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Brasil ignora testagem e adota, às cegas, estratégia de 'viver com a covid'

Imagem: Bruna Prado/Getty Images

Carolina Marins

Do UOL, em São Paulo

21/11/2021 04h00

A estratégia da "covid zero" deu lugar à de "viver com a covid" na Coreia do Sul. Austrália, Nova Zelândia e Singapura, ao reduzirem as restrições, também decidiram lidar com a circulação viral. O novo plano, porém, não significa permitir a livre propagação, mas controlar o vírus por meio de dois pilares: vacinação e testagem.

No Brasil, onde mais da metade da população está com a imunização completa, a retomada das atividades esbarra justamente na falta de política de testagem —a melhor opção em termos sanitários e econômicos conforme a vacinação avança nos países, segundo especialistas.

Apesar de ser o terceiro no ranking de infecções pela doença —atrás apenas de Estados Unidos e Índia— o Brasil ocupa a 125º posição quando se trata da proporção de testes por milhão de habitantes, segundo o site wordometers.

Desde o início da pandemia, foram realizados cerca de 24,5 milhões de exames RT-PCR no país, de acordo com os dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em 5 de novembro. O Brasil faz, em média, 297 mil testes para cada 1 milhão de habitantes. Na Dinamarca, país com maior proporção de testagem, essa taxa é de mais de 15 milhões de testes por milhão de pessoas —o país tem uma população de 5,8 milhões, ou seja, testa repetidas vezes as mesmas pessoas.

A orientação em muitos estados e municípios brasileiros é de que apenas casos sintomáticos sejam testados, deixando passar a grande maioria das infecções que são assintomáticas.

"Há um abismo entre o que a gente deveria fazer, e vários países estão fazendo com sucesso, e o que está acontecendo no Brasil. Eu diria que o Brasil está na pré-história das testagens", afirma Evaldo Stanislau, infectologista no Hospital das Clínicas da FMUSP.

Coreia do Sul exige comprovantes de vacinação e de testagem

Com 70% da sua população já vacinada, a Coreia do Sul considerou o momento oportuno para dar início à sua política. Mas para que dê certo, o país está exigindo, além do comprovante de vacinação, um teste negativo de covid-19 nas últimas 48 horas para a entrada em espaços considerados de alto risco —bares, boates, academias internas, saunas, etc.

Austrália rastreia contaminados por meio da testagem em massa

A Austrália tentou por muitos meses manter a política de "covid zero", mas a realização de lockdowns localizados sempre que surgia um pequeno surto se tornou inviável economicamente. Já com 90% dos adultos vacinados, o país está desde o dia 8 sem restrições de distanciamento em comércios e serviços.

Para acesso aos locais, o governo exige apenas o comprovante de vacinação completa. Mas a testagem é amplamente disseminada e o país continua investindo no rastreio de contaminados e contactantes.

O acesso ao exame é bastante simples, sendo fácil encontrar as orientações e locais para testagem no site do Ministério da Saúde do país. Por dia, a Austrália realiza pouco menos de 100 mil testes e ocupa o 40º lugar no ranking do wordometers. O Brasil só atingiu essa média de testagem nos meses de março e abril de 2021, quando houve o agravamento da segunda onda.

Esses países que adotaram uma política correta de viver com a covid diminuem o seu risco a partir do momento em que eles identificam quem está infectado e põem em quarentena. Então, eles vão de certa forma controlando o espalhamento do vírus."
Evaldo Stanislau, infectologista no Hospital das Clínicas da FMUSP

Testes como indicadores mais confiáveis

A OMS (Organização Mundial da Saúde) orienta o acompanhamento das transmissões comunitárias por meio de quatro indicadores: mortes, internações, casos novos e percentual de positividade nos testes.

Mas com o avanço da vacinação, os três primeiros indicadores ficam prejudicados, já que a vacina tende a reduzir as mortes, as internações e os casos sintomáticos. Resta apenas a taxa de positividade, que é a divisão do número de exames com resultado positivo pelo total de testes realizados.

Sem uma política massiva de testagem, o Brasil se perde no monitoramento da pandemia, em especial no caso das infecções de breakthrough, que são aquelas entre pessoas totalmente vacinadas. "Eu não tenho dúvidas de que há circulação do vírus, mesmo entre vacinados, e a gente só não enxerga mais porque não testa", pontua Stanislau.

Óbvio que o vacinado tem uma chance muito pequena de ter covid grave e ele tem uma chance menor de se infectar e transmitir, mas isso não é zero. E o que estamos vendo é que temos grande circulação viral mesmo com alta taxa de vacinação."
Evaldo Stanislau, infectologista no Hospital das Clínicas da FMUSP.

Taxa de positividade ideal é de 2%; no Brasil, é de 27,54%

A taxa de positividade serve como bom indicador tanto do crescimento da doença em um país, quanto da subnotificação. De acordo com a OMS, uma taxa de positividade de 5% indica que a pandemia está sob controle, sendo abaixo de 2% o ideal.

No Brasil, esta taxa está em 27,54%, segundo o Ministério da Saúde, o que indica tanto uma circulação muito alta do vírus quanto a realização de exames apenas em sintomáticos. O mesmo é possível ver na quantidade de exames feitos ao longo do ano no país. Ao contrário do que é indicado por especialistas, o Brasil tende a diminuir a sua oferta de testes conforme os dados de casos e mortes caem.

De acordo com o infectologista do HC, o Brasil poderia popularizar a testagem aumentando a oferta nos serviços de saúde ou oferecendo testes periódicos em locais estratégicos com muita circulação, como indústrias e escolas. "Você pode deixar nas unidades de saúde a oferta do teste. A pessoa então vai lá medir sua pressão ou pegar seu remédio para diabetes, e já faz um teste."

A gente precisa urgentemente baratear o custo desses testes e torná-los disponíveis. Precisamos popularizar a testagem para ter o mínimo de noção do que está acontecendo".
Evaldo Stanislau, infectologista no Hospital das Clínicas da FMUSP.

Decisões que o Brasil precisa tomar

O próprio infectologista defende que retomadas como a da Coreia do Sul e de outros países aconteçam. O Brasil, no entanto, precisa entender melhor os seus dados pandêmicos e tomar decisões importantes para esta abertura. Afinal, seremos um país com a política de "viver com a covid" ou seremos "covid zero"?

A China é, até o momento, o único país a manter a estratégia de "covid zero". O primeiro país afetado no mundo realiza intensos lockdowns a cada novo surto local e espalha enormes tendas de testagem para monitorá-los.

Em relato à mídia estatal chinesa, um motorista de aplicativo contou que chegou a fazer 90 testes de covid-19 em apenas uma semana. Um pai disse que seu filho de um ano foi testado 74 vezes.

A estratégia de "covid zero", porém, foi abandonada até mesmo por países que até então eram considerados exemplos no controle da pandemia, como a Nova Zelândia. O surgimento da variante delta, muito mais transmissível, tornou esta opção quase inviável.

Contudo, ao assumir a política de conviver com a doença, os países aceitam o risco de que haverá pessoas infectadas que virão a morrer. Por isso, identificar essas pessoas é fundamental.

Dá para viver com a covid? Como meta realística, sim. Mas muito mais nesse modelo desses países que testam do que nesse modelo nosso que é a tática do avestruz que enterra a cabeça na terra e não quer olhar o problema".
Evaldo Stanislau, infectologista no Hospital das Clínicas da FMUSP.

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