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'Ela nunca pareceu tão corajosa', diz escritora sobre irmã à beira da morte

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Imagem: UOL

Sara Lukinson

04/09/2015 06h00

Que ninguém tente amortizar o que está acontecendo, usando metáforas e alusões literárias para transformar o câncer da minha irmã em um grande encontro com as bênçãos da vida.

Ou enaltecer a apreciação renovada do dia a dia e dos pequenos momentos de felicidade.

Esse é um mergulho em uma loucura sombria, onde nenhuma palavra, nenhum esforço, nenhuma tentativa de melhorar o humor consegue disfarçar o horror, a injustiça, a tensão que repuxa a carne a todo e qualquer movimento – o que não significa que não haja momentos diários em que a vida parece confortavelmente familiar. Você ri, você brinca, você vê TV e reclama que não tem nada para assistir. Você devora uma tigela de sorvete de flocos e pede mais.

Conforme o estado de saúde da pessoa se agrava, sua personalidade se torna mais marcante, não menos.

Minha irmã, Karen, que sempre teve orgulho de mim, agora se mostra ainda mais vaidosa; sempre meiga, agora está mais doce. Com a cabeça quase sempre nas nuvens, sempre foi mais fácil para ela falar do mundo que fazer parte dele.

Ela sempre foi mais aquarela que pintura a óleo – só que agora alguns tons de cores estão começando a borrar.

Como geralmente acontece entre irmãs, muita coisa nela me exasperava. Seu estado constantemente sonhador chegava às raias da inépcia prática: a logística de lavar a louça ou ganhar a vida pareciam além de sua capacidade. Ela conseguia me deixar maluca, mas também me arrasava com observações ágeis e penetrantes. E como ela me amava.

O orgulho que tinha de mim se tornou parte de sua razão de viver. Eu achava que isso se devia à sua própria vida, pequena e circunspecta.

Agora eu a vejo desaparecer aos poucos, depois de passar meses vivendo à base de quimioterapia e esperança.

Não há autopiedade, nem lamentação. Ela disse que sentia como se estivesse me decepcionando por me abandonar assim. Além dela, não tenho mais nenhum parente vivo. Nenhuma pessoa que se preocupe ou queira só o melhor para mim.

Seu andar é vacilante, suas mãos tremem. Seus olhos embaçam com facilidade.

Ela disse que os remédios a fazem se sentir como se estivesse fora do próprio corpo, que não se reconhecia no falar ou no andar. "O que posso fazer?", pergunto em voz fraca. "Seja paciente", ela responde. E tenho vontade de esconder minha impaciência interior, envergonhada – porque durante décadas eu me irritei com seu olhar quase assustadiço, sua hesitação em tomar uma atitude. Só que agora a situação é mais demorada, mais complexa. Ver a doença se apoderando dela me faz sentir como se estivesse sendo sugada por um buraco no céu. Sua vida se resume ao controle do câncer e não permite que veja o que vem depois da próxima curva.

Mas até a morte tomar conta deste quarto, a verdade é que é muito mais fácil retomar hábitos antigos, irritações automáticas, discussões por bobagens.

Uma virada de cabeça, um olhar distante e fico brava, esqueço sua doença. Não faz muito tempo gritei com ela por causa de uns formulários de imposto, nem me lembro mais por quê. Horrível da minha parte.

Por outro lado, me esforço para confortá-la e me mostrar gentil. E faço questão de lembrá-la de que sempre foi a mais bonita.

Há um ano e meio vivo na ponte aérea entre Nova York e a clínica onde está internada, em Little Rock, no Arkansas (cidade em que nenhuma de nós duas jamais esteve antes); a cada mês e meio viajo e fico com ela por duas semanas. Ali, a espera foi interminável desde o início, assim como o número de formulários e pequenos frascos, em salas geladas pelo ar condicionado excessivo, onde, em TVs barulhentas, imitadores de Elvis anunciam carros usados. Você aguarda para pegar sua dose de remédios tóxicos, poções mágicas que oferecem alívio contra cânceres desdenhosos e invencíveis, marchando feito fileiras e mais fileiras de soldados, intermináveis, que não permitem que se veja seu fim. Para eles, o corpo da minha irmã não era nada mais que um campo aberto que podia ser invadido com facilidade.

A cada anúncio que começava com "Podíamos tentar...", vinha uma pontada de medo no meu âmago, uma quentura insuportável que se espalhava para o peito, os braços, subia pelo rosto. E eu olhava para as feições dela, tão familiares, e engasgava de raiva por vê-la tendo que passar por aquilo, suportar aquele tormento. Ela disse que aguentaria o que quer que fosse que lhe desse mais tempo, para continuarmos irmãs por mais um dia. Estou em frangalhos por saber que ela sabe que vai morrer. Como encarar alguém que se ama sabendo o que se sabe? Aconteceu o mesmo com nossos pais. Já olhei naquela poça sombria e sem fundo e não queria repetir a experiência. Encarar aquele espaço vazio em que ela antes existia.

E também tem eu. Confesso que sinto pena de mim mesma.

Por que minha família querida teve que morrer antes da hora? Por que não pude ver meus pais envelhecerem ou fazer um cruzeiro sem graça com minha irmã?

Por que tenho que ficar no meio da rua sozinha?

Por que tenho que pedir a um(a) amigo(a) que me convide para o Dia de Ação de Graças ou perguntar se posso dar seu nome em caso de uma emergência? E a quem vou recorrer quando não tiver emprego – ou comemorar quando conseguir um?

Quando tudo acabar, eu sei, por uma experiência própria que não pedi, que vou guardar até as horas em que simplesmente compartilhamos o mesmo quarto. O tédio e o medo vão desaparecer e a doce espontaneidade de estarmos juntas é que vai ficar.

Só que estar nessa situação é uma dança lenta no inferno. Você se sente impotente, tem medo, fica inquieta e impaciente. Queria estar fora do círculo de fogo que cerca nosso acampamento, fugir e ver que tudo voltou ao normal.

As pessoas me aconselham a não deixar que os pensamentos se adiantem demais – mas é inevitável porque o medo corre mais rápido do que eu. Sentada a seu lado, fico calma e furiosa, sou amorosa e furiosa, consciente da bênção que é ter uma irmã como ela, me sinto miserável por ser forçada, de novo, a testemunhar a escravidão da doença. De ter que servi-la e me curvar a ela. Quero fugir, mergulhar na luz da vida, mas imediatamente me sinto destruída e culpada por querer escapar.

Ela disse que estava fazendo tudo aquilo para não me decepcionar, para não me abandonar. E me deixar sozinha é a pior coisa que pode fazer, depois de passar a vida toda sendo meu anjo da guarda.

Ao longo do caminho houve raios de sol fugidios em meio à espessa floresta. Alguma coisa nova para tentar, mais esperança. Aí ficou claro que tudo era em vão e o tratamento deu lugar ao conforto próximo do fim. Agora, quando o sopro de vida se extingue, me mantenho firme ao seu lado. Ela nunca me pareceu mais corajosa ou mais bela. Continua sendo ela mesma, continua sendo minha irmã.