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Médico que "queima um" investiga em livro o uso da maconha medicinal

26.abr.2014 - Jovem fuma cigarro de cannabis durante a Marcha da Maconha de SP - Reinaldo Canato/UOL
26.abr.2014 - Jovem fuma cigarro de cannabis durante a Marcha da Maconha de SP Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Abigail Zuger

12/09/2015 06h00

Os doutores John Clendinning e David Casarett podem ser considerados especialmente sortudos. Em 1843, Clendinning, médico insone de Londres, relatou suas experiências pessoais com várias substâncias que induziam ao sono. A grande vencedora foi uma tintura de maconha que proporcionou uma noite bem dormida sem as, como ele chama, "inconveniências" do ópio.

Agora, Casarett, médico da Universidade da Pensilvânia, assumiu o disfarce de Clendinning, desinteressadamente imergindo na cultura, na ciência e, claro, no consumo de maconha para descobrir e relatar a verdade por trás do burburinho.

Apesar do título do livro, Casarett escreve mais como médico do que como usuário em "Stoned" ("Chapado", em tradução livre) -- e deixa claro que jogou uma boa quantidade de maconha especialmente agradável na lixeira do aeroporto para não se arriscar com problemas de transporte entre estados. Ele faz um relato gostoso de ler, absorvente e informativo, diminui muito os problemas e enfatiza o lado científico, pelo menos o tanto quanto as informações permitem.

Infelizmente, não é muito. Todas as explorações recentes do uso de maconha medicinal bateram de frente no mesmo muro: os estudos definitivos e rigorosos que nos informam sobre o uso que fazemos das outras drogas simplesmente não existem para essa. Ao invés disso, os estudiosos precisam extrapolar pesquisas que, no máximo, sugerem algumas respostas e que geralmente se sustentam apenas com uma grande dose de boa vontade.

É de se imaginar que seria bastante fácil reunir um grupo de pessoas que sofrem de qualquer uma das dúzias de problemas que a maconha supostamente ajuda a minimizar, dar-lhes cigarros ativos ou placebos ao acaso e depois colher os resultados. Mas há uma longa lista de obstáculos contra essa abordagem padrão quando o assunto é maconha.

Casarett os enumera claramente. A verdade: o negócio é um pesadelo farmacológico. A planta contém dúzias de moléculas de canabinoides, entre elas, duas (tetraidrocanabinol, ou THC, e canabidiol, CBD) que estão presentes em maiores quantidades e são consideradas responsáveis pela grande parte dos efeitos. Além disso, a quantia delas varia consideravelmente entre plantas diferentes, emprestando a cada cepa sua assinatura farmacológica.

Os canabinoides podem, na verdade, ser processados em uma variedade de destilados, tinturas e óleos, mas a força dessas preparações varia e as reações individuais a elas também. Além disso, é impossível saber quão relevante os estudos de preparações padronizadas são para o conteúdo de uma porção de maconha.

Também há vários problemas logísticos. A pesquisa da maconha tem sido difícil de financiar e implementar, por causa de questões que incluem sua classificação na Drug Enforcement Administration (Administração de Controle de Drogas) como uma substância de "uso médico ainda não aceito". Os pesquisadores condenam o preconceito contra seu trabalho. Como conta Casarett frustrado: "Qualquer droga que faz com que você se sinta bem tem uma marca negra contra ela. E isso acontece mesmo que seja muito efetiva".

Com a falta de pesquisas, a medicalização da maconha tem sido conduzida mais por anedotas – histórias de triunfos e falhas em pacientes individuais. E, apesar dessas histórias não serem úteis para a medicina, resultam em boa leitura. O livro de Casarett tem muito interesse humano à medida que o médico conta sobre pacientes, traficantes, clínicas e pesquisadores, enquanto cruza continentes e toma notas.

Ele conhece Caleb, que aposta na maconha para tratar a dor e a náusea de um câncer incurável, mas que tem cada vez mais dificuldade de pagar pela droga. Alice espera apenas que a substância a ajude a dormir. Rachel, que se recupera de uma fratura na espinha e sofre com uma dor forte no nervo, reclama ao lado de sua "caneta de vapor", o equivalente da maconha ao cigarro eletrônico.

Em Israel, um "instrutor de maconha" certificado chamado Zach Klein administrou a droga para dúzias de pacientes que sofrem de demência em casas de saúde com melhoras incríveis em alguns, incluindo um com doença de Parkinson que assinou seu nome pela primeira vez em anos.

Em San Francisco, um oncologista famoso derruba enfaticamente as afirmações de que a maconha cura o câncer, mas suspeita que usá-la pode deixar mais lento o desenvolvimento de alguns tumores. Em Los Angeles, um pesquisador não consegue descobrir danos nos pulmões de pessoas que fumam maconha e se pergunta se os canabinoides podem proteger contra a inflamação causada pela fumaça.

No meio de todas as suas viagens, as costas de Casarett sofrem, fornecendo uma oportunidade excelente de testar o produto por ele mesmo.

Sua dor fica um pouco melhor depois que fuma um baseado, mas ele também começa a ouvir vozes murmurantes vindo de sua sala vazia, controladores de tráfego aéreo fantasmas que vêm lhe fazer companhia. Se estivesse fumando por motivos recreativos, a pequena alucinação seria divertida. Se estivesse indo trabalhar no hospital, porém, as vozes seriam um grande problema.

Ainda mais preocupante é a manhã que Casarett passa no assento do passageiro de um carro, tomando notas enquanto o motorista, um usuário de maconha medicinal chapado, tenta dirigir por um percurso cheio de obstáculos montado em um estacionamento local e falha no final. "Maconha e direção não se misturam", conclui Casarett – não é uma questão nova, mas sim outro grande problema para uma droga recreacional que tenta chegar à farmacopeia.

No final, como os estudiosos antes dele, Casarett fica impressionado tanto pelas possibilidades médicas quanto por seus riscos, convencido pelas histórias que ouviu de que é um tratamento valioso para algumas condições, mas que necessita de mais pesquisa por ser uma substância com um conjunto claro de inconveniências.

Livro: ‘Stoned: A Doctor’s Case for Medical Marijuana’ ('Chapado: A História de um Médico pela Maconha Medicinal'), de David Casarett, M.D. Current. 264 páginas.