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Depoimento: como a incompetência médica salvou a vida de uma paciente

Brian Stauffer/The New York Times
Imagem: Brian Stauffer/The New York Times

Abigail Zuger

17/01/2016 06h00

Gostamos de pensar que é fácil distinguir a medicina boa da ruim. Um grande sistema de educação, licenciamento e regulamentação depende dessa premissa simples. E ainda assim, talvez mais frequentemente do que imaginamos, a boa e a ruim se misturam como creme e café, de maneira quase impossível de separar.

Alguns anos atrás, uma paciente que eu tratava foi admitida no hospital com uma crise de asma, doença que sofria há tempos. Ela estava na casa dos 50 anos, mas, ao contrário da maioria de nós que acumula doenças ao longo da vida, estava se desfazendo das dela. Ela havia sido uma jovem doente, nos últimos estágios da Aids e com as infecções recorrentes normais para o diagnóstico.

Então, lentamente havia melhorado. Seus vícios foram domados, as infecções tratadas, e o HIV bem controlado. Agora, o que continuava era apenas um persistente hábito de fumar e uma terrível asma.

Se você vai ter dois problemas, esses são uma dupla particularmente ruim. Não apenas há a óbvia questão de um piorar o outro, mas é também uma combinação que deixa os profissionais da medicina furiosos. Autodestruição pura, dizem de maneira arrogante.

O especialista em pulmão de minha paciente a havia expulsado de seu consultório anos antes, sob ordens de não retornar até que parasse de fumar, murmurando para sua enfermeira que ela estaria morta muito antes disso acontecer. Minha paciente ouviu o que ele disse e realmente nunca voltou, apesar de ainda não estar morta.

Mas esse não é o exemplo de medicina ruim desta história.

No hospital, ela recebeu os tratamentos usuais para asma e, como sempre, melhorou. Dois dias depois da admissão, estava pronta para ir embora, ou pelo menos pensou que estivesse, até receber duas notícias diferentes. Quando liguei para saber sobre sua saúde, ela estava quase chorando.

“Eles acham que eu tenho pneumonia. Querem que eu faça uma tomografia computadorizada”, disse ela.

Fiz as perguntas de rotina. Ela não tinha sintomas de pneumonia. Enquanto conversávamos, peguei os resultados de seus exames e raios-X pelo computador. Nada ali mostrava que ela estava com pneumonia. Mas em suas ordens, claro, alguém -- e eu sabia quem -- havia decidido que ela poderia ter uma pneumonia relacionada à Aids e queria tratá-la por isso. A tomografia daria o diagnóstico.

Existem poucas certezas na medicina, mas essa era uma delas: a paciente não tinha pneumonia, não se todas as regras básicas que usamos para avaliar e tratar infecções fossem respeitadas.

Eu sabia, porém, que o médico impaciente que estava supervisionando seus cuidados tinha a tendência de agir rapidamente e deixar de lado essas regras. Suas ações eram governadas não pelas regras, mas pelo puro temor de que ele poderia deixar passar alguma coisa e ser processado. Ele fazia exames para tudo e tratava qualquer coisa em uma tentativa aterrorizada de ter certeza absoluta de que tudo sairia bem. Claro, ele sempre adotou esse tipo de abordagem, mas nunca chegou a repensá-la.

Esse tipo de cuidado médico, infelizmente nada incomum, é caro, ilógico e estúpido – apenas ruim. Expõe o paciente a todos os tipos de medos e riscos desnecessários e, no processo, quebra o orçamento dos cuidados de saúde.

Mais tarde, voltei para ver se conseguia resolver a questão, mas o quarto da minha paciente estava vazio. Ela já havia ido para a sala da tomografia, um desperdício total de tempo, dinheiro, energia emocional e radiação.

E foi isso que aconteceu:

Ela não tinha pneumonia, nem um traço da doença. Nenhuma surpresa. Mas estava com uma massa grande na parte de cima do pulmão esquerdo. A paciente foi para casa naquele dia, como esperava, mas apenas depois que um cirurgião a atendeu e pediu uma avaliação para o que parecia um câncer de pulmão.

Um mês depois o tumor foi removido. Era câncer. Seus exames desde então -- ela os faz regularmente agora -- mostram que está bem.

Péssimos cuidados médicos salvaram sua vida. Que tal?

Espere um minuto, diria você. Os fumantes não fazem tomografias rotineiramente para checar se têm câncer de pulmão? Não foram cuidados médicos terríveis. Foi proatividade, cuidados médicos visionários!

Exatamente, e isso é uma parte do problema. Anos antes de a tomografia computadorizada para a detecção do câncer de pulmão ser apenas uma ideia, seria medicina ruim. Mas o tempo muda tudo. O pior cuidado pode se tornar o melhor. Não é de se espantar que seja tão difícil policiar nossa profissão, com as coisas mudando o tempo todo. 

E esse não foi nem o fim da história. O aparecimento repentino de outra doença fatal na vida de minha paciente deixou-a apavorada. Ela estava tão acabada com a sequência de eventos que parou de fumar, não toca em um cigarro há anos.

Assim, um único episódio de incompetência médica salvou sua vida duas vezes.