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Clínicas de aborto vendem tecido embrionário para pesquisa médica

Tim Robinson/The New York Times
Imagem: Tim Robinson/The New York Times

Denise Grady E Nicholas St. Fleur

05/08/2015 06h00

Vídeos lançados por um grupo antiaborto nas últimas duas semanas chamaram a atenção para uma prática pouco conhecida: a compra e venda de tecidos embrionários obtidos em clínicas de aborto para uso em pesquisas acadêmicas.

O grupo por trás do lançamento das imagens acusa a clínica Planned Parenthood de obter lucro com a venda desses tecidos – uma prática ilegal, negada veementemente pela Planned Parenthood. Deputados republicanos planejam investigar o caso, que pode ser apenas mais uma das batalhas na longa guerra nacional em torno da legalidade do aborto, ainda que ninguém saiba ao certo quem compra, quem vende, quem faz as pesquisas, quais tecidos embrionários são utilizados e até que ponto a prática é legal.

Cientistas de grandes universidades e de laboratórios do governo utilizam tecidos embrionários há décadas sem fazer alarde. Eles afirmam que essa é uma ferramenta importantíssima para determinados tipos de pesquisa, incluindo o estudo de doenças nos olhos, do diabetes e da distrofia muscular. Ainda assim, muitos deles só concordaram em conversar a respeito caso seus nomes e o de suas universidades não fossem divulgados, pois temem receber ameaças e retaliações violentas de pessoas contrárias ao aborto. As empresas que obtêm os tecidos nas clínicas e depois os vendem para os laboratórios funcionam na semilegalidade. Leis federais afirmam que as empresas não podem obter lucros a partir dos tecidos, mas nenhuma lei especifica quanto as empresas podem cobrar pelo processamento e o envio do produto.

Os Institutos Nacionais de Saúde gastaram US$ 76 milhões com pesquisas envolvendo tecidos embrionários em 2014 por meio de bolsas concedidas a mais de 50 universidades, incluindo Columbia, Harvard, MIT, Stanford, Yale e a Universidade da Califórnia, em Berkeley, Irvine, Los Angeles, San Diego e San Francisco. O organismo federal pretende gastar o mesmo valor nos anos de 2015 e 2016.

Os pesquisadores afirmam que o tecido embrionário é uma fonte extremamente rica de células-tronco, que dão origem a tecidos e órgãos especializados e que estudar seu desenvolvimento pode dar pistas sobre a criação de órgãos substitutos para pessoas que precisam de transplantes.

"Os tecidos embrionários são uma espécie de manual de instruções", afirmou Sheldon Miller, diretor científico do programa de pesquisas do Instituto Oftalmológico Nacional.

As células-tronco derivadas de tecidos adultos podem um dia substituir as células embrionárias, de acordo com os cientistas. Mas a ciência ainda não chegou lá. O tecido ocular retirado dos fetos teve um papel fundamental nos estudos que encontraram tratamentos para doenças degenerativas da retina, uma das principais causas de perda da visão à medida que as pessoas envelhecem, de acordo com Miller.

"Não seria possível obter essas informações de outra maneira", afirmou Miller. Segundo ele, o instituto oftalmológico adquiriu tecidos embrionários de uma empresa, desenvolveu culturas especializadas de tecidos da retina e enviaram essas amostras para outros pesquisadores.

Um pesquisador universitário que preferiu manter o anonimato depois de receber ameaças que obrigaram seu instituto a contratar um segurança para ficar na frente do laboratório afirmou que os tecidos embrionários são extraordinariamente úteis, "já que se você quer entender como um tecido ou uma doença se desenvolvem, é preciso compreender suas origens".

Outro pesquisador, também preocupado com as ameaças que recebeu, afirmou que os tecidos embrionários foram essenciais na pesquisa que levou ao desenvolvimento de tratamentos para doenças musculares degenerativas, uma vez que "para regenerar os tecidos de um ser humano, é preciso compreender como as células funcionam". Tecidos de origem animal só funcionam até certo ponto, segundo os pesquisadores, já que existem diferenças fundamentais no desenvolvimento de cada espécie.

Os tecidos embrionários só podem ser utilizados com o consentimento das mulheres que estão passando pelo aborto. Alguns pesquisadores recebem as amostras de clínicas de aborto que funcionam em suas próprias instituições, ou de bancos de tecido mantidos por determinadas universidades. Muitos compram as amostras de empresas que funcionam como atravessadoras. Essas empresas pagam pequenas taxas, em média menos de 100 dólares por cada espécime, às clínicas de aborto como a Planned Parenthood, que afirmam cobrar apenas o que precisam para cobrir os custos do procedimento. Em seguida, as empresas processam os tecidos que são vendidos aos pesquisadores a preços mais altos, com o objetivo de cobrir os custos desse processamento.

Os valores, que giram na casa dos milhares de dólares por um pequeno recipiente com células-tronco, não são ilegais, de acordo com Arthur Caplan, diretor da divisão de ética médica do Centro Médico Langone da NYU.

"Ao que tudo indica, todos os valores são considerados legais", afirmou Caplan, acrescentando que não parece haver qualquer tipo de supervisão das taxas de processamento. "É uma área muito incerta e não há determinação de quanto as empresas podem cobrar."

Muitos pesquisadores compram as células embrionárias de duas pequenas empresas da Califórnia. A StemExpress, uma empresa criada a cinco anos com sede em Placerville, Califórnia, afirma ser "a maior fornecedora de material sanguíneo e de tecidos embrionários do mundo". A empresa também afirma oferecer "descontos especiais para a comunidade acadêmica".

A fundadora da empresa, Cate Dyer, é formada em Sociologia pela Universidade Estadual da Califórnia, em Sacramento. Ela fundou a StemExpress com apenas US$ 9 mil. Um artigo publicado em novembro do ano passado pelo Sacramento Business Journal afirmou que a empresa cresceu mais de 1.300 por cento em três anos. O faturamento total foi de US$2,2 milhões, de acordo com um relatório publicado em agosto de 2014 pela revista Inc.

Cate afirmou que o tecido embrionário responde por apenas 10 por cento do faturamento da empresa. Ela concordou em ser entrevistada, desde que não tivesse que responder perguntas sobre a investigação realizada pelo congresso em torno da parceria da sua empresa e da clínica Planned Parenthood. O advogado da empresa e um especialista em comunicação de crise estavam presentes durante a entrevista por telefone.

Ela afirmou que a empresa obteve tecidos embrionários de forma legal e de acordo com as regras estabelecidas pelos conselhos de ética das instituições que compraram as células, e que o tecido foi utilizado em estudos sobre a leucemia, o linfoma de Hodgkin e a doença de Parkinson.

A empresa tem 37 funcionários, incluindo cientistas, técnicos de laboratório e flebotomistas. A maioria dos clientes chega por indicação em busca de tipos de células difíceis de achar, afirmou a empresária.

A StemExpress conta com técnicos de adjudicação de contratos para obter o tecido embrionário. "Nós coletamos tecidos bioinfectantes e materiais de descarte", afirmou Cate. "Eles vão para hospitais ou para locais que coletam os tecidos a partir dos materiais descartados."

De volta à empresa, os técnicos de laboratório processam o tecido e tentam isolar os tipos de células específicos encomendados pelos pesquisadores: por exemplo, células-tronco hepáticas embrionárias. "Essas células são difíceis de isolar", afirmou Cate. "Esses processos são complicados e caros e é preciso gastar milhões de dólares em equipamentos. A simples tentativa de isolar alguns desses tecidos pode custar milhares de dólares e o processo nem sempre funciona."

O esforço é refletido nos preços: um frasco contendo cinco milhões de células-tronco hepáticas embrionárias CD133+ chega a custar mais de US$ 24 mil.

O produto final é enviado "in natura" ou congelado. As taxas de envio são acrescidas ao valor dos espécimes, e um envio em 24h para a Alemanha pode custar milhares de dólares, de acordo com Cate.

A venda de tecidos embrionários não se limita a células em frascos. Mais de uma dezena de artigos científicos publicados desde 2012 reconhecem que obtiveram olhos, corações, fígados e rins intactos retirados de fetos pela StemExpress.

Outro grande fornecedor de tecidos fetais é a Advanced Bioscience Resources Inc., ou ABR, uma ONG de 12 funcionários que registrou um volume total de vendas na casa do US$1,4 milhão, de acordo com um relatório da Dun and Bradstreet. A lista de valores de 2013 registrava preços como US$300 por um espécime de tecido de um feto do segundo trimestre, ou US$515 se o feto estivesse no primeiro trimestre.

Linda Tracy, enfermeira registrada e presidente da ABR, afirmou por e-mail que os preços cobrados pela empresa refletem o tempo, o trabalho e o espaço necessário para obter o tecido embrionário. Ela destacou que como os fundos para pesquisas acadêmicas são limitados, a empresa tenta manter os valores mais baixos possíveis.

"A Planned Parenthood definitivamente não obtém lucros com a participação no programa de doação de tecido embrionário", afirmou Tracy, acrescentando que os valores citados no primeiro vídeo – de 30 a 100 dólares por cada espécime – pareciam "razoáveis".

Os documentos da ABR afirmam que seus produtos foram utilizados em pesquisas de combate ao HIV realizadas por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e da Universidade do Sul da Califórnia. Os tecidos fornecidos pela empresa também foram utilizados pelo Hospital Infantil de Cincinnati, além de outras pesquisas e transplantes de órgãos.

Um material informativo da StemExpress exposto pelo Centro pelo Progresso Médico, responsável pela divulgação dos vídeos, inclui o nome de uma filial da clínica Planned Parenthood. Ela cita a Dra. Dorothy Furgerson da Planned Parenthood Mar Monte afirmando que: "Nossa parceria com a StemExpress é benéfica de diversas maneiras". A citação descreve contribuições para "pesquisas que salvam vidas" e a confiança no anonimato dos pacientes.

Contudo, os críticos destacam diversas referências a benefícios financeiros para as clínicas. Por meio da parceria com a StemExpress, "você também irá contribuir para o crescimento fiscal de sua clínica", afirma o texto, algo que muitos acreditam indicar que as clínicas estejam obtendo lucros ilegais com a venda de tecidos embrionários.

George J. Annas, professor de Direito e bioeticista da Universidade de Boston, afirmou que "O que está acontecendo provavelmente é legal, mas vai desagradar o congresso".

Quanto às empresas, afirmou Annas: "Elas não devem ter ficado nada contentes com a divulgação. Isso é uma ameaça aos negócios. Mesmo que elas estejam fazendo algo legal, a lei pode ser modificada com facilidade".