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Nosso DNA não é o mesmo em todas as células do corpo; conheça o mosaico que nos define

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Imagem: iStock

Carl Zimmer

01/06/2018 04h02

James Priest não conseguia entender. Estava examinando o DNA de um bebê muito doente à procura de uma mutação genética que ameaçava parar seu coração. Mas os resultados pareciam ter vindo de duas crianças diferentes.

"Fiquei espantado", disse Priest, cardiologista pediátrico da Universidade de Stanford. No fim das contas, o bebê tinha uma mistura de células geneticamente distintas, uma condição conhecida como mosaicismo. Algumas de suas células tinham a mutação mortal, mas outras, não – poderiam pertencer a uma criança saudável.

Estamos acostumados a pensar em nossas células partilhando um conjunto idêntico de genes, fielmente copiados desde que éramos meros ovos fertilizados. Quando falamos de nosso genoma --todo o DNA em nossas células--, falamos no singular.

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Mas ao longo de décadas, é evidente que o genoma não só varia de pessoa para pessoa --varia também de uma célula para outra. A condição não é incomum: somos todos mosaicos.

Para alguns, isso pode significar o desenvolvimento de uma doença grave, como uma condição de coração. Mas o mosaicismo também significa que pessoas saudáveis são ainda mais diferentes umas das outras do que os cientistas imaginavam.

Mistério Mágico

Na Europa medieval, os viajantes que cruzavam florestas encontravam às vezes uma árvore estranha.

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Ao longo de décadas, ficou claro que o genoma não varia apenas de pessoa para pessoa, mas também varia de célula para célula
Imagem: Jason Holley / The New York Times
Um crescimento anormal no tronco parecia pertencer a uma planta completamente diferente, formando um emaranhado denso de galhos, do tipo que as pessoas poderiam transformar em uma vassoura.

Os alemães chamam isso de Hexenbesen: vassoura de bruxa. Segundo a lenda, as bruxas faziam feitiços mágicos para conjurar vassouras e voar pelo céu à noite. Também usavam alguns desses galhos como ninhos, onde os duendes dormiam.

No século 19, criadores de plantas descobriram que, se cortassem a vassoura de bruxa de uma árvore e a enxertassem em outra, ela iria crescer e produzir sementes. Essas sementes originariam outra vassoura de bruxa.

Hoje, é possível vê-las em jardins de residências do subúrbio. A espécie favorita dos paisagistas é o abeto-anão-de-alberta, que pode chegar a três metros de altura. A espécie vem do norte do Canadá, onde os botânicos em 1903 descobriram o primeiro exemplar agarrado a um abeto branco --que pode atingir o tamanho de um prédio de dez andares.

As toranjas rosadas surgiram, em grande parte, da mesma forma. Um agricultor de Flórida notou um ramo estranho em uma árvore de toranja Walters. Normalmente, seus frutos são brancos, mas aquele galho estava cheio de toranjas com uma coloração rosada. Suas sementes produziram árvores de toranja rosada desde então.

Charles Darwin era fascinado por essas esquisitices. Ficava maravilhado com relatos de floradas estranhas e atípicas em algumas plantas. Ele acreditava que elas continham pistas dos mistérios da hereditariedade.

As células de plantas e animais, raciocinou ele, devem conter "partículas" que determinam sua cor, forma e outras características. Quando se dividem, as novas células devem herdar essas partículas.

Algo deve embaralhar o material hereditário quando surge uma espécie diferente, declarou Darwin, como "a faísca que inflama uma massa de material combustível".

Somente no século 20 ficou claro que essa matéria combustível era o DNA. Os cientistas descobriram que, depois que uma célula sofre uma mutação, todos os seus descendentes a herdam.

As vassouras de bruxa e as floradas diferentes acabaram sendo conhecidas como mosaicos, com base na arte composta de pequenos fragmentos de cerâmica. A natureza cria seus mosaicos com células em vez de cerâmica, formando um arco-íris de diferentes perfis genéticos.

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O mosaicismo pode estar por trás de muitas doenças, mas os cientistas também estão descobrindo que não é automaticamente igual à doença
Imagem: Jason Holley/The New York Times
Antes que o sequenciamento de DNA se transformasse em algo comum, os cientistas davam duro para distinguir diferenças genéticas entre as células humanas. O câncer ofereceu a primeira evidência clara de que nós, como as plantas, poderíamos nos tornar mosaicos.

No final do século 19, biólogos que estudavam células cancerosas notaram que muitas delas tinham cromossomos com formatos estranhos. Na virada do século, um pesquisador alemão, Theodor Boveri, especulou que a existência de cromossomos anormais poderia realmente deixar uma célula cancerosa.

Assim que Boveri divulgou sua teoria, enfrentou oposição intensa. "O ceticismo com que minhas ideias foram recebidas quando as expunha a pesquisadores que agiam como juízes da área me fizeram abandonar o projeto", disse ele mais tarde.

Boveri morreu em 1914, e quase cinco décadas se passaram até que os cientistas descobrissem que ele estava certo.

David A. Hungerford e Peter Nowell mostraram que as pessoas com uma forma de câncer chamado leucemia mieloide crônica não tinham um pedaço substancial do cromossomo 22, pois uma mutação movia esse pedaço para o cromossomo 9. As células que herdavam essa mutação se tornavam cancerosas.

É difícil imaginar que um tumor tenha algo em comum com uma toranja rosada. No entanto, ambos são produtos do mesmo processo: linhagens de células que adquirem mutações não encontradas no resto do corpo.

Algumas doenças de pele também são causadas pelo mosaicismo. Certas mutações genéticas fazem com que um lado do corpo se torne completamente escuro. Outras mutações fazem aparecer listras na pele.

A diferença está no momento da gestação. Se uma célula adquire uma mutação logo no início de seu desenvolvimento, irá produzir muitas células-filhas que irão acabar se espalhando por todo o corpo. As que surgem mais tarde terão um legado mais limitado.

Uma biografia do cérebro

Christopher Walsh, geneticista da Universidade de Harvard, e seus colegas encontraram evidência de mosaicismo em alguns lugares inesperados.

Eles pesquisaram uma doença misteriosa chamada hemimegaloencefalia, que faz com que um lado do cérebro cresça mais que o outro. Os pesquisadores examinaram tecidos de pacientes que passaram por uma cirurgia para tratar as crises desencadeadas pelo mal.

Algumas dessas células dos pacientes – mas não todas elas – compartilhavam os mesmos genes mutantes. É possível que esses neurônios mutantes tenham se multiplicado mais rapidamente que outros no cérebro, fazendo com que um lado crescesse mais.

Estudos preliminares sugerem que o mosaicismo esteja por trás de muitas outras doenças. No ano passado, Walsh e seus colegas publicaram evidências de que mutações de mosaico podem aumentar o risco de autismo.

Mas também descobriram que o mosaicismo não é sinônimo automático de doença. Na verdade, é a norma.

Quando um óvulo fertilizado – conhecido como zigoto – começa a se dividir no útero, muitas das suas primeiras células descendentes acabam com o número errado de cromossomos. Alguns são acidentalmente duplicados, e outros se perdem.

A maioria dessas células desequilibradas se divide lentamente ou acaba morrendo, enquanto as normais se multiplicam muito mais rapidamente. Mas um número surpreendente de embriões sobrevive com alguma variedade em seus cromossomos.

Markus Grompe, biólogo da Universidade de Ciências & Saúde do Oregon e seus colegas examinaram células do fígado de crianças e adultos sem doenças hepáticas. Entre um quarto e metade das células eram aneuplóides, em geral sem a cópia de um cromossomo.

Juntamente com cromossomos alterados, os embriões humanos também adquirem pequenas mutações no genoma. Trechos do DNA podem ser copiados ou excluídos. Letras genéticas individuais podem ser incorretamente reproduzidas.

Não era possível estudar tais alterações moleculares com precisão antes da evolução da tecnologia de sequenciamento de DNA.

Em 2017, pesquisadores do Wellcome Trust Sanger Institute na Inglaterra examinaram 241 mulheres, sequenciando lotes de suas células brancas do sangue. Entre elas, havia cerca de 160 novas mutações, presentes em uma fração considerável de suas células.

Elas adquiriram as mutações nos embriões, teorizaram os cientistas, com duas ou três novas mutações se originando cada vez que uma célula se dividia. Conforme essas novas mutações ocorriam, as células embrionárias as passavam a todas suas descendentes, um legado do mosaico.

Walsh e seus colegas descobriram mosaicos intricados no cérebro de pessoas saudáveis. Em um estudo, colheram neurônios do cérebro de um garoto de 17 anos que morreu em um acidente de carro. Eles sequenciado o DNA de cada neurônio e o compararam com o DNA das células do fígado, do coração e dos pulmões do rapaz.

Cada neurônio, descobriram os pesquisadores, tinha centenas de mutações não encontradas nos outros órgãos. Mas muitas delas eram compartilhadas apenas com alguns dos outros neurônios.

Walsh percebeu que poderia usar as mutações para reconstruir as linhagens das células – para saber como haviam se originado. Os pesquisadores usaram os padrões para produzir uma espécie de genealogia, ligando cada neurônio primeiramente a seus primos próximos e, então, a seus parentes mais distantes.

Quando terminaram, os cientistas perceberam que as células pertenciam a cinco linhagens principais. Em cada grupo, todas herdaram a mesma assinatura distinta do mosaico.

Ainda mais estranho, os cientistas encontraram células no coração do menino com a mesma assinatura de mutação encontrada em alguns neurônios. Outras linhagens incluíam células de outros órgãos.

Com base nesses resultados, os pesquisadores montaram uma biografia do cérebro do jovem.

Quando ele era apenas uma bola embrionária no útero, cinco linhagens de células surgiram, cada uma com um conjunto distinto de mutações. As células dessas linhagens acabaram migrando em diferentes direções e ajudaram a produzir diferentes órgãos – incluindo o cérebro.

As células que originaram o cérebro se transformaram em neurônios, mas nem todas pertenciam à mesma família. Linhagens diferentes se fundiram. Em essência, esse órgão do rapaz foi feito por milhões de grupos de mosaicos, cada um composto por pequenos primos celulares.

É difícil dizer o que os neurônios do mosaico significam para nossa vida – o que significa para cada um de nós ter uma vassoura de bruxa crescendo em nossa cabeça. "Ainda não sabemos se eles têm algum efeito na formação de nossas habilidades ou deficiências", disse Walsh.

O que sabemos é que o mosaicismo introduz aleatoriedade no desenvolvimento cerebral. As mutações, que surgem ao acaso, formarão padrões diferentes em pessoas diferentes. "O mesmo zigoto nunca se desenvolveria duas vezes da mesma maneira", disse Walsh.

Um coração em pedaços

Mesmo com a onipresença do mosaicismo, ainda é fácil ignorá-lo – e surpreendentemente difícil documentá-lo.

Astrea Li, a criança examinada por Priest em Stanford, teve uma parada cardíaca no dia em que nasceu. Os médicos implantaram um desfibrilador em seu coração para colocá-lo no ritmo adequado.

Priest sequenciou o genoma de Astrea para procurar a causa do transtorno. Concluiu que ela tinha uma mutação em uma cópia de um gene chamado SCN5A. Essa alteração pode ter causado o problema, porque codifica uma proteína que ajuda a desencadear os batimentos cardíacos.

Mas, ao fazer um teste diferente, não conseguiu encontrar a mutação.

Para desvendar esse mistério, juntou-se a Steven Quake, biólogo de Stanford pioneiro nos métodos de sequenciamento de genomas de células individuais. Priest colheu 36 células brancas do sangue da menina, e os cientistas sequenciaram todo o genoma de cada célula.

Em 33 células, as duas cópias de um gene chamado SCN5A eram normais. Mas nas outras três, os pesquisadores descobriram uma mutação. Astrea tinha sangue mosaico.

Sua saliva e sua urina também continham células mosaico, algumas das quais carregando a mutação. Esses achados demonstraram que Astrea se tornou um mosaico no início do seu desenvolvimento.

As células epiteliais em sua saliva, as da bexiga em sua urina e as sanguíneas se originaram de uma camada diferente de células de embriões de duas semanas.

A mutação do SCN5A de Astrea se originou em uma célula que existia antes dessa fase. As descendentes mais tarde acabaram nessas três camadas e, finalmente, em tecidos espalhados por todo seu corpo.

Elas poderiam muito bem ter ido parar no coração da menina. E aí a mutação poderia teoricamente causar os problemas.

Enquanto Priest reconstruía as origens do mosaico de Astrea, ela se recuperava da cirurgia de implante do desfibrilador. Seus pais, Edison Li e Sici Tsoi, a levaram para casa. E por alguns meses, pareceu que ela estava fora de perigo.

Porém, um dia, seu desfibrilador percebeu um batimento cardíaco irregular e liberou um choque – junto com uma mensagem para os médicos de Astrea.

De volta ao hospital, descobriram um novo problema: seu coração havia aumentado perigosamente. Os pesquisadores associaram mutações no gene SCN5A à condição.

Seu coração então parou. Os médicos anexaram uma bomba mecânica, e logo um coração doado surgiu.

Astrea passou por uma cirurgia de transplante e se recuperou bem o suficiente para ir para casa. Ela acabou desfrutando de uma infância normal, virando estrela com sua irmã e ouvindo obsessivamente a trilha sonora de "Frozen".

O transplante não lhe deu apenas uma nova chance. Garantiu também a Priest a oportunidade muito rara de examinar de perto um coração mosaico.

Os cirurgiões que fizeram o transplante cortaram algumas partes do músculo cardíaco da menina. Priest e seus colegas extraíram o gene SCN5A de células recolhidas de diferentes partes de seu coração.

No lado direito, ele e seus colegas descobriram que mais de 5 por cento das células tinham genes mutantes. No esquerdo, quase 12 por cento.

Para estudar o efeito desse mosaicismo, desenvolveram no computador uma simulação do coração de Astrea, programando-o com células mutantes e deixando que batesse.

O coração simulado pulsava irregularmente, assim como acontecia na menina.

A experiência fez com que Priest se perguntasse quantas pessoas podem viver com o risco de uma mistura oculta de mutações.

A menos que tenha outro paciente como Astrea, talvez nunca fiquemos sabendo.