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E se houver um câncer contagioso? Cientistas estudam possibilidade

Apesar de não haver sinal de ameaça iminente, artigos recentes sugerem uma possível aparição de um câncer contagioso em humanos - Jon Krause/The New York Times
Apesar de não haver sinal de ameaça iminente, artigos recentes sugerem uma possível aparição de um câncer contagioso em humanos Imagem: Jon Krause/The New York Times

George Johnson

Do New York Times

29/02/2016 06h00

Mesmo com todo o seu horror peculiar, o câncer vem com uma redenção. Se nada mais conseguir deter a evolução maluca do tumor, o câncer termina morrendo com seu hospedeiro. Tudo que as células malignas aprenderam para sobrepujar as defesas do paciente – e as dos oncologistas – é apagado. O próximo caso de câncer, em outra vítima, começa do zero.

Imagine se em vez disso as células cancerígenas tivessem a capacidade de passar para outro organismo. Um câncer desse tipo teria o poder de se espalhar não apenas de órgão para órgão como também de uma pessoa para outra, desenvolvendo novas habilidades ao longo do caminho.

Embora não exista sinal de uma ameaça iminente, vários estudos recentes sugerem que o surgimento derradeiro de um câncer humano contagioso existe dentro do campo da possiblidade médica. Ele não seria uma doença, como o câncer cervical, desencadeado pela disseminação de um vírus, mas uma enfermidade na qual as células cancerígenas viajam de uma pessoa para outra e prosperam em seu novo endereço.

Até agora, sabe-se que isso somente ocorreu em condições muito incomuns. Uma funcionária de laboratório de 19 anos que se furou com uma seringa com células de câncer de cólon desenvolveu um tumor na mão. Um cirurgião adquiriu câncer de seu paciente depois de se cortar acidentalmente durante a operação. Também existem casos de células malignas serem transferidas de uma pessoa para outra durante transplante de órgão ou de uma mulher ao seu feto.

Em cada uma dessas ocasiões, a malignidade não progrediu. Os únicos cânceres conhecidos que continuam de um organismo para outro, driblando o sistema imunológico, foram encontrados em outros animais.

Em experimentos de laboratório, por exemplo, células cancerígenas foram transferidas por mosquitos de um hamster para outro. E, até agora, três tipos de câncer contagiosos foram descobertos na natureza: em cães, no diabo-da-tasmânia e, mais recentemente, em mariscos de casca mole.

Câncer por contágio sexual

O exemplo mais antigo conhecido é o do câncer que se espalha entre cães durante o ato sexual – não como efeito colateral de uma infecção viral ou bacteriana, mas pelo transporte direto de células cancerígenas. O estado da pesquisa é descrito em uma análise crítica, "O câncer que sobreviveu", publicado no ano passado por Andrea Strakova e Elizabeth P. Murchison, da Universidade de Cambridge.

Acredita-se que a doença, tumor venéreo canino transmissível, tenha surgido há 11 mil anos – como uma única célula em um só cachorro – e tem circulado desde aquela época. Por que isso ocorre com os cães e não, por exemplo, com gatos? Talvez por causa do que os autores chamam modestamente de "vínculo duradouro do coito" entre cachorros – os pelo menos 30 minutos em que macho e fêmea ficam grudados em intercurso, rasgando tecidos genitais e oferecendo uma travessia sossegada para as células cancerígenas.

Geralmente, o câncer evolui em um único organismo ao longo de anos ou décadas, acumulando as mutações que o levam ao poder. Porém, para ter sobrevivido durante milênios, os pesquisadores propuseram que as células caninas com câncer possam ter desenvolvido mecanismos – como os existentes em células saudáveis – para reparar e estabilizar seus genomas malignos.

Inicialmente, as células cancerígenas geralmente florescem desabilitando o reparo do DNA e desencadeando um frenesi de mutação. Durante esse processo, as antigas células caninas podem ter reinventado o processo para ampliar sua longevidade. Também se especula que esse câncer pode ter aprendido a modificar o comportamento sexual canino de forma a promover a disseminação e a sobrevivência da enfermidade.

Doença passa durante briga

O segundo tipo de câncer contagioso foi descoberto em meados da década de 90 em diabos-da-tasmânia, que espalham células malignas enquanto brigam. Embora possa ser difícil ter solidariedade pelo bicho, o tumor ameaça extinguir a espécie.

Com tão poucos exemplos, o câncer transmissível tem sido facilmente descartado como uma aberração. Porém, em dezembro, cientistas das universidades da Tasmânia e de Cambridge informaram em "Proceedings of the National Academy of Sciences" que os diabos estão transmitindo outra espécie de câncer – geneticamente diferente do primeiro.

Já é bastante estranho que um câncer do gênero tenha surgido na espécie. Quais são as chances de que existam dois?

Uma teoria é a de que os animais são extraordinariamente vulneráveis. Levados tão perto da extinção – pela mudança climática, talvez, ou predadores humanos – a espécie não tem diversidade genética. As células de outro diabo injetadas por meio de um ferimento profundo parecem tão familiares que são ignoradas pelo sistema imunológico de quem as recebeu. Se algumas das células carregarem as mutações do câncer facial, elas podem prosperar e virar um tumor novo.

Contudo os cientistas também propuseram uma explicação mais perturbadora: que o surgimento do câncer contagioso pode não ser tão raro. "A possibilidade pede mais investigação do risco de tais doenças surgirem em humanos."

Provavelmente, o câncer existe desde que nossos primeiros ancestrais multicelulares apareceram na Terra há centenas de milhões de anos. O período de vida dos animais com maior longevidade pode ser curto demais para o câncer desenvolver a capacidade de saltar para outro organismo. Caso contrário, existiria em todo lugar.

Por ora, pelo menos, ele continua sendo uma curiosidade. Vejamos o caso de um homem de 41 anos de Medellín, Colômbia, que foi examinado por médicos em 2013 por causa de fadiga, febre e perda de peso. Os nódulos linfáticos estavam coalhados com células cancerígenas que também tinham se espalhado para pulmões e fígado.

Contudo, as células pareciam pequenas e simples demais para serem humanas. "Esse caso se revelou um enigma para o diagnóstico", os médicos escreveram na edição de novembro do periódico "The New England Journal of Medicine".

A solução para o enigma surgiu quando se descobriu que o homem também abrigava um tipo de solitária chamada "Hymenolepis nana". Análises posteriores concluíram que as células cancerígenas tinham se originado do parasita, espalhando-se pelo corpo do homem.

Não existe motivo para pensar que o câncer da solitária se tornará uma ameaça à saúde pública. O sistema imunológico do paciente estava comprometido pelo HIV, e ele morreu meses mais tarde. Todavia a natureza tem surpresas infinitas.