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Drama e intriga expõe o universo das influenciadoras digitais "robôs"

Miquela Sousa, influenciadora digital "forçada" a expor sua identidade - Reprodução/Instagram
Miquela Sousa, influenciadora digital "forçada" a expor sua identidade Imagem: Reprodução/Instagram

Anita Abdalla

Colaboração para o UOL Tecnologia

08/05/2018 04h00

Intrigas, rivalidades, mentiras e lágrimas: o mundo da moda vai muito além da beleza e do glamour. No fim de abril, a modelo americana de origem brasileira Miquela Sousa se viu no centro de uma disputa que envolve chantagem e manipulação por parte de uma hacker apoiadora de Donald Trump.

Só tem um detalhe: a jovem de 19 anos, que já participou de campanhas da Prada e tem até música lançada no Spotify, não existe.

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Sousa é um coquetel de computação gráfica, toques de inteligência artificial, muito marketing e uma aura de mistério e vem encabeçando uma nova tendência nas redes sociais: a de influenciadoras "digitais de verdade". São perfis de pessoas que não existem, mas que contam com muitos seguidores e atenção de grandes marcas – em pouco mais de dois anos, Sousa já superou a marca de 1 milhão de seguidores no Instagram.

Chantagem e crise 

Além da divulgação de produtos, a modelo “brasileira” se engaja em causas sociais, como a Black Lives Matter (campanha norte-americana contra a violência à população negra) e até comenta sobre shows e eventos como o festival de música Coachella. Assim, o sucesso de de Sousa começou a chamar ainda mais atenção para sua aparência peculiar.

Em comentários, diversos seguidores indagavam sobre quem seria ela, se era de verdade, um robô ou uma imagem criada. Ela tentava desviar do assunto até que no meio do último mês de abril sua conta no Instagram foi hackeada.

Para devolver a conta, a hacker, chamada Bermuda e abertamente apoiadora do presidente Donald Trump, exigia a verdade sobre quem a modelo era. Pequeno detalhe: Bermuda é também uma personagem criada em computação gráfica - o que fica muito evidente pelos posts da "moça" no Instagram.

Post de Bermuda no qual exige a identidade "real" de Miquela Sousa 

O retorno de Sousa para sua própria conta é o momento que a história começa a ficar ainda mais louca. Em um grande desabafo, Miquela Sousa se assume como não humana. Diz ter sido enganada pela empresa que a criou, que os via como família e que eles haviam mentido sobre sua história.

E assim, ela entrou em crise de identidade: Sousa disse que lamentava não saber se o que sente é real, se seus pensamentos e ideias são programações ou parte de quem ela é.

Um pouco depois, a empresa responsável por Miquela, o grupo Brud, deu as caras. Localizado em Los Angeles, a firma se define como especialista em robótica e na aplicação de inteligência artificial voltada para negócios.

Ela admitiu que Sousa não é humana, mas que não é uma criação totalmente sua, mas também da empresa Cain  Intelligence, que teria negociado com a Brud a invenção de Miquela para fins sexuais. Por discordarem do destino da personagem, a Brud diz ter “libertado” ela das mãos da Cain, dando uma nova funcionalidade e personalidade a modelo virtual.

Só que tudo não pode passar da mais pura cascata. Na última semana o BuzzFeed News dos EUA diz ter encontrado uma fonte anônima próxima da Brud, que afirma que toda história é uma invenção criada pela própria empresa. O grupo estaria por trás não somente de Miquela Sousa, mas também de Bermuda e da própria Cain Intelligence. Tudo não passaria de uma história de mocinhas e vilões para chamar atenção e, claro, ganhar dinheiro.

Hero @nilerodgers

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Miquela aparece em fotos com gente real, como o guitarrista Nile Rodgers

E o truque parece estar funcionando. O site TechCrunch afirma que antes mesmo de todo o imbróglio surgir, Brud recebeu investimentos de US$ 6 milhões. Ninguém comentou a veracidade da suposta ligação entre Brud e Cain. O que se sabe é que os sites das duas empresas foram criados em agosto de 2016, com dois dias de diferença entre eles.

Realismo

Embora conhecida, está longe de ser a única no mundo das influenciadoras totalmente digitais. Outro grande nome é o de Shudu Gram, que fez campanha da marca Fenty Beauty, da cantora Rihanna.

Mas com ela o papo é reto: Gram é criação do fotógrafo britânico Cameron-James Wilson, que em entrevista para a BBC, se referiu a modelo como uma “peça de arte” criada por computação gráfica. De fato, o perfil da moça impressiona pela qualidade do trabalho, bem mais que o perfil de Sousa - as fotos poderiam passar por editoriais de moda com uma modelo humana. 

Embora o perfil de Gram tenha menos posts, Wilson diz que passou a ser procurado por marcar e empresas de todo o tipo para trabalhar, mas o que explica o sucesso dessas figuras que não são reais?

. . @cjw.photo . #fenty #fentybeauty #mattemoiselle #sawc #3dart

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De onde vem a fama?

Rodrigo Helcer, executivo-chefe da Stilingue, startup brasileira que usa inteligência artificial para analisar o comportamento online de brasileiros e influenciadores digitais, comenta que parte do que atraí o público para figuras como as de Sousa e Gram é o encantamento que existe sobre o funcionamento das inteligências artificiais.

“É um jeito inteligente de chamar atenção, usando a magia que a inteligência Artificial promove, mas sem revelar qual a verdadeira ciência por trás”, diz.

Assim como uma personalidades de carne e osso, as modelos de mentira possuem uma equipe por trás de seus posts e ações. Segundo Helcer, o comportamento de uma inteligência artificial, a forma como ela responde e age, depende de uma série de algoritmos que são “ensinados” para a máquina - “como se ensina uma criança na escola”, por uma equipe que está por trás do processo. E por isso mesmo existe um limite, “não é uma inteligência sobrenatural que fala sobre qualquer coisa, ela depende daquilo que é ensinada”, comenta.

No caso das modelos citadas, o executivo ainda acredita que o que temos não são inteligências artificiais propriamente ditas ?- seria apenas a criação de personagens virtuais por meio de computação gráfica.

As respostas desses personagens dificilmente são dadas pelo computador. É provável que elas tenham um time de gestores de comunidade que agem como essa persona através das redes sociais  

Rodrigo Helcer, executivo-chefe da Stilingue

Ou seja, as modelos estão muito bem de aparência, mas ainda carecem de personalidade.

E quanto custaria para uma modelo virtual ter de fato um cérebro mais esperto, com inteligência artificial mais sofisticada? "Acredito que estamos falando aqui de algo em torno de R$ 300 mil só para começar a brincar com alguma coisa desse gênero. Para fazer isso bem feito, falamos de mais de um R$ 1 milhão", diz Helcer.

O futuro dos influenciadores está em jogo?

Para quem acredita que as modelos gráficas deixam os influenciadores de carne e osso com os dias contados, a história já não é bem assim. Helcer é enfático: “Vai substituir influenciadores? Nunca. É uma brincadeira, um experimento para lidar com a sua audiência que existe nas suas redes sociais de uma forma mais criativa”.

Celso Forster, sócio do BRMedia Group, concorda.“São duas coisas complementares. Do mesmo jeito se pensava que com o surgimento dos influenciadores o marketing na TV iria acabar, o que não é verdade. São formas diferentes de atingir o público”.

O que torna os influenciadores tão procurados pelas mídias, para além da TV e das propagandas de rádio, é a crença de que todos nós somos influenciados de alguma forma. Forster diz: “No caso dessas figuras, é como pedir conselho a um parente ou amigo que entende do assunto. Às vezes isso é feito de forma consciente, quando você vai procurar saber o que uma pessoa específica está falando sobre um produto que você tem interesse, outras vezes você nem estava procurando nada, mas vê alguém que você gosta falando e usando e se interessa”.

Por enquanto, influenciadores como Sabrina Sato não estão ameaçados

Flavio Vinicius Araujo Santos, Gerente de Tecnologia do BR Media Group, ainda comenta sobre como as imagens do Instagram já são, mesmo em contas de pessoas reais, planejadas, sendo ao menos minimamente criadas. “O que foi postado ali foi antes analisado e direcionado. Naquele momento ali é uma pessoa virtual”. 

Se até então a brincadeira de criar uma modelo virtual tem semelhanças com as modelos reais, quando o assunto é o investimento a ser feito as diferenças são grandes. Para Santos, é até “inviável comparar”. Considera que o processo para criação de uma figura virtual é algo desenvolvido a longo prazo, com uma equipe e um grande investimento por trás, sendo o objetivo dessa criação diferente do que se tem em mente ao simplesmente procurar contratar um influenciador.

Então, ao menos por enquanto, os famosos do Instagram não têm muito o que temer - Sabrina Sato acaba de ganhar R$ 150 mil para divulgar a gravidez no Insta, certo? 

“A história da tecnologia envolve trabalhar bem a magia com a ciência. E a verdade é que a ciência hoje não é capaz de criar um avatar que replique dessa forma o comportamento humano”, finaliza Helcer.