado de monitoramento das pessoas que vão chegar ao país ou que vão vir de outro estado", diz Joana D'arc.

Já Gulnar Azevedo defende que o passaporte de vacina seja mantido durante a festa. "Seria prudente, sim, se a gente ainda estiver nesse ciclo de novas variantes e se a curva epidêmica não estiver muito baixa. É um estímulo para que as pessoas se vacinem."

Procurada para comentar as declarações de Paes e as críticas dos especialistas, a Prefeitura do Rio de Janeiro afirmou, em nota, que "trabalha para que tanto o Réveillon quanto o Carnaval ocorram em sua plenitude sem a necessidade de qualquer medida restritiva. Mas somente será possível realizá-los desta maneira com a população vacinada e a pandemia de Covid-19 controlada".