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Favelas do Rio lideraram casos de covid durante avanço da variante delta

Faixa colocada por moradores incentivou o isolamento social na favela da Rocinha, em maio de 2020 - Jorge Hely/ FramePhoto/ Folhapress
Faixa colocada por moradores incentivou o isolamento social na favela da Rocinha, em maio de 2020 Imagem: Jorge Hely/ FramePhoto/ Folhapress

Igor Mello

Do UOL, no Rio

10/10/2021 04h00

Levantamento feito pelo UOL com dados da SMS (Secretaria Municipal de Saúde) mostra que as favelas do Rio de Janeiro foram os locais que concentraram mais casos de covid-19 durante o avanço da variante delta na cidade.

De acordo com os dados de casos confirmados por CEP (Código de Endereçamento Postal), 17 dos 20 endereços com mais registros da doença entre junho e setembro —período em que a nova cepa do coronavírus chegou ao Rio e se tornou hegemônica— ficam em favelas (veja o mapa abaixo).

Espalhados por todas as regiões da capital fluminense, os endereços incluem grandes aglomerados como o Rio das Pedras, na zona oeste, a Rocinha, na zona sul, e o Complexo do Lins, na zona norte.

Dos dez endereços com mais casos, somente três deles —Pedra de Guaratiba, na zona oeste, e trechos da rua do Jardim Botânico, na zona sul— não têm comunidades.

Ranking dos 10 locais com mais casos

Rua do Amparo (Rio das Pedras): 787 casos
Rua Jardim Botânico - parte (Jardim Botânico): 359
Estrada do Taquaral (Taquaral - Senador Camará): 310
Rua Soldado Eliseu Hipólito (Pedra de Guaratiba): 278
Rua Carlos Seidl (Parque Alegria - Caju): 206
Estrada do Gericinó (Catiri - Bangu): 206
Rua Saint Roman (Pavão-Pavãozinho): 198
Estrada do Itararé (Complexo do Alemão): 197
Rua Jardim Botânico - parte (Jardim Botânico): 194
Estrada do Itanhangá (Muzema): 189

No mapa abaixo, os endereços localizados em favelas estão representados em vermelho, e os locais fora de favelas estão em azul.

Segundo Gabriel Siqueira, diretor de Políticas Públicas da Faferj (Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro), as comunidades continuam sendo as mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus por uma mistura de suas condições urbanísticas e socioeconômicas com a falta de políticas de prevenção específicas para essa realidade.

"São locais de alta densidade demográfica com acesso à saúde e saneamento básicos muito precários. Também há pouco acesso à informação", explica. "Várias comunidades tiveram menos acesso à vacinação por conta dessa falta de informação e burocracia."

Siqueira cita um episódio que presenciou no Complexo do Lins, no qual pessoas não estavam conseguindo se vacinar por falta de comprovante de residência —em muitas favelas do Rio, os moradores não recebem correspondências em suas casas e dependem de documentos emitidos por associações de moradores.

"Quando o morador chegou, pediram comprovante de residência na clínica da família do Lins. A associação de moradores cobra R$ 10 para emitir o comprovante, porque o Estado não dá nada para essas comunidades. O cara desceu o morro, foi lá se vacinar e precisa de um comprovante para se vacinar? Isso mostra o quão complexo foi a vacinação em várias comunidades."

Nesta sexta-feira (8), a cidade do Rio tinha 85,7% da população com 12 anos ou mais com uma dose de vacina, e 57,6% com duas doses ou dose única.

Favelas já têm 7.000 mortes, diz Fiocruz

Dados compilados pelo Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, mantido pela ComCat (Comunidades Catalisadoras) com a participação da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), mostram que as comunidades cariocas já tiveram ao menos 7.057 mortes —20,5% de todos os óbitos na cidade— e 102.338 casos confirmados do novo coronavírus desde o início da pandemia —21,1% em relação ao total de registros na capital.

De acordo com Renata Gracie, pesquisadora do Icict (Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde)/Fiocruz e uma das responsáveis pelo projeto, a exposição no transporte público é um dos principais fatores de contaminação dos moradores de favela.

"Muitas pessoas que residem nas áreas de favela têm que trabalhar de maneira presencial. E elas não vão de carro ou de Uber, vão de trem, metrô ou ônibus. Com a pandemia, os serviços de transporte não ficaram vazios, porque diminuíram o número de viagens. Esse fator acaba impulsionando mais a disseminação mais constante do vírus", pontua.

No final de setembro, o UOL mostrou como os trens metropolitanos do Rio se transformaram em um ambiente ideal para a disseminação do novo coronavírus. Sem fiscalização, os vagões vivem repletos de pessoas sem máscara aglomeradas. Denúncias do mesmo tipo também são frequentes no sistema de BRT, nos ônibus e no transporte alternativo.

Combate à desinformação

Renata Gracie também menciona a desinformação como um problema grave nas favelas, afetando principalmente a vacinação.

"As notícias falsas sobre as vacinas permanecem circulando. Esse é um problema que a gente precisa resolver", conclui.

Nas próximas semanas, a Faferj irá retomar, em parceria com a Fiocruz, o aplicativo Favela Viva, voltado a fornecer informações sobre a covid-19 para os moradores de comunidades. O combate a fake news será um dos focos da iniciativa.

A médica Lígia Baía, professora de Saúde Coletiva da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que as autoridades responsáveis pela vacinação deveriam organizar campanhas nessas áreas para aumentar a imunização da população mais vulnerável.

"Hoje não temos uma campanha de vacinação nem no âmbito nacional, nem no municipal. Campanha de verdade, envolvendo lideranças comunitárias, igrejas, entidades da sociedade civil. E também facilitando o acesso. Por exemplo, ampliando o horário. Essas pessoas saem muito cedo para trabalhar e chegam muito tarde", exemplifica.

"Deveríamos instituir que todo dia é dia de vacinar, de maneira que exista um fluxo constante. Quem perdeu sua data, chega e toma a vacina. Hoje temos um estoque muito grande de pessoas que ficaram para trás."

Presidente do Conselins (Conselho Diretor das Associações de Moradores do Complexo do Lins), o líder comunitário Gilson Roberto, o Feijão, diz que, segundo unidades de saúde locais, o fluxo de pacientes com covid-19 foi muito grande até um mês atrás, mas agora está reduzido.

"A coisa deu uma melhorada. Há um mês a gente chegava na clínica da famíllia e tinha de 50 a 60 pessoas [com covid], agora tem duas ou três", diz. "Houve um corre-corre dos moradores de novo para socorrer os parentes."

O período citado por ele coincide com o pico de disseminação da variante delta na cidade.

Feijão relata ainda que o impacto social da pandemia também agravou a situação das famílias nas comunidades da região.

"Devido à pandemia apareceram ainda mais pessoas procurando cestas básicas, por exemplo. Estive fazendo um trabalho [de distribuição] na quadra da [escola de samba] Lins Imperial e vi pessoas que eu não esperava buscando cestas naquela época. Alguns que, em outros momentos, falavam para dar as cestas para quem precisava mais e agora estavam pegando."

O que diz a Prefeitura do Rio

Em nota, a SMS afirmou que continua qualificando os dados georreferenciados de casos e mortes por covid-19 e que "todas as medidas de proteção à vida e medidas restritivas foram baseadas no cenário epidemiológico da doença, com avaliação de risco por região administrativa da cidade".

A secretaria também disse que "houve a ampliação da testagem para detecção de novos casos de covid-19, permitindo o diagnóstico e desencadeamento oportuno das medidas necessárias para assistência, acompanhamento e quebra da cadeia de transmissão".

A SMS negou colocar entraves burocráticos para a vacinação.

"Não há exigência de apresentação de comprovante de residência. Com o avanço da vacinação, as equipes de saúde das unidades de Atenção Primária, responsáveis pelos cuidados nos territórios, estão empenhadas na busca ativa das pessoas não vacinadas, ou que não concluíram o esquema de vacinação."

Sobre a falta de postos de vacinação, a pasta disse que "tanto a testagem como a assistência aos pacientes com quadro de suspeita de covid-19 estão disponíveis nas mais de 230 unidades de Atenção Primária, muitas delas localizadas dentro das comunidades."