Crise econômica coloca em risco progressos contra Aids e malária, alerta casal Gates
Um relatório mundial divulgado pelo casal Gates comemora os progressos da saúde mundial, especialmente da mortalidade infantil, da Aids, da vacinação, do tabagismo e do acesso aos cuidados básicos. Mas o documento também emite um alerta sobre a vulnerabilidade desses avanços diante da crise econômica mundial.
Bill e Melinda Gates divulgaram um relatório ao mundo na semana passada, avaliando o progresso em 18 indicadores da saúde global: mortalidade infantil, Aids, vacinação, tabagismo e assim por diante.
Chamado "Goalkeepers", o boletim era um imenso trabalho estatístico, demorou três anos para ser feito, visando diretamente os líderes mundiais reunidos na Assembleia Geral da ONU neste mês. Para atrair mais atenção, o casal Gates promoverá um evento com Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos.
Em uma série de entrevistas recentes, o casal Gates deu vários recados.
O progresso tem sido grande, mas o cansaço do doador poderia ser letal para milhões de pessoas que poderiam ser salvas com facilidade. Somente os EUA são ricos e generosos o bastante para liderar, e as organizações de caridade, incluindo a do casal, possivelmente não conseguem cobrir os cortes profundos em ajuda global que o presidente Donald Trump propôs.
Segundo eles, os jornalistas do setor de saúde estão mergulhados em negativismo, concentrando-se nos fracassos em um mar de sucessos da saúde global.
Durante conversa, Gates demonstra uma compreensão tão profunda e impressionante da ciência que estimula as descobertas por ele apoiadas, e das políticas públicas dos países onde são aplicadas, que é fácil esquecer que ele já foi um geek da informática.
Aos 61 anos, ele poderia falar com a grandiloquência afável de um professor emérito, porém, cita dados comprobatórios como um aluno de destaque em busca de um "A mais". Ele refuta perguntas céticas e insiste em ensinar a partir de seu próprio plano de estudos – e em usar sua própria palmatória.
De acordo com Gates, o relatório será divulgado anualmente. Ele se deu somente um C+ no primeiro rascunho, prometendo uma análise mais profunda no futuro.
Na verdade, não está atribuindo notas às autoridades mundiais da saúde, mas as está mandando para casa com um bilhete para a mãe: seu filho tem potencial, mas está virando um problema disciplinar.
Em algumas áreas, tais como mortalidade infantil, ele considera o progresso feito como "milagroso". Em 1990, mais de 11 milhões de crianças morriam antes de completar cinco anos; agora, morrem menos de seis milhões.
As mortes por Aids despencaram desde 2004 e as por malária desde 2005. Os índices de déficit de crescimento infantil, mães que morrem no parto e as mazelas trazidas por doenças tropicais raras têm caído regularmente.
Nos países pobres, aumenta o uso de vacinas, embora somente 75% das crianças recebam todas as doses necessárias. Mais pessoas têm banheiros hoje em dia.
Os avanços em outras áreas são mais lentos. O tabagismo está caindo, mas os fabricantes de cigarro estão contra-atacando. Está crescendo a oferta de anticoncepcionais, mas quase a metade das mulheres interessadas não tem acesso.
O acesso aos cuidados básicos de saúde está aumentando, segundo o novo relatório, mas o abismo entre países ricos e pobres continua enorme, porque dinheiro demais vai para os hospitais principais e não para clínicas rurais.
Uma descoberta fundamental: a maior parte do progresso não se deveu a doações, surgindo organicamente enquanto centenas de milhões de pessoas conseguiram se afastar dos níveis mais abjetos de miséria.
Em 1990, 35% do mundo vivia abaixo da linha internacional da pobreza (atualmente em US$ 1,90 por dia); agora, somente 9% vivem abaixo desse patamar. Os países que mais influenciaram neste grande salto para frente foram duas potências econômicas: China e Índia.
Os temas mais assustadores do relatório são suas projeções para os próximos 15 anos.
Supondo que o progresso econômico continue, melhorias na maioria das categorias de saúde irão se nivelar ou cair. Contudo, desde a crise econômica de 2008, os doadores vêm perdendo a vontade de contribuir.
Segundo o relatório, se isso persistir, o caos pode voltar. Infecções por HIV podem duplicar, voltando a níveis só vistos na década de 1990. E a malária poderia voltar a crescer ao ponto máximo de 2005.
HIV e malária são especialmente vulneráveis às flutuações no financiamento porque estão concentrados na África, onde a melhoria econômica tem sido mais lenta do que na Ásia ou América Latina e onde a taxa de natalidade continua alta, produzindo um grande número de vítimas potenciais todos os anos. A malária tem um histórico de repique assim que a pressão é diminuída; tanto os mosquitos quanto os parasitas logo desenvolvem genes resistentes.
A taxa de natalidade mundial está no seu auge – provavelmente para sempre – em cerca de 134 milhões de bebês por ano. "O impressionante é o quanto a mudança no local do nascimento dificulta as coisas para nós", afirma Gates.
Manter as crianças vivas se torna mais difícil quando elas nascem em locais com guerra civil, estradas de terra e curandeiros que rejeitam a medicina ocidental.
De forma surpreendente, o relatório não foi uma reação às ameaças de Trump de cortar a ajuda externa em 32%.
De acordo com o dr. Christopher J.L. Murray, diretor do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington, que coletou os dados, tudo começou três anos atrás quando Gates ficou com medo que o mundo estivesse parando de pensar em saúde.
O relatório "Goalkeepers" se refere a uma métrica que o mundo ignora, mas não o casal Gates: os objetivos estabelecidos periodicamente pela ONU, a saber, as Metas de Desenvolvimento do Milênio, de 2000, e as Metas de Desenvolvimento Sustentável, de 2015.
O primeiro objetivo enfatizava principalmente pobreza e saúde. Já o segundo compreende 169 metas em vários campos, da redução do excesso de pesca a levar energia limpa e oferecer empregos bons a todos – o que tem um ar meio utópico.
O mundo prefere objetivos simples, tais como declarar guerra à varíola, mas a menção à guerra estimulou o casal Gates. Os pedidos por uma "geração livre da Aids" – o grito da moda seis anos atrás – eram "prematuros", e ele afirma que se sente "envergonhado" por ter dito que a malária poderia ser eliminada até 2015.
Ele prefere um "pensamento ao estilo da Microsoft" a estabelecer metas realistas. "As pessoas esperam certo grau de honestidade. Elas querem saber se Bill e Melinda acompanham essas coisas."
Em resumo, ele está registrando a busca do mundo por suas próprias metas enquanto auxilia nesse propósito.
Em entrevistas anteriores, Gates não quis criticar Trump, mas deu a clara impressão de acreditar que o Congresso iria ignorar a maioria dos cortes propostos pelo presidente. O Congresso parece estar agindo dessa forma.
Ao ouvir o discurso de Gates, até o partidário mais fiel da ideologia "Estados Unidos em primeiro lugar", por ele qualificada de "egoísta", sucumbe à sua fuzilaria de dados.
Antes da renúncia de Stephen K. Bannon, estrategista-chefe de Trump, Gates se reuniu com ele na Casa Branca. "Ele disse: 'A África sempre foi uma confusão'", conta Gates. "Repassei com ele os números dos avanços no continente. Ele ficou impressionado."
O ponto fraco do relatório é ele não poder, por exemplo, prever quantos mais ugandenses morreriam de Aids se as doações norte-americanas caíssem 20%, da mesma forma que o Comitê de Orçamento do Congresso consegue calcular quantos norte-americanos perderiam o seguro-saúde conforme determinado projeto de lei.
Existem muitos fatos imprevisíveis na saúde global. Um país não iria simplesmente cortar brutalmente o tratamento de 20% de pacientes com HIV, argumenta Gates. Ele pode cortar o orçamento militar, pode tentar ampliar a duração dos remédios disponíveis, provocando sua falta.
Enterrados no relatório cheio de gráficos encontram-se casos curiosos demonstrando como a engenhosidade pode ser tão importante nessa área quanto o dinheiro. Na Etiópia, por exemplo, as grávidas receberam uma maca especial para ajudá-las a chegar às maternidades; elas temiam as macas normais porque as pessoas normalmente carregadas nelas morriam. E um imame no Senegal descreveu como convenceu outros imames a aceitar o controle de natalidade: citando uma frase do profeta Maomé implicando que as crianças deveriam nascer a intervalos de dois anos.
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